É um dos problemas de saúde mais pesquisado no Google, o famoso soluço. Saiba o que os cientistas estão a descobrir sobre a evolução deste reflexo – e como pará-lo.

Sierra Pisenti sabe o que são soluços.

Ela gostaria mesmo muito de não saber. Os seus soluços são sonoros e dolorosos, podem durar horas e surgem mais do que doze vezes por mês desde bebé. Quando tem uma crise grave, é como se tivesse levado um murro no peito. “É um pesadelo”, diz Pisenti, uma mãe a tempo inteiro residente na Califórnia.

Os seus soluços não devem ser tão graves como os de Pisenti, mas é provável que reconheça a temível sensação: um aperto no peito, o característico “hic” — e o desespero de os fazer parar. E é provável que, tal como ela se interrogue:

“Como é possível que não haja uma solução?”

Os soluços estão profundamente enraizados na nossa história evolutiva. Contudo, passados milhões de anos, dezenas de milhares de anos de resolução de problemas por seres humanos e décadas de medicina moderna, a sua origem e finalidade permanece bastante misteriosa.

“Coisas como esta, consideradas óbvias ou muito simples, são frequentemente desvalorizadas por muitos médicos”, diz Mark Fox, gastroenterologista da Universidade de Zurique, na Suíça. “Engolir, comer, beber, coisas que acontecem na vida normal – nada disto irá matá-lo se não funcionar bem. Mas vai arruinar a sua vida!

Aos poucos, os investigadores começam a abordar os dois termos da equação dos soluços: primeiro, por que razão existem? E segundo, como poderemos livrar-nos deles?

Será que soluçamos porque fomos, em tempos, peixes?

Os soluços são um reflexo simples, como dar um pontapé quando um médico nos bate no joelho, e são omnipresentes entre os mamíferos, desde cães domésticos a cavalos ou coelhos.

São controlados por um arco reflexo que transporta sinais nervosos desde o diafragma até ao cérebro e vice-versa – sucessivamente. Primeiro, algo leva o diafragma – o músculo fino existente na base dos seus pulmões – a contrair-se. Este desloca-se para baixo quando se flecte, criando espaço para os pulmões se expandirem, tal como numa inspiração normal. A meio da inspiração, porém, o reflexo manda a epiglote – a pequena prega de tecido do topo da sua garganta que impede a comida de entrar para a traqueia – fechar-se. É esse o som “hic” e o ciclo repete-se até algo interromper o arco.

O impulso original tem frequentemente origem nos nervos frénico ou vago, que se desenvolveram nos nossos antepassados aquáticos: anfíbios e peixes com guelras. O culpado habitual é o nervo frénico, um cordão comprido com formato ineficiente que desce ao longo do peito até ao diafragma. Surgiu pela primeira vez nos antepassados piscícolas dos mamíferos – mas o seu era curto. Dirigia-se directamente às guelras, passando mesmo ao lado do cérebro, em vez de descer até ao distante diafragma. Nos mamíferos contemporâneos existe demasiado nervo, que se pode enredar e ser activado por um impulso.

O soluço propriamente dito poderia ser útil quando os peixes evoluíram e se transformaram em anfíbios que viviam parcialmente em terra. Estes precisavam de alternar entre sistemas de respiração: guelras dentro de água e pulmões no ar. O “hic” que fechava a epiglote ancestral permitia-lhes enviar água para a boca e, em seguida, para as guelras sem encherem os pulmões.

Vale a pena recordar que a evolução não faz as coisas perfeitas, usando aquilo que tem à mão, lembra Dan Howes, médico de urgências com um interesse duradouro em soluços da Queens University, em Ontário, no Canadá.

Ou talvez solucemos porque fomos, em tempos, bebés.

Porém, uma vez, que já não respiramos debaixo de água, porque será que o reflexo ainda não desapareceu?

Talvez por haver outras vantagens, de acordo com Howes. Uma das coisas que (quase) todos os mamíferos bebés fazem é chupar leite. Os bebés soluçam com muito mais frequência do que os adultos. Quando bebem leite, também sugam ar adicional. Howes sugere a possibilidade de os soluços ajudarem a remover esse ar do estômago de forma reflexa – à semelhança de um arroto propositado.

Existem algumas evidências de que, depois de arrotarem, os bebés conseguem ingerir até 20 a 30 por cento mais leite, o que se traduz num aumento significativo das calorias e numa “vantagem de sobrevivência bastante considerável”, diz.

Não são apenas as crianças pequenas que soluçam com frequência (até um por cento do dia inteiro). Os fetos com apenas dez semanas de idade também. E é evidente que ainda não estão a mamar.

Kimberley Whitehead, investigadora de University College London, apresentou a hipótese de os soluços poderem ajudar a treinar os cérebros dos fetos a cartografar o interior do seu corpo. “Um bebé precisa de aprender ‘onde é o meu diafragma, onde é o sítio onde posso exercer controlo sobre a minha respiração’”, afirma. Os soluços podem ajudá-los a “treinar” a respiração, de modo a estarem prontos para o fazer assim que nascerem.

Num dos seus estudos, ela ligou um conjunto de bebés, alguns prematuros e outros com alguns meses de idade, a eléctrodos de EEG (eletroencefalografia) e observou os seus cérebros enquanto eles tinham ataques de soluços. A zona do córtex associada à actividade torácica – a parte central do corpo onde se encontram os nossos pulmões e o diafragma – iluminou-se durante os soluços. Isso mostrou que os soluços estavam a desencadear a actividade cerebral, ajudando os bebés a “cartografar” aqueles músculos no cérebro.

Será que alguém me pode ajudar a livrar-me destes soluços?

Cerca de 4.000 pessoas visitam todos os anos os hospitais dos EUA em busca de ajuda para a mais benigna das maleitas, mas toda a gente padece dela: os soluços são rotineiramente um dos problemas de saúde mais pesquisados no Google.

A maioria dos casos resolvem sozinhos em dois dias. Ataques mais longos podem ser sinal de um problema subjacente, como um tumor cerebral. Os “soluços intratáveis”, contínuos e persistentes, são também efeitos secundários comuns de tratamentos de quimioterapia ou esteróides; mais de 90 por cento dos casos ocorrem em homens com mais de 50 anos. Nos casos intratáveis, o melhor tratamento é abordar a condição subjacente.

Os médicos testaram um conjunto de fármacos para tratar os soluços: alguns relaxam os músculos, possivelmente acalmando os espasmos do diafragma, ou alteram a reactividade dos nervos. Existe, porém, “uma falta de evidências de qualidade para recomendar um tratamento específico”, afirmam neurocientistas da Universidade de Loyola, em Chicago, num estudo publicado em 2018.

Um grupo de investigação japonês recorreu a outra estratégia: fez as pessoas inalar CO2 altamente concentrado. “Resumindo, um determinado nível de retenção de CO2 no organismo engana o cérebro, levando-o a pensar que está perante uma emergência que lhe ameaça a vida e fá-lo esquecer-se dos soluços”, escreveu Toshiro Obuchi, cirurgião torácico e especialista em soluços de St. Mary’s Hospital, em Himeji, no Japão.

Contudo, se não puder voar até ao Japão para ser tratado pelo Dr. Obuchi, aquelas mezinhas antigas – como beber um copo inteiro de água num golo só, fazer o pino ou apanhar um valente susto – podem efectivamente funcionar porque partilham um princípio essencial: interrompem o arco reflexo ao distrair os nervos e os músculos com outra coisa, diz Ali Seifi, neurointensivista da Universidade do Texas, em San Antonio, que ficou obcecado com encontrar uma cura depois de ver um paciente acordar com soluços inexplicáveis após uma cirurgia ao cérebro.

Beber um copo de água num só golo, por exemplo, obriga o músculo do diafragma a criar sucção continuamente, o que ocupa o nervo frénico interrompendo uma parte do reflexo. Um susto obriga o nervo vago, que controla as reacções calmantes, a entrar em acção, interrompendo outra parte do reflexo.

Contudo, Seifi concebeu uma ferramenta mais uniforme: uma palhinha chamada Hiccaway que obriga o utilizador a chupar com muita força – como se estivesse a beber um batido espesso. Ele teoriza que o esforço usa ambos os nervos, eliminando a sua capacidade de manter os soluços.

Pisenti, como muitas pessoas que sofrem de soluços a longo prazo, nunca foi diagnosticada com soluços intratáveis: a medicina nem sempre leva a doença a sério. Por isso, encontrar a palhinha foi uma revelação. Ela vai buscá-la assim que começa a soluçar e, embora não a livre dos soluços para sempre, obriga-os a parar temporariamente. “Mudou a minha vida”, declara.

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