A arte de ensinar medicina.

“O Sr. Daniel de Mattos, habilíssimo lente de medicina da Universidade, presenteou o gabinete de anatomia patológica com uma peça rara, ‘chistos hidaticos do pericárdio’ que encontrou num caso na sua clínica.” Inserido na primeira edição do ano de 1892 do jornal “Diário Ilustrado”, entre notícias sobre montarias a lobos e contratações de professores primários, este curto texto dá conta de um processo em curso na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC). 

Desde o último quartel do século XIX que alguns dos mais prestigiados médicos da região muniam o gabinete de estudos patológicos com peças anatómicas provenientes dos casos que encontravam na prática médica quotidiana. Quistos, deformações, tecidos inflamados, manifestações cutâneas extremas ou fetos malformados durante as diversas fases da gestação foram sendo doados à Universidade para enriquecer a colecção de referência usada no ensino da Medicina. Mais tarde, quando as autópsias se generalizaram no Instituto de Anatomia Patológica e Patologia Molecular (excluindo, naturalmente, as autópsias de Medicina Legal), muitos órgãos com formação irregular foram igualmente encaminhados para a colecção, ordenados com método e paixão por Renato Trincão, que conferiu ordem e uniformidade ao acervo, ampliando-o.

Estávamos longe da era do consentimento informado e das considerações éticas sobre os direitos dos doentes. De alguma forma, a colecção “constituiu o ensino primário da medicina criado por um primeiro impulso de doações de cirurgiões que enviavam para aqui materiais numa fase em que o microscópio ainda não chegara à prática da anatomia patológica”, explica Lina Carvalho, directora do Instituto de Anatomia Patológica e Patologia Molecular da FMUC. “Aquilo era o ensino. Os estudantes viam as peças e entendiam o quadro sintomatológico.”


Avançando de estante em estante, progredindo de manifestação de doença em doença, os novos estudantes de Medicina continuam a cumprir esse ritual todos os anos. Contactam com velhos espécimes preservados, familiarizando-se com sintomas de doenças correntes e de doenças já extintas em boa parte do hemisfério norte, mas sobretudo percebendo que estes materiais – por vezes chocantes – serviram de modelos para muitos médicos que os precederam. 

“Ainda servem para os médicos que vão trabalhar para a América Latina ou para África e que precisam de conhecer como se manifesta a lepra, a sífilis ou a tuberculose. Infelizmente, a colecção tem utilidade nesse sentido porque essas doenças ainda persistem no planeta”, diz Lina Carvalho. No início de cada visita ao acervo, a médica costuma dizer: “Vamos entrar no templo da dignidade humana. Cada peça foi uma pessoa que já não está entre nós, mas cujo contributo nos permite conhecer a medicina da época e prevenir hoje para que nunca mais se repita.”

“Vamos entrar no templo da dignidade humana. Cada peça foi uma pessoa que já não está entre nós, mas cujo contributo nos permite conhecer 
a medicina da época.”

Carlos Robalo Cordeiro é director da FMUC e um defensor entusiasta da valorização deste espólio, que será integrado até final de 2020 como pólo de Medicina no futuro Museu de Ciência da Universidade de Coimbra. Como estudante da Universidade, contactou com muitas destas peças. “Perguntávamo-nos como fora possível deixar chegar aqueles tumores a fases tão avançadas”, lembra. “Na verdade, muitas peças contam a história da saúde pública em Portugal e da ausência do acesso a cuidados de saúde.
As pessoas escondiam doenças por vergonha, por desconhecimento, por superstições culturais. Não havia acesso a cuidados materno-infantis ou a cuidados de saúde primários. A saúde pública era exercida à base do esforço de alguns pioneiros, mas não chegava.” 

A figura quase grotesca de um feto de oito meses surpreende-nos num dos mostradores. A legenda, redigida no final do século XIX, dá conta da história terrível de uma mãe enforcada e de um feto assim perdido. Outras legendas referem-se a monstros ou monstruosidades, traduzindo numa linguagem crua o conhecimento de uma época. Lina Carvalho relativiza: “Muita linguagem que ainda usamos provém dessa época. Outra foi actualizada. Talvez os ‘monstros’ reflictam uma realidade que assustava, mas que hoje, com o conhecimento da genética, percebemos e identificamos os motivos para a sua ocorrência.”

escarrador

Um escarrador de Bordallo Pinheiro, resquício do longo combate contra a tuberculose.

Esta colecção pode assustar alguns, mas ela celebra a história do combate à doença em Portugal e comprova que hoje já não se pode chegar àqueles pontos. Com os meios complementares de diagnóstico e terapêuticas – as análises, a radiologia, a radioterapia – progredimos muito na prevenção e no diagnóstico precoce.”


Talvez a lição mais exemplar preservada nesta colecção provenha de um conjunto de artefactos preservados por Salvador Massano Cardoso e outros pioneiros da prática da medicina em Coimbra. Como homem de saúde pública e de epidemiologia, este médico dedicou-se à conservação de outro tipo de materiais – cartazes públicos, letreiros pedagógicos, instrumentos médicos e… escarradores. Alguns, executados por Rafael Bordallo Pinheiro, são absolutamente notáveis para lá da repugnância inicial que a sua função poderá desencadear. “Parecem objectos muito longínquos no tempo, mas, em 1986, no meu internato de pneumologia, ainda havia escarradores ao lado da cama dos doentes”, diz Carlos Robalo Cordeiro. “Era assim que se fazia a recolha das secrecções.”

A pneumologia é a única especialidade médica que não vem da medicina interna. “Provém da tisiologia, do estudo dos tísicos, dos tuberculosos”, diz este especialista em pneumologia. “Isso diz bem de como a sociedade entendia essa praga e o risco que esses doentes acarretavam para os outros. Só compreendemos os méritos do presente aceitando que foi daí que viemos – é fundamental não perder a identidade e a memória na Medicina, sobretudo nesta Universidade, onde só as Humanidades, a Teologia e o Direito têm um passado tão longevo.” Um curioso levantamento de Rosa Gouveia, coordenadora do acervo da FMUC, foi agora publicado, com todos os exemplares de escarradores conhecidos no acervo. Página atrás de página, ali figura a história do combate à doença mais terrível dos séculos XIX e XX.

museu

Tecidos e órgãos colhidos por vários patologistas portugueses, sobretudo de Coimbra, com o objectivo de os utilizar em contexto pedagógico. / Museu da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra

As doenças infecciosas produzem estigmas. Sempre foi assim desde os surtos medievais de peste. Parte do acervo do Museu do Instituto de Anatomia Patológica e Patologia Molecular  é constituido por obras de arte – representações em cera, da elegante casa francesa de Monsieur Vasseur, que representam sintomas de doenças mais ou menos comuns. Tinham a função de um livro de anatomia a três dimensões, mostrando manifestações cutâneas, abcessos e outros sintomas. “Doenças como a febre tifóide, a tuberculose ou a lepra eram fortemente estigmatizadas porque eram infecciosas e não existia terapêutica para elas. Acarretavam uma sentença de morte para os doentes que, ainda por cima, eram considerados a partir de então um manancial de infecção para a comunidade”, diz Lina Carvalho. Aquelas doenças ficaram para trás, mas os estigmas persistem. “Será assim tão diferente do modo como a sociedade viu os doentes de SIDA quando a doença foi identificada, mas ainda não existia qualquer terapêutica válida?” Aliás, a patologia molecular permitiu, nos tumores, melhorar a sobrevivência dos doentes e o diagnóstico precoce.

No antigo Paço Real de Coimbra, a Reitoria produz no visitante o respeito que só as velhas paredes, repletas de história, conseguem incutir. Amílcar Falcão é desde Março de 2019 o reitor e, por coincidência, é professor catedrático de Farmácia. Poucos poderiam assimilar com tanto conhecimento de causa a importância da preservação da maior colecção da Europa de peças de anatomia patológica em volume e diversidade.
A Universidade prepara-se para comemorar, a partir de Março, o 730.º aniversário e a requalificação desta colecção é um dos tijolos num projecto mais ambicioso de criação de um grande museu da Universidade, com múltiplos pólos especializados. 

“Praticava-se Medicina em Coimbra antes da fundação da Universidade e antes até da fundação do país”, lembra. “Temos uma obrigação histórica de respeitar o legado contido entre estas velhas paredes”, diz. Classificada como Património Mundial pela UNESCO, a Universidade comprometeu-se a preservar a dupla e rara condição que a torna única. É um museu, mas é também um espaço vivo, onde se ensina e onde se investiga. “Temos de conviver com essa dupla valência, preservando a memória da Universidade e respeitando o que a torna única. Até final de 2020, queremos ter aberto o pólo de Medicina do Museu de Ciência. Outros se seguirão.” 

Os edifícios mais antigos da Universidade, como a Biblioteca Joanina e o Paço das Escolas, são visitados por mais turistas do que nunca. Em muitos dias, ambos superam a capacidade de carga, prejudicando a experiência e colocando em risco o futuro dessas jóias históricas. Parte do impulso para o Museu da Ciência resulta da necessidade de diversificar os fluxos para outros espaços. “Lembre-se que temos uma longa história para contar. Quase todos os colégios de Coimbra têm um património incrível”, diz o reitor.