Hamburgo sabia que as bombas estavam a chegar e, por isso, os prisioneiros de guerra e os condenados a trabalhos forçados tiveram apenas meio ano para construir um gigantesco abrigo defendido por artilharia antiaérea. Em Julho de 1943, a construção ficou completa. Um cubo de betão reforçado, sem janelas, com paredes de dois metros de espessura e um telhado ainda mais grosso, erguia-se como um castelo medieval sobre um parque junto do rio Elba. De acordo com o projecto nazi, as peças de artilharia que espreitavam dos seus quatro torreões eliminariam os bombardeiros aliados dos céus, ao mesmo tempo que dezenas de milhares de cidadãos encontrariam abrigo nas suas muralhas inexpugnáveis.

Aproximando-se durante a noite, vindos do mar do Norte, poucas semanas depois de terminar a construção do abrigo, os bombardeiros britânicos apontaram ao pináculo de São Nicolau, despejando fitas de folha metálica para despistar os radares e os operadores de artilharia antiaérea. Definindo como alvo os bairros residenciais populosos, os bombardeiros desencadearam um incêndio imparável que destruiu metade de Hamburgo e matou mais de 34 mil pessoas.

O pináculo de São Nicolau, que conseguiu resistir não se sabe bem como, ergue-se hoje como um memorial que recorda à Alemanha o inferno da guerra. O abrigo antiaéreo também. Mas agora tem outro significado: deixou de ser uma lembrança do passado da Alemanha para se transformar numa visão esperançosa do futuro.

A Alemanha é pioneira de uma transformação a que chama Energiewende, a revolução que, segundo os cientistas, todos os países precisam de levar a efeito para evitar uma catástrofe climática.

No espaço central do abrigo, um reservatório de água com seis andares e capacidade para dois milhões de litros de água fornece calor e água quente a cerca de 800 agregados familiares na vizinhança. A água é aquecida por combustão de gás obtido a partir do tratamento de águas residuais, do calor residual de uma fábrica nas proximidades e por painéis solares. O abrigo também transforma luz solar em energia eléctrica: uma estrutura de painéis fotovoltaicos (FV) montada na fachada meridional fornece electricidade suficiente à rede para abastecer um milhar de lares. No parapeito norte, do qual os artilheiros avistaram outrora as chamas que se erguiam do centro da cidade, uma esplanada ao ar livre proporciona um panorama do horizonte modificado – agora marcado por 17 turbinas eólicas.

A Alemanha é pioneira de uma transformação a que chama Energiewende, a revolução que, segundo os cientistas, todos os países precisam de levar a efeito para evitar uma catástrofe climática.

A Alemanha lidera este processo entre os grandes países industriais. No ano passado, cerca de 27% da sua electricidade foi gerada a partir de fontes renováveis, como a energia eólica e solar.
O valor é três vezes superior ao da década passada. As mudanças aceleraram após o acidente de 2011 na central nuclear de Fukushima no Japão, que levou Angela Merkel a anunciar que a Alemanha encerraria os seus 17 reactores até 2022. Nove já foram desactivados e as energias renováveis compensaram a produção desactivada.

No entanto, o carácter exemplar da experiência alemã encontra-se na demonstração de que é possível abandonar os combustíveis fósseis. Segundo a comunidade científica, até ao fim deste século as emissões de carbono responsáveis pelo aquecimento do planeta teriam de reduzir-se a praticamente zero. A Alemanha, quarta maior potência económica mundial, tem prometido alguns dos cortes de emissões mais radicais – até 2020, um corte de 40% relativamente aos níveis de 1990, e até 2050 pelo menos 80%.

Neste momento, o destino dessas promessas pende por um fio. A revolução nasceu de um movimento de base: os cidadãos e as associações cívicas fizeram metade do investimento em renováveis, mas as empresas convencionais, que não se aperceberam da génese da revolução, estão a pressionar o governo para abrandar a mudança. O país ainda gera mais electricidade a partir do carvão do que das renováveis. E a Energiewende tem um caminho mais longo a percorrer nos sectores dos transportes e do aquecimento, responsáveis pela emissão de mais dióxido de carbono do que as centrais electroprodutoras.

A Energiewende continuará a exigir a participação de todos os cidadãos. Mais de 1,5 milhões, quase 2% da população, já estão a vender electricidade à rede. “Trata-se de um projecto para uma geração: vai prolongar-se até 2040 ou 2050 e implicará dificuldades”, disse Gerd Rosenkranz, analista num grupo de reflexão sediado em Berlim. “Vai tornar a electricidade mais cara para os consumidores, mas, nas sondagens, 90% do público reconhece que quer a Energiewende.”

Por que motivo o futuro da energia está a jogar--se aqui, num país que há 70 anos estava devastado? E será que pode acontecer em todo o lado?

Segundo um mito sobre as suas origens, os alemães vieram do coração escuro da floresta. Esse mito foi contado pelo historiador romano Tácito, que escreveu sobre o massacre das legiões romanas pelas hordas teutónicas, e foi embelezado pelos românticos alemães do século XIX. A floresta tornou-se o lugar onde os alemães se dirigem quando querem retemperar a alma, um hábito que os predispõe a preocuparem-se com o ambiente.

Por isso, em finais da década de 1970, quando as emissões geradas pelos combustíveis fósseis e a chuva ácida mataram florestas alemãs, a indignação generalizou-se à escala nacional. A ameaça da morte das florestas gerou ainda mais reflexão. O governo e as empresas públicas do sector energético defendiam a energia nuclear, mas muitos alemães rejeitavam-na.  “Existe uma certa rebeldia que resulta da Segunda Guerra Mundial”, contou-me um cinquentenário chamado Josef Pesch. “Não se pode aceitar cegamente a autoridade.”

Josef Pesch conversava comigo num restaurante no cume de uma montanha da Floresta Negra, nos arredores de Friburgo. Numa clareira nevada no alto de uma colina, mesmo acima de nós, viam-se turbinas eólicas com 98 metros de altura financiadas pelos 521 cidadãos mobilizados pelo meu interlocutor, mas a nossa conversa ainda não derivara para as turbinas. Na companhia de um engenheiro chamado Dieter Seifried, conversávamos sobre o reactor nuclear que nunca chegou a ser construído, perto da aldeia de Wyhl, a 30 quilómetros de distância, junto do rio Reno.

A oposição à energia nuclear, numa época em que pouco se falava de alterações climáticas, foi decisiva.

O governo estadual insistira que o reactor tinha de ser construído ou Friburgo ficaria sem energia. No início de 1975, agricultores e estudantes locais ocuparam o sítio. Durante quase uma década, houve aqui protestos e manifestações que obrigaram o governo a abandonar o projecto. Era a primeira vez que se travava a construção de um reactor nuclear na Alemanha.

As luzes não se apagaram e Friburgo transformou-se numa cidade solar. A delegação local do Instituto Fraunhofer é líder mundial da investigação em energia solar. A sua Aldeia Solar, projectada pelo arquitecto Rolf Disch, que participara nas manifestações de Wyhl, é composta por 50 habitações que produzem mais energia do que consomem. “Wyhl foi o ponto de partida”, afirmou Dieter Seifried. Em 1980, um instituto do qual ele era co-fundador publicou um estudo intitulado “Energiewende”, dando assim nome a um movimento que nem sequer nascera.

A oposição à energia nuclear, numa época em que pouco se falava de alterações climáticas, foi decisiva. Quando parti para a Alemanha, pensava que os alemães tinham perdido o juízo ao renegarem uma fonte de energia sem emissões de carbono que, até Fukushima, fora responsável pela geração de um quarto da sua electricidade. Quando me vim embora, já pensava que não teria sido possível qualquer revolução sem o sentimento antinuclear, pois o medo de um acidente é um motivo mais forte e imediato do que o medo da subida lenta das temperaturas e do nível do mar.

Em toda a Alemanha, contaram-me a mesma história. Contou-ma Rolf Disch, sentado na sua própria casa cilíndrica, que roda sobre o seu eixo para acompanhar o Sol. Contou-ma Gerd Rosenkranz em Berlim, ele que, em 1980, abandonou a licenciatura em física durante vários meses para ocupar o local proposto para construção de um depósito de resíduos nucleares. E contou--ma Wendelin Einsiedler, proprietário de uma exploração de lacticínios na Baviera, que ajudou a transformar a sua aldeia numa central de produção energética ecológica.

Na opinião de todos eles, a Alemanha precisava de abandonar a energia nuclear e os combustíveis fósseis num único impulso. “Não se pode expulsar o diabo com a ajuda de Belzebu”, brincou Hans-Josef Fell, um político destacado do Partido Verde. “Temos de renegar os dois.” O investigador em assuntos energéticos Volker Quaschning explica o problema de outra maneira: “A energia nuclear afecta-me pessoalmente. As alterações climáticas afectam os meus filhos. Eis a diferença.”

Quando o Partido Verde alemão foi fundado na década de 1980, o pacifismo e a oposição à energia nuclear eram dois pilares essenciais. Em 1983, os primeiros deputados dos Verdes foram eleitos para o parlamento alemão e começaram a introduzir ideias ecológicas na vida política. Quando a central nuclear de Chernobyl explodiu em 1986, a ala esquerda dos sociais-democratas (SPD), um dos dois principais partidos da Alemanha, converteu-se à causa antinuclear. Embora Chernobyl se localizasse a mais de mil quilómetros de distância, a sua nuvem nuclear sobrevoou a Alemanha e os pais foram encorajados a manterem os filhos dentro de casa. Segundo Josef Pesch, ainda hoje não é garantidamente seguro ingerir cogumelos e javali provenientes da Floresta Negra.

Mesmo assim, foi preciso acontecer a tragédia de Fukushima 25 anos mais tarde para convencer Merkel e a sua União Democrata-Cristã (CDU) de que todos os reactores nucleares deveriam ser encerrados até 2022. À data desse acontecimento, já as energias renováveis estavam em crescimento explosivo, devido à legislação que Hans-Josef Fell ajudara a preparar e aprovar em 2000.

A casa de Fell em Hammelburg, cidade do Norte da Baviera onde nasceu e cresceu, é fácil de identificar: foi construída em madeira escura de larício, com um telhado coberto de relva. Na fachada sul, a relva está parcialmente revestida por painéis fotovoltaicos. Quando o Sol não brilha e não gera electricidade ou calor, um co-gerador instalado na cave queima óleo de girassol e de colza para produzir ambos.

Numa manhã de Março, o interior de madeira da casa apresentava-se invulgarmente quente.Homem alto, vestido informalmente, calvo e com uma franja de barba grisalha, Hans-Josef fala por vezes como se fosse um pregador, mas ele não é um asceta ecologista. Uma cabana nas traseiras de casa, perto da piscina, acolhe uma sauna, aquecida pela mesma “energia verde” que alimenta a casa e o automóvel. “O maior erro do movimento ambientalista tem sido a focagem da mensagem na redução do consumo, no apelo a que se aperte o cinto e se faça menos”, disse. “O público associa isso a menos qualidade de vida. Ora a mensagem deveria ser: ‘Faz as coisas de maneira diferente, com electricidade barata e renovável’.” Hans-Josef foi eleito vereador da cidade de Hammelburg.

1990: o ano da reunificação da Alemanha coincidiu também com a discussão e votação de uma lei que dinamizava a Energiewende. O projecto-lei fez todas as etapas do seu percurso no Bundestag, sem ser muito notado. Em escassas duas páginas, consagrava um princípio decisivo: os produtores de energia eléctrica tinham o direito de introduzi-la na rede e as empresas públicas do sector eléctrico ficavam obrigadas a pagar-lhes uma “tarifa de fornecimento”. As turbinas eólicas começaram a emergir no Norte ventoso.

Por essa altura, Hans-Josef Fell apercebeu-se de que a nova lei nunca conduziria a um crescimento explosivo à escala nacional. É verdade que remunerava os produtores de energia, mas não o suficiente. Em 1993, ele convenceu o executivo camarário a aprovar uma portaria que obrigava a empresa municipal a garantir a qualquer produtor de energias renováveis um preço que superasse os custos e imediatamente dinamizou uma associação de investidores locais para construir uma central electroprodutora solar de 15 kilowatts — minúscula pelos padrões modernos, mas tratava-se de uma das primeiras instituições deste género.

Em 1998, Hans-Josef aproveitou a vaga ecologista e o seu sucesso em Hammelburg e foi eleito para o Bundestag. Os ecologistas formaram uma coligação governamental com o SPD e Hans-Josef juntou esforços com Hermann Scheer, um destacado defensor da energia solar do SPD. Ambos prepararam um pacote legislativo que, em 2000, transpôs a experiência de Hammelburg para a escala nacional e desde então tem sido imitada em todo o mundo. As suas tarifas de fornecimento ficaram garantidas por 20 anos e compensaram.

O biogás, os painéis solares que revestem muitos telhados e, em especial, as turbinas eólicas permitem a Wildpoldsried produzir cinco vezes mais electricidade do que a quantidade consumida

“A lógica de base defendia que o pagamento teria de ser suficientemente elevado para que os investidores pudessem ter lucro”, afirmou o deputado. “Vivemos numa economia de mercado, afinal de contas. É lógico.”

Quase todos os alemães com quem travei conhecimento reconheceram que o crescimento explosivo deste projecto os colheu de surpresa. “Não imaginei que atingisse esta escala”, reconheceu o produtor de lacticínios Wendelin Einsiedler. Fora da sua estufa, com vista para os Alpes, nove turbinas eólicas rodavam preguiçosamente sobre a cumeeira atrás do curral das vacas. O cheiro a estrume insinuava-se pelas narinas. Wendelin iniciara a sua Energiewende pessoal na década de 1990 com uma só turbina e um fermentador de estrume gerador de metano. Juntamente com o seu irmão, Ignaz, também produtor de lacticínios, queimava o metano num co-gerador de 28 kilowatts, produzindo calor e electricidade para as suas explorações agrícolas. “Não foi para ganhar dinheiro”, disse. “Foi por idealismo.”


Os cidadãos financiaram metade do investimento do país em energias renováveis, depois de a legislação o ter tornado lucrativo. Fora da aldeia de Feldheim, turistas passeiam no parque eólico. O parque vende electricidade à rede nacional, mas também abastece uma rede local que assegura a auto-suficiência de Feldheim.

Depois da entrada em vigor da legislação sobre energias renováveis em 2000, os Einsiedler expandiram a sua exploração. Hoje, possuem cinco fermentadores que transformam silagem de milho, além de estrume, provenientes de oito explorações de lacticínios, canalizando o biogás resultante por meio de condutas, ao longo de cinco quilómetros, até à aldeia de Wildpoldsried. Uma vez ali chegado, é queimado em co-geradores para aquecer todos os edifícios públicos, um parque industrial e 130 agregados familiares. “O princípio é magnífico e permite poupar uma quantidade inacreditável de CO2”, afirmou o presidente da câmara, Arno Zengerle.

O biogás, os painéis solares que revestem muitos telhados e, em especial, as turbinas eólicas permitem a Wildpoldsried produzir cinco vezes mais electricidade do que a quantidade consumida. Wendelin gere as turbinas. As turbinas eólicas são um aditamento dramático e por vezes polémico à paisagem alemã. Os opositores chamam--lhe “esparguificação”, mas, quando a população recebe uma comparticipação financeira pelo espargo, o seu comportamento altera-se.

A economia alemã no seu conjunto afecta à electricidade quase a mesma percentagem do seu produto nacional bruto que afectava em 1991.

Não foi difícil convencer os agricultores e os proprietários domésticos a instalar painéis solares nos telhados: quando foi implementada em 2000, a tarifa de fornecimento pagava 50 cêntimos por kilowatt-hora e era um bom negócio. No auge do crescimento explosivo da energia solar em 2012, emergiram na Alemanha num só ano painéis fotovoltaicos correspondentes a 7,6 gigawatts de potência instalada, equivalentes, quando há luz do Sol, a sete centrais nucleares. Floresceu então uma indústria alemã de painéis solares, depois ultrapassada por fabricantes de baixo custo na China.

Nessa altura, a legislação de Hans-Josef Fell contribuiu para baixar o custo das energias solar e eólica, tornando-as competitivas com os combustíveis fósseis em muitas regiões. A tarifa para novas instalações solares de grande dimensão diminuiu de 50 cêntimos por kilowatt-hora para menos de dez. “Criámos uma situação nova em 15 anos. Foi esse o enorme sucesso alcançado pela nova lei das energias renováveis”, afirmou o seu proponente.

Os alemães pagaram este sucesso através de uma sobretaxa de energias renováveis cobrada na conta da electricidade. Este ano a sobretaxa é de 6,17 cêntimos por kilowatt-hora, valor que corresponde, para o cliente médio, a cerca de 18 euros por mês. Será difícil de custear para alguns agregados, mas não para o trabalhador médio alemão. A economia alemã no seu conjunto afecta à electricidade quase a mesma percentagem do seu produto nacional bruto que afectava em 1991.

Nas eleições de 2013, Hans-Josef Fell perdeu o seu lugar no Bundestag. De regresso a Hammelburg, já não precisa de ver os rolos de fumo a subir em Grafenrheinfeld: em Junho, o reactor foi finalmente desactivado. Ninguém, nem sequer a indústria, acredita que o nuclear voltará à Alemanha. Quanto ao carvão, isso é uma história diferente.

Em 2014, a Alemanha obteve 44% da sua electricidade a partir de carvão: 18% foi gerada a partir de carvão-duro, a maior parte do qual importado, e cerca de 26% de lenhite, ou carvão castanho. O consumo de carvão-duro diminuiu muito nas últimas duas décadas, mas não o de lenhite. Essa é a principal razão para o incumprimento da meta alemã autodefinida para as suas emissões de gases com efeito de estufa até 2020. A título de comparação, refira-se que, em 2014, cerca de 52% da produção eléctrica em Portugal coube aos parques eólicos e ainda houve contributos de outras fontes renováveis que melhoraram essa performance. 

A Alemanha ainda não está perto deste registo. O país é o maior produtor mundial de lenhite e esta emite ainda mais CO2 do que o carvão-duro, embora seja mais barata do que o carvão-duro que, por sua vez, é mais barato do que o gás natural. Para reduzir emissões, a Alemanha teria de substituir a lenhite por gás natural, mas a invasão renovável da rede provocou outro fenómeno: no mercado grossista, onde se compram e vendem contratos de fornecimento de electricidade, o preço da energia eléctrica caiu a pique, de tal maneira que as centrais electroprodutoras alimentadas a gás e, por vezes, até mesmo as que consomem carvão-duro, estão a ser expulsas do mercado. As velhas centrais electroprodutoras alimentadas a lenhite laboram a todo o vapor, sete dias por semana, 24 horas por dia, enquanto as centrais modernas que funcionam com gás, geradoras de metade das emissões, estão paradas.

“Teremos evidentemente de descobrir maneira de nos livrarmos do nosso carvão”, disse Jochen Flasbarth, secretário de Estado do Ambiente. “Mas é muito difícil. Não somos um país rico em recursos e o único de que dispomos é a lenhite.”

A introdução de cortes no consumo vai ser mais difícil porque, ultimamente, as grandes empresas do sector da energia têm perdido dinheiro devido à Energiewende, segundo se queixam, ou devido à sua incapacidade para se adaptarem à Energiewende, segundo os críticos. A E.ON, a maior empresa, proprietária de Grafenrheinfeld e de muitas outras centrais, admitiu um prejuízo superior a 3 mil milhões de euros no ano passado.

Mesmo se mais centrais nucleares encerrarem, a Alemanha continua a ter demasiada capacidade electroprodutora.

“Na Alemanha, as empresas públicas definiram uma estratégia que passava pela defesa de um mix de energia nuclear e combustíveis fósseis”, afirmou Jochen Flasbarth. “Não definiram um plano B.” Ao perderem o comboio da Energiewende à partida da estação, tentam agora persegui-lo. A E.ON está a dividir-se em duas empresas, uma dedicada ao carvão e nuclear e a outra às renováveis. O director-geral, outrora crítico da Energiewende, ficará com as renováveis.

A sociedade Vattenfall, uma das quatro maiores empresas do sector na Alemanha, passa por uma evolução semelhante. “Somos um modelo exemplar para a Energiewende”, afirmou o porta--voz Lutz Wiese na Welzow-Süd, uma mina a céu aberto, junto da fronteira com a Polónia, que produz 20 milhões de toneladas de lenhite por ano.

Nesse dia de Primavera, a única nuvem visível era o penacho de fumo que preguiçosamente ascendia da central de Schwarze Pumpe, com 1,6 GW de capacidade, queimando a lenhite extraída na mina de Welzow-Süd. Numa sala de conferências, Olaf Adermann, gestor de activos responsável pelas operações de lenhite da Vattenfall, explicou-me que a sua sociedade e outras empresas públicas nunca acreditaram que as energias renováveis conseguissem arrancar tão depressa. Mesmo se mais centrais nucleares encerrarem, a Alemanha continua a ter demasiada capacidade electroprodutora.

“Vamos ter de passar por algum tipo de limpeza do mercado”, afirmou. Mas não deve ser a lenhite a sair, insistiu. Ela é o “parceiro fiável e flexível” a que se recorre quando o Sol não brilha e o vento não sopra. Originário da região, Olaf já trabalhava nas minas antes de a Vattenfall se tornar proprietária. Ele acredita que as minas continuarão a existir até 2050 e talvez mesmo depois.

No entanto, a Vattenfall tenciona vender o seu negócio de lenhite se encontrar comprador para poder concentrar-se nas renováveis. Está a investir milhares de milhões de euros em dois novos parques eólicos no mar do Norte — porque há mais vento no mar alto do que em terra e porque uma grande empresa precisa de um grande projecto para custear os respectivos gastos gerais. “Não podemos desenvolvê-lo em terra firme na Alemanha”, afirmou Lutz Wiese. “É demasiado pequeno.”

A Vattenfall não é a única. O crescimento explosivo das renováveis transferiu-se para o mar do Norte e para o Báltico e, cada vez mais, para as mãos das empresas públicas. O governo de Merkel tem incentivado esta transferência, impondo limites à construção de unidades solares e eólicas em terra e alterando as regras do jogo de maneira a pôr de fora as associações de cidadãos. No ano passado, a potência instalada de novas instalações solares desceu para cerca de 1,9 GW, um quarto do pico registado em 2012. Segundo os críticos, o governo está a ajudar as grandes empresas à custa do movimento de cidadãos que lançou a Energiewende.

Em finais de Abril, a Vattenfall inaugurou formalmente o seu primeiro parque eólico no mar do Norte, um projecto de 80 turbinas denominado DanTysk que se localiza a cerca de 80 quilómetros da orla costeira. Realizada num salão de baile em Hamburgo, a cerimónia também foi uma ocasião feliz para a cidade de Munique. A sua empresa municipal, a Stadtwerke München, é proprietária de 49% do projecto. Como resultado, Munique produz agora electricidade a partir de fontes de energia renováveis em quantidade suficiente para abastecer os seus agregados familiares, o metropolitano e as linhas de eléctricos. A cidade prevê que, em 2025, conseguirá satisfazer a totalidade da procura a partir de fontes renováveis.

Em parte por ter mantido muita da sua indústria pesada, a Alemanha possui um dos mais elevados níveis de emissões de carbono per capita da Europa Ocidental, correspondente a um pouco mais de metade das emissões dos EUA. O seu objectivo para 2020 consiste em reduzi-las em 40% relativamente aos níveis de 1990. Até ao ano passado, conseguira atingir 27%. O sistema europeu de comércio de carbono, no âmbito do qual os governos outorgam aos poluidores licenças transaccionáveis de emissões, não tem tido utilidade até ao momento. Há demasiadas licenças em circulação e são tão baratas que a indústria tem poucos incentivos para reduzir as emissões.

Embora a Alemanha sinta dificuldades para atingir a sua meta para 2020, o país lidera no quadro da União Europeia. Podia ter-se contentado com essa proeza e muitos políticos na CDU de Merkel queriam que assim fosse. Em vez disso, a chanceler e o ministro da Economia, Sigmar Gabriel, líder do SPD, reafirmaram no Outono do ano passado o seu compromisso em atingir a meta dos 40%.

Até à data, ainda não demonstraram como vão consegui-lo. Em vez de cobrar impostos às empresas públicas, o governo afirmou que lhes pagaria para encerrarem algumas centrais a carvão, alcançando metade das poupanças de emissões previstas. Para que a Energiewende seja bem-sucedida, a Alemanha terá de fazer muito mais.

“A estratégia sempre consistiu em modernizar edifícios antigos de maneira a que não consumam energia e satisfaçam o seu consumo efectivo com energias renováveis”

Também vai ter de abandonar a gasolina e o gasóleo. O sector dos transportes produz cerca de 17% das emissões da Alemanha. À semelhança das empresas de serviço público, os seus famosos fabricantes de automóveis demoraram a aderir à Energiewende, mas já produzem mais de duas dúzias de modelos de automóveis eléctricos. A meta do governo é pôr um milhão de automóveis eléctricos em circulação até 2020: até agora só existem cerca de quarenta mil. Estes veículos ainda são demasiado dispendiosos para a maioria dos alemães e o governo não forneceu incentivos sérios para os comprar. Por outras palavras, não fez pelos transportes aquilo que a lei de Hans-
-Josef Fell fez pela electricidade.

Muito disto aplica-se também aos edifícios, cujos sistemas de aquecimento emitem 30% dos gases com efeito de estufa da Alemanha. Rolf Disch, em Friburgo, é um de muitos arquitectos responsáveis pela construção de casas e edifícios que quase não consomem energia ou produzem mesmo um excedente. No entanto, na Alemanha não estão em construção muitos edifícios novos. “A estratégia sempre consistiu em modernizar edifícios antigos de maneira a que não consumam energia e satisfaçam o seu consumo efectivo com energias renováveis”, afirmou Matthias
Sandrock, investigador do Instituto Hamburg. “Essa é a estratégia, mas não está a resultar.”

Por toda a Alemanha, há edifícios antigos envolvidos numa camada de 15 centímetros de espuma de isolamento e remodelados com janelas modernas. Empréstimos com juro baixo concedidos pela banca, que ajudaram a reconstruir o Ocidente dilacerado com fundos do Plano Marshall, financiam muitos projectos. No entanto, só 1% do parque habitacional está a ser renovado por ano. Para que todos os edifícios se tornem climaticamente neutros até 2050 (a meta oficial), este ritmo precisaria de duplicar. Noutros tempos, o governo ventilou a ideia de exigir aos proprietários de imóveis que os remodelassem. A indignação pública derrubou a protoproposta…

“Depois de Fukushima, viveu-se um curto período de Aufbruchstimmung. Durante cerca de um ano, houve uma verdadeira euforia”, afirmou Gerd Rosenkranz. Aufbruchstimmung significa “a alegria da partida”: é aquilo que um alemão sente quando se prepara para partir para uma longa caminhada, por exemplo, na companhia de amigos. Com todos os partidos da Alemanha de acordo, a via era promissora, mas a euforia não durou. Agora, os interesses económicos defrontam-se. Na opinião de alguns alemães, talvez seja precisa outra catástrofe como Fukushima para catalisar um surto novo de progresso.

Nesta história sobre a aposta alemã em fontes renováveis, há um aspecto que convém fixar: os alemães sabiam à partida que a Energiewende nunca seria fácil e, mesmo assim, decidiram prosseguir. O que podemos aprender com eles? Não podemos transplantar o seu desejo de rejeitar a energia nuclear. Não podemos adoptar a sua experiência de dois grandiosos projectos de mudança nacional, reconstruindo o país quando parecia impossível há 70 anos, e reunificando o país quando ele parecia para sempre dividido há 25 anos. Mas podemos buscar a inspiração da Energiewende.

Num ensaio recente, o economista William Nordhaus, que durante várias décadas estudou a resolução para o problema das alterações climáticas, identificou aquilo que considera ser a essência do problema: os comportamentos à boleia dos outros. Uma vez que se trata de um problema mundial e fazer algo custa muito dinheiro, cada país tem a opção de nada fazer e esperar que outros tomem medidas. Enquanto a maioria dos países tem andado à boleia, a Alemanha comportou-se de maneira diferente: resolveu partir à frente. E, ao fazê-lo, tornou a jornada mais fácil para o resto do mundo.

 

Mais Sobre...
Grandes Reportagens