Steve Selvin tinha 70 e poucos anos quando surgiram alguns sinais de que não estava bem: contava histórias sobre o passado, mas mostrava-se estranhamente reservado sobre o presente. Respeitável especialista em estatística, reformara-se do seu cargo como professor na Universidade da Califórnia, em Berkeley. “Achámos que era ansiedade ou depressão”, diz a sua filha, Liz Selvin.

O comportamento de Selvin – facilmente confundível com outros problemas de saúde mental devido ao facto de as alterações terem sido graduais – era um sintoma de demência. O professor foi hábil a esconder o seu crescente declínio cognitivo – até deixar de ser, diz Liz. O seu pai começou a deixar pessoas estranhas entrar em casa. Repetia-se. Esquecia-se do que comera ao pequeno-almoço. Agora, uma década mais tarde, vive num centro de cuidados de memória na Califórnia.

A doença de Alzheimer e outras demências afectam tantas pessoas que muitos de nós conhecem ou conheceram alguém afectado pela doença. Mais de 55 milhões em todo o mundo padecem deste mal, sendo que a Alzheimer Europe prevê que 2,29% da população portuguesa sofra de demência em 2025.

A longa jornada até ao diagnóstico de celebridades como o actor Bruce Willis— que padece de demência frontotemporal — está a contribuir para a consciencialização de quão difícil é descobrir a forma e a causa destas doenças que devastam o cérebro.

A Alzheimer Europe prevê que 2,29% da população portuguesa sofra de demência em 2025.

A demência é uma síndrome causada por diversas doenças ou lesões que destroem as células cerebrais e cortam as sinapses que as ligam, diz Timothy Rittman, neurocientista da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Diminui progressivamente a capacidade de pensar, raciocinar, controlar o humor e o comportamento e manter a mobilidade. É tão incapacitante para a vida que os pacientes nem sequer conseguem executar tarefas simples do quotidiano sem ajuda. A dada altura, Steve Selvin, um génio matemático, não conseguia usar uma máquina de multibanco.

Embora afecte sobretudo as pessoas mais velhas, “não faz parte do envelhecimento normal”, comenta Rittman.

A forma como as demências se manifestam depende na zona do cérebro que se encontra danificada. Algumas formas podem, de certo modo, ser geridas. Poucas são reversíveis. Apenas um tipo, causado por fugas de líquido cefalorraquidiano, é curável, e existem poucas opções de tratamento para as outras, diz Wouter Schievink, neurocirurgião do Cedars-Sinai Medical Center, em Los Angeles. “Existem poucos medicamentos e todos são de altíssimo risco e garantem poucos benefícios.”

O custo financeiro dos cuidados é esmagador. A Organização Mundial da Saúde estima que a demência tenha custado 1,3 biliões de dólares às economias globais em 2019 – sendo este o valor mais recente. Cerca de metade da responsabilidade dos cuidados recai sobre familiares e amigos, sobretudo mulheres, com sérias consequências emocionais e físicas.

A investigação começa a esclarecer-nos sobre as causas e os factores de risco – desde a predisposição genética a escolhas de estilo de vida, lesões ou impactos causados por outras doenças. No entanto, ainda há muito por descobrir.

Sintomas comuns

O risco aumenta com a idade e há uma grande variedade de sintomas precoces. Alguns podem ser facilmente desvalorizados numa sociedade onde muitas pessoas estão sobrecarregadas e executam múltiplas tarefas em simultâneo, como esquecerem-se de coisas e colocarem objectos em sítios indivíduos, perderem a noção do tempo ou perderem-se enquanto conduzem.

No entanto, quando a confusão reina durante a maior parte do tempo – as tarefas corriqueiras se tornam complicadas, a pessoa tem dificuldades em falar, lembrar-se de coisas, lidar com o dinheiro ou avaliar distâncias visualmente – o diagnóstico torna-se mais simples.

Em alguns casos, as alterações de personalidade precedem os problemas de memória: as pessoas ficam irritáveis, ansiosas, agressivas, tristes ou zangadas. Podem evitar os outros ou comportarem-se de formas inapropriadas – ou até chocantes.

Quando as tarefas corriqueiras se tornam complicadas, a pessoa tem dificuldades em falar, lembrar-se de coisas, lidar com o dinheiro ou avaliar distâncias visualmente, o diagnóstico torna-se mais simples.

“O declínio não é linear com a demência”, diz Melissa Toms Minotti, investigadora da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg, no Maryland, cujo conhecimento desta condição é profissional e pessoal. Para o seu pai, Richard Toms, e os pacientes com demência que ela já viu no centro de investigação, “todos os dias são um dia diferente”.

Alzheimer, Corpos de Lewy e demência vascular

O tipo mais comum e conhecido de demência é a doença de Alzheimer. Os investigadores estimam que possa causar cerca de 5,8 milhões de casos de demência nos EUA. Os Centros de Controlo e Prevenção de Doença dos EUA. projectam que este número atinja os 14 milhões até 2060.

Os dois principais suspeitos por detrás desta doença são aglomerados de proteínas conhecidos como placas e emaranhados, que danificam e matam as células cerebrais. Um fragmento de proteína chamado beta-amilóide acumula-se, formando placas entre as células nervosas. Os emaranhados – fibras entrelaçadas de uma outra proteína, denominada tau — acumulam-se no interior das células. E quando estão rodeadas por materiais tóxicos, as células nervosas morrem.

Apenas um tipo de demência, causado por fugas de líquido cefalorraquidiano, é curável. A doença de Alzheimer, a demência com corpos de Lewy, a demência vascular e "demência mista" não têm cura.

Outras doenças ou lesões causam demência por terem um impacto directo ou indirecto no cérebro. Falamos, por exemplo, da demência com corpos de Lewy, caracterizada por depósitos anormais de uma proteína denominada alfa-sinucleína nas células nervosas do cérebro que controlam o raciocínio, a memória e o movimento. Os pacientes também podem ter alucinações recorrentes, tremores ou rigidez, tensão arterial e batimentos cardíacos erráticos ou outras disfunções do funcionamento automático do organismo.

A tensão arterial alta, ou qualquer outra coisa que interrompa o fluxo constante de sangue e oxigénio ao cérebro, pode provocar uma terceira condição chamada demência vascular. Os sintomas podem aparecer súbita ou gradualmente. Embora os AVCs nem sempre causem demência vascular, no caso de “acidentes múltiplos, uma porção suficiente do seu cérebro morre e deixa de haver tecido saudável suficiente para funcionar”, diz Josef Coresh, que vai inaugurar o novo instituto de envelhecimento Optimal Aging Institute na NYU Langone Health, em Nova Iorque, em Novembro.

Existe um tipo de demência frontotemporal que danifica os lobos frontais do cérebro, alterando a personalidade, a conduta social e a capacidade de controlar emoções. Outro tipo, causado por danos nos lobos temporais (localizados na zona lateral da cabeça, junto às orelhas), faz com que as pessoas percam vocabulário, tenham dificuldades em falar ou se esqueçam para que servem objectos do quotidiano. O problema pode ser genético, tal como outras demências, e pode manifestar-se mais cedo, na meia-idade.

Infecções virais, incluindo a encefalite viral, a gripe e o herpes também foram associados à demência, bem como o consumo abusivo de álcool ou as lesões cerebrais.

A inflamação é um factor, diz Rittman. Quando ocorre uma invasão por um vírus, um AVC ou um golpe na cabeça, as células inflamatórias especiais do cérebro dirigem-se ao local para tentar reparar a área afectada. Deixam uma cicatriz que perturba o funcionamento normal e interrompe as ligações entre as células cerebrais, diz Rittman. “Talvez seja a inflamação que faz com que estas proteínas [no cérebro] mudem.”

A perda de audição, que afecta a maioria das pessoas com mais de 70 anos, também pode contribuir para a demência. Alguns medicamentos também acarretam riscos, incluindo medicação para tratar a azia, a depressão, a incontinência e sintomas de doença de Parkinson, entre outros problemas de saúde.

Para complicar ainda mais as coisas, os estudos mostram-nos agora que muitas pessoas padecem de “demência mista”, que pode ser desencadeada por diversos factores, o que pode ajudar a explicar por que os sintomas variam entre indivíduos.

Aquilo que sabemos e aquilo que não sabemos

Coresh diz que o cérebro é “a última fronteira” por ser um órgão tão complexo. Compara, de forma contrastante, o seu funcionamento com o do coração. “O coração é um músculo e tem tubos que podemos observar. O cérebro, por outro lado, é uma máquina electroquímica a uma nanoescala muito precisa. Tem uma rede interna enorme, com dezenas de núcleos e milhares de milhões de vias.”

Sabe-se muito sobre a função de diferentes partes do cérebro e a forma como se interligam. O próximo passo, diz Coresh, é relacionar as alterações químicas com as alterações na rede cerebral e as alterações comportamentais.

Rittman diz que, sob o microscópio, é possível ver a acumulação de determinados grumos de proteínas dentro das células cerebrais – e em seu redor. “O que fazem estas proteínas? Às células cerebrais? Para diminuir a cognição?”, pergunta. “Essa é a pergunta de um milhão de dólares na demência”.

Identificando quem está em risco

Em pessoas que possuam uma mutação genética que aumente dramaticamente o risco de desenvolverem doença de Alzheimer ou demência frontotemporal, as mudanças no funcionamento cerebral podem surgir décadas antes do aparecimento dos sintomas. Para descobrir se isto se aplicava a outros grupos, Rittman e outros cientistas de Cambridge analisaram dados do U.K. Biobank, que contém informações sobre a saúde, genética, estilo de vida e acuidade mental de meio milhão de indivíduos. Uma vez excluídas as pessoas com demência diagnosticada, os testes cognitivos revelaram indícios de que o declínio neurológico pode ser perceptível até nove anos antes do diagnóstico.

Coresh e uma equipa da Faculdade de Medicina da Universidade Johns Hopkins juntaram-se ao National Institute on Aging, enveredando por um caminho diferente do da equipa britânica. Examinaram o plasma sanguíneo de cerca de 11.000 adultos entre os 45 e os 65 anos de idade em busca de ligações entre determinadas proteínas e riscos cognitivos. Identificaram 32 proteínas que podem ser encontradas entre 20 e 30 anos antes da demência, diz Coresh. Algumas afectam o processo da doença vascular, uma inflamação tóxica para as células nervosas, ou a comunicação entre as células nervosas.

Segundo um estudo britânico, o declínio neurológico pode ser perceptível até nove anos antes do diagnóstico. 

No futuro, estas proteínas poderão ser utilizadas para rastreio de pessoas em risco – e tornar-se indicadores precoces de diagnóstico e intervenção.

Prevenindo a demência?

Embora haja factores de risco definidos, proteger a saúde do cérebro e prevenir a demência é possível, dizem os especialistas, através dos mesmos hábitos que se usam para evitar o cancro, a diabetes e a doença cardíaca: uma alimentação nutritiva, exercício físico, não fumar e manter o açúcar no sangue e a tensão arterial sob controlo.

Um estudo de três décadas determinou que desenvolver hipertensão na meia-idade está associado a um posterior aumento do risco de demência. “Felizmente, a doença vascular é eminentemente evitável… e a hipertensão e a diabetes são tratáveis”, diz Coresh. Ele diz que “a taxa de demência [per capita] está a diminuir nos EUA e na Europa porque as pessoas estão a fazer vidas mais saudáveis”. Algumas estimativas sugerem uma redução de 15 por cento dos casos por década ao longo dos últimos 30 anos.

Uma alimentação nutritiva, exercício físico, não fumar e manter o açúcar no sangue e a tensão arterial sob controlo podem ajudar a prevenir a demência.

Rittman partilha uma perspectiva optimista. “Estamos a fazer bons progressos no sentido de perceber como isso poderá levar à prevenção e/ou ao tratamento”, diz.

No entanto, isso não ajuda as pessoas que padecem actualmente destas condições que afectam de forma tão profunda a vida – nem os seus entes queridos. Melissa Toms Minotti partilhou a história da demência vascular do seu pai para enfatizar o stress, o sofrimento e a imprevisibilidade que os cuidadores suportam.

A responsabilidade dos seus cuidados recaiu quase inteiramente sobre a sua mãe, irmão e irmã. O pai alternava entre dias relativamente coerentes e outros nos quais se lembrava de poucas coisas. Por vezes, o seu comportamento antiquado e cavalheiresco transformava-se em fases de mau humor em que praguejava. Começaram a aparecer contas de produtos comprados em programas de televendas nos extractos do seu cartão de crédito. Ele fora supervisor de grandes projectos de construção, mas, certo dia, mergulhou num estado de confusão e foi incapaz de tirar medidas para pendurar um quadro numa parede. “Coisas simples, muito simples”, diz ela. “Cada mudança, tirava-lhe um pouco mais, tornava-o um pouco menos capaz de funcionar.”

“Todos somos todos afectados por isto de alguma maneira”, lembra Melissa. “Todos temos uma história para contar.”

Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com. A autora, Sharon Guynup, é Exploradora da National Geographic e bolseira do Wilson Center. O seu trabalho foca-se na vida selvagem e no tráfico.