Mas… cozinhar é exactamente o quê? – interrogou-se Ferran Adrià depois de passar anos atrás dos fogões na cozinha do seu famoso restaurante el Bulli e de se ter tornado um chef de renome internacional. Para investigar a questão, a elBulli-foundation lançou o projecto Bullipedia, que engloba um conjunto de obras temáticas que narram a evolução da arte da cozinha do Paleolítico até à actualidade.
“Actualmente, existem 23 obras publicadas que podem ser consultadas no nosso site e nas grandes livrarias. Temos vários projectos em curso todos os anos, com equipas multidisciplinares que vão produzindo novos volumes. A verdade é que não existe um horizonte finito, a Bullipedia é um conceito vivo que continua a abrir caminho para a criação de um conteúdo de qualidade. De momento, a planificação estende-se até 2027”, explica o fundador.
“Grande parte das técnicas culinárias que os nossos antepassados usavam são reproduzidas na actualidade praticamente da mesma forma.”
A gigantesca tarefa é gerida com a metodologia Sapiens, especialmente criada por Ferran Adrià e pela elBullifoundation para oferecer uma visão holística de um processo decorrente de uma necessidade básica, a alimentação, que foi evoluindo ao ritmo das sociedades humanas.
Adrià, cozinheiro profissional desde a década de 1980, acredita que, para especificar o que é cozinhar, é preciso antes de mais nada assumir que não existe apenas uma resposta. “Poderíamos defini-lo, em primeiro lugar, como uma acção que envolve a transformação de um produto em alimento, resultante da utilização de determinada técnica, da utilização de uma ou várias ferramentas e da aplicação de determinados conhecimentos. Mas haveria outra definição que responderia não tanto ao simples facto de cozinharmos para nos alimentarmos, mas a um objectivo mais hedonista: a procura de prazer e satisfação, tanto no processo de cozinhar como no de degustação à volta da mesa”. Hoje em dia, acrescenta, numa sociedade que habitualmente não cozinha em casa por falta de formação básica e de tempo (nos Estados Unidos até 20% das refeições são consumidas no carro), cozinhar é também um acto de compromisso social e pessoal que transcende o conceito de nutrição e tem que ver com os laços que fortalecemos com o nosso povo e a nossa terra. “Cozinhar é cuidar de si e da família, é saúde e é estar em contacto com o produto, a sazonalidade e o território”, sublinha. Como eram os cozinheiros do Paleolítico? Eram assim tão diferentes de nós? O estudo da gastronomia da pré-história “ajudou-me a perceber que grande parte das técnicas culinárias que os nossos antepassados usavam são reproduzidas na actualidade praticamente da mesma forma”, diz Adrià.
“A tecnologia, as ferramentas ou os materiais mudaram, mas a acção e o processo são os mesmos. Não, não somos assim tão diferentes.” Esta actividade tornou-nos mais humanos e impulsionou-nos a evoluir. “Os nossos antepassados conseguiram transformar o produto que obtinham da natureza, tornando-o mais digerível. Primeiro, aprenderam a cortar e a obter pequenos pedaços de carne da presa com uma lasca de pedra. Depois, com a fermentação e o fogo, introduziram cheiros, sabores e texturas muito mais agradáveis, que permitiram aos antigos hominídeos usufruir do que comiam e que abriram as portas aos primeiros banquetes e à celebração do acto de comer.” Essa celebração é especialmente evidente em alguns períodos da história, como “nos primeiros banquetes de civilizações como a antiga Mesopotâmia, o Egipto, a Grécia ou Roma, no nascimento do requinte e dos bons modos à mesa na Renascença, no esplendor do hedonismo da época de ouro da grande cozinha francesa…”, salienta.
Mais tarde, surgiu a figura do restaurante moderno, a gastronomia democratizou-se e a arte culinária passou para a esfera pública. Um “público” potencial que em 2050 rondará 10 mil milhões de pessoas. Para satisfazer todos estes comensais, insiste Adrià, teremos de gerir de forma eficiente os recursos e a produção de alimentos. “Há muitos investigadores, engenheiros e produtores alinhados e com grandes ideias para um futuro não tão distante”, diz Adrià. “Os hábitos alimentares actuais podem não ser os mais sustentáveis e iremos certamente alterar a nossa alimentação. Mas isso aconteceu em todas as grandes épocas da história. Hoje, não comemos da mesma forma que comíamos há dois séculos”. Veremos que caminhos seguirá a alimentação do futuro. Serão sem dúvida o resultado das nossas próprias decisões.
“Os hábitos alimentares actuais podem não ser os mais sustentáveis e iremos certamente alterar a nossa alimentação. Mas isso aconteceu em todas as grandes épocas da história.”