Como nas acácias, as raízes do estudo da pré-história podem ser encontradas a muitos metros do tronco, distorcidas pela pressão do solo. Hoje, passado século e meio de escavações intencionais e achados fortuitos, parece evidente que a história humana começou há milhões de anos em África, mas a arqueologia da pré-história foi o filho rebelde da história. Os seus pressupostos fundamentais colidiram inicialmente com a fundamentação religiosa e a história do Livro do Génesis.

Tomemos o caso do teólogo Isaac La Peyrère, cujo apelido tem aliás sugerido uma ascendência judaica galega ou portuguesa. Em 1655, este girondino publicou Prae-Adamitae, uma obra curiosa, redigida em latim que punha em causa a tradicional tese de descendência de todos os homens de Adão. La Peyrère foi dos primeiros a sugerir a existência de humanos antes da criação de Adão e pagou por isso: o seu livro foi queimado em público pela Inquisição. As sementes da hipótese de ruptura, porém, ficaram no solo, aguardando pela germinação.

Forward. De 1980 para cá, fruto de escavações notáveis, multiplicaram-se as hipóteses teóricas em torno da pré-história: recuou-se a idade do início da agricultura, multiplicaram-se as descobertas de manifestações artísticas em grutas e ao livre, suportando outras hipóteses sobre a sua função, descobriram-se novos recintos de culto e de expressão do pensamento religioso. No campo evolutivo, com forte ajuda da genética, aceitou-se finalmente um modelo de divergência de várias espécies a partir do Homo erectus, muitas das quais extintas em ramos murchos da árvore da evolução. Reabilitou-se na última década e meia o neandertal, assumindo-se agora que a sua história também é a nossa.

Uma parte significativa desta narrativa sobre a pré-história teve lugar na Península Ibérica. Em Venta Micena, em Atapuerca e na Aroeira, revolucionaram-se as datas de chegada de espécies humanas a este território; em Altamira e no Côa, modificou-se a percepção e a função da arte no Paleolítico; nos Almendres, em Perdigões e em dezenas de menires e ortóstatos pintados e outros monumentos funerários, conheceu-se melhor a religiosidade emergente dos quarto e terceiro milénios antes da nossa era. Em La Draga, materializou-se o Neolítico numa incrível comunidade lacustre. No subsolo, existirão certamente outras páginas desta fascinante saga. A história, no fundo, está apenas no início.

 

Índice da Edição Especial História nº 44:

  • Orce: Os primeiros povoadores da Europa (1,5 milhões de anos)
  • Atapuerca: Os nossos antepassados (1.000.000 anos)
  • Dossier: O crânio da Aroeira (400.000 anos)
  • Altamira: Os primeiros artistas da história (35.000 anos)
  • O Vale do Côa: Trezentos séculos de monumentalização da paisagem (30.000 anos)
  • A Criança do Lapedo (29.000 anos)
  • Dossier: O cromeleque dos Almendres (7.500 anos)
  • Dossier: Menires de Vila do Bispo (7.500 anos)
  • La Draga: O povoado lacustre (7.200 anos)
  • Menires e ortóstatos decorados na Península Ibérica (6.000 anos)
  • Perdigões: O centro do mundo neolítico (4.600 anos)

Nesta edição encontrará artigos assinados por Mário Varela Gomes (IAP/ Universidade Nova de Lisboa), Thierry Aubry (Museu e Parque Arqueológico do Vale do Côa), Primitiva Bueno Ramírez (Universidade de Alcalá), António Carlos Valera (ERA -Arqueologia), António Rodríguez-Hidalgo (Instituto Catalão de Paleoecologia Humana e Evolução Social) e Gonçalo Pereira Rosa (National Geographic Portugal), entre outros.