O registo arqueológico diz-nos que convivemos e co-evoluímos com esta doença há milhares, senão mesmo há milhões de anos. Os gregos chamavam-lhe tísica (phthisis), os europeus do século XVIII peste branca, mas é em 1834 que Johann Lukas Schönlein usa pela primeira vez o termo pela qual é mais conhecida hoje: tuberculose.
É preciso esperar quase mais 50 anos (1882) para, por fim, se saber a causa da doença: a Mycobacterium tuberculosis (ou bacilo de Koch). No final do século XIX, 70 a 90% da população urbana da Europa e da América do Norte está infectada. Pela mesma altura, começam a aparecer os primeiros sanatórios, inclusive em Portugal. Muitos foram inicialmente pensados para doentes de classes mais abastadas e promoviam a recuperação dos doentes em boas condições de salubridade. À falta de tratamento específico, o “ar puro da montanha”, uma alimentação equilibrada e o afastamento dos doentes das zonas mais populosas eram as apostas para controlar a disseminação e minimizar a mortalidade.
NUNO MIGUEL VALENTE
Sanatório Albergaria do Grandella, em Cabeço de Montachique, um espaço doado pelo filantropo republicano Francisco Grandella em 1918 ao país e cujo projecto, não concluído, tem a forma de uma estrela de sete pontas. Cortesia de Nuno Miguel Valente.
A tuberculose é hoje uma doença prevenível e, em 95% dos casos, curável.
Depois da Primeira Guerra Mundial chega a BCG – a Vacina do Bacilo Calmette-Guérin desenvolvida inicialmente em 1921, eficaz contra a tuberculose e a lepra, fazendo parte do Plano Nacional de Vacinação em Portugal desde a sua criação em 1965 até 2016 – e uns anos mais tarde, os primeiros antibióticos. A humanidade podia finalmente começar a fazer tender a balança para o outro lado.
UM Efeito pERverso
De qualquer modo, nunca fomos capazes de a erradicar, e as assimetrias nos resultados dos avanços médicos na luta contra a tuberculose são um espelho das desigualdades sociais e económicas ao longo do tempo: na Europa Ocidental e na América do Norte do século XX vários esforços de vacinação obrigatória, quer da população, quer do gado susceptível, permitiram decréscimos colossais na incidência e na mortalidade.
Ao mesmo tempo, estes avanços acabaram por ter o efeito perverso de induzir na população a percepção da tuberculose como um mal de que já só padece quem não consegue aceder aos melhores tratamentos ou não foi vacinado: as classes mais pobres dos países desenvolvidos ou os países em vias de desenvolvimento como um todo. De uma doença que chegou a ser romantizada no século XIX, por se pensar atingir mais frequentemente pessoas de “maior sensibilidade”, passámos à tuberculose como sinónimo de classe baixa e/ou de más condições de higiene.
Nos anos 1990, o mundo assiste ao pico de infecções por VIH/SIDA: das muitas doenças oportunistas capazes de se aproveitar do sistema imunitário debilitado destes doentes, a tuberculose destaca-se. O estigma e a discriminação ganham assim uma nova matiz: o que é associado a cada uma delas, passa a ser estendido à outra.
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Malásia, 2 de Outubro de 2018: Administração da vacina BCG numa escola da cidade de Kota Kinabalu.
a sentença de orwell e pompadour
A doença e o sofrimento que a tuberculose provocou foi documentada por alguns dos seus ilustres portadores, como os escritores Cesário Verde e George Orwell, ou por quem conviveu com eles.
No início de 1764, a marquesa Jeanne-Antoinette Poisson – mais conhecida por Madame de Pompadour – descobriu que padecia da doença, não tendo passado do dia 15 de Abril desse ano. "Estou muito triste com a morte de Madame de Pompadour. Parece absurdo que, enquanto um velho burocrata, dificilmente capaz de caminhar, deve ainda estar vivo, uma mulher bonita, no meio de uma esplêndida carreira, deveria morrer na idade de quarenta e dois", escreveu Voltaire na sequência da morte de Jeanne-Antoinette.
Já George Orwell, que compôs tuberculoso a distopia "1984", numa carta escrita em Dezembro de 1947 à amiga Celia Kirwan a partir de Jura, na Escócia, relatava como estava a lidar com a doença: "Trouxe cá um especialista em tórax. Ele diz que tenho de ir para um sanatório, provavelmente durante cerca de quatro meses. É uma chatice terrível, mas talvez seja melhor assim, se me conseguirem curar". E como tudo terá começado? Em Maio de 1937, ao combater do lado republicano na Guerra Civil Espanhola, Eric Blair (o nome civil de George Orwell) foi atingido na garganta por um atirador e por pouco não morreu. Foi curado num hospital de Barcelona, onde foi alegadamente infectado pelo bacilo de Koch.
Forward. Na véspera de Natal de 1947, o escritor era internado no Hospital Hairmyres, perto de Glasgow. Aos 44 anos, descobria que sofria de "tuberculose pulmonar crónica". No início de 1948 começou a tomar estreptomicina, o primeiro agente específico efectivo no tratamento da doença que valeu ao seu criador um Prémio Nobel. "Estou muito melhor, mas tive uma quinzena má com os efeitos secundários da estreptomicina. Suponho que, com todos estes medicamentos, é como se estivéssemos a afundar o navio para nos livrarmos dos ratos", confidenciou Eric em Abril desse ano por carta ao também escritor Julian Symons. Orwell morreu aos 46 anos, a 21 de Janeiro de 1950, vítima da infame e impiedosa bactéria.
DOMÍNIO PÚBLICO
"Madame de Pompadour à son métier à broder", uma obra de François-Hubert Drouais iniciada em 1763 e finalizada no ano seguinte, a poucos dias da morte da cortesã francesa.
AS "dúvidas" e os "terrores do futuro" de CESÁRIO VERDE
Em Portugal, temos as cartas e a obra poética de Cesário Verde como testemunhos de uma era em que a tuberculose foi uma sentença de morte. Os seus poemas estão repletos de referências à doença que o condicionou pelo menos durante uma década. Em "Contrariedades", de 1876, o poeta manifestava o desconforto causado pela "tísica": "E a tísica? / Fechada, e com o ferro aceso! / Ignora que a asfixia a combustão das brasas / Não foge do estendal que lhe humedece as casas / E fina-se ao desprezo! / Mantém-se a chá e pão! / Antes entrar na cova".
Além de Cesário Verde, a sua irmã Maria Júlia e o seu irmão Joaquim também morreram de tuberculose.
Já em "Nós", de 1884, como bem lembra o médico Francisco Sobral do Rosário na sua comunicação "Cesário Verde, a Doença e a Medicina", descrevia "o efeito provocado nos familiares, certamente tão desesperados como ele próprio com a sucessão de doença e morte na família" – além de Cesário, a sua irmã Maria Júlia e o seu irmão Joaquim também morrreram de tuberculose. Nesse poema, escreveu sobre Maria Júlia e, por extensão sobre si e os mais próximos: "Era essa tísica em terceiro grau,/ Que nos enchia a todos de cuidado,/ Te curvava e te dava um ar alado/ Como quem vai voar d'um mundo mau./ Era a desolação que inda nos mina (Porque o fastio é bem pior que a fome)/ Que a meu pai deu a curva que o consome, /E a minha mãe cabelos de platina!".
Em 1886, o poeta é observado em consulta pelo doutor Sousa Martins, médico de renome que dedicou parte da sua carreira ao combate à tuberculose. Quanto a um eventual sucesso do tratamento a que se submete nesta fase, numa carta ao Conde de Monsaraz, o poeta e comerciante expressa as suas dúvidas: “Em volta de mim, pessoas, coisas, tudo anda amolentado, cansado. As melhoras, as próprias melhoras que os medicamentos chamam e espicaçam com o aguilhão da sua química, e que eu estimulo com a aguilhada da minha vontade, essas mesmas vão ronceiras, moles, a passo de boi, muito devagar, muito devagar. Mal as vejo mexerem-se na longa estrada do tempo. (...) Mas subitamente chegam-me dúvidas, descrenças, terrores do futuro. Curo-me? Sim, talvez. Mas como fico eu? Um cangalho, um canastrão, um grande cesto roto, entra-me o vento, entra-me a chuva no corpo escangalhado.”
Cesário Verde falece aos 31 anos. A sua única obra, O Livro de Cesário Verde, foi organizada postumamente pelo seu amigo Silva Pinto e publicada em 1887.
a TUBERCULOSE NO SÉCULO xxi
Apesar dos avanços na prevenção e tratamento, a tuberculose continua no século XXI a ser um problema de saúde pública a nível mundial: a incidência atingiu o seu mínimo histórico em 2019 e, não obstante, a Organização Mundial de Saúde declarou-a a maior causa de morte por doença infecciosa no mundo, responsável por 1,2 milhões de mortes apenas nesse ano. A chegada do SARS-CoV-2 e da pandemia COVID-19 relegou-a para a segunda posição, mas, preocupantemente, com o primeiro aumento de incidência dos últimos 15 anos. A este novo desafio, juntaram-se o crescimento de estirpes multirresistentes (MDR-TB) e extremamente resistentes (XDR-TB), resultando a nível mundial em 10,6 milhões de infectados e 1,6 milhões de mortes em 2021. Em Portugal conseguimos escapar ao aumento de casos, mas o ritmo da redução que se vinha a registar nos últimos tempos abrandou.
Em 2019, a Organização Mundial de Saúde declarou-a a maior causa de morte por doença infecciosa no mundo, responsável por 1,2 milhões de mortes apenas nesse ano.
Acabar com a epidemia de tuberculose está entre as metas de saúde dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas para 2030. Embora o cenário traçado possa parecer desolador, é importante ter em consideração que a tuberculose é uma doença prevenível e, em 95% dos casos, curável. Mesmo em doentes imunocomprometidos onde a cura pode não ser uma opção, acesso atempado a meios de diagnóstico e fármacos adequados conseguem melhorar significativamente a qualidade de vida e atenuar os sintomas da doença.