Mahammad Ali Molla, de 60 anos, cego desde os 46 devido à seiva de uma planta que escorreu para os seus olhos, depende dos cuidados prestados pelos familiares, entre os quais o seu neto (à direita), em Bengala Ocidental (Índia). Nos países menos desenvolvidos, milhões de pessoas ficam cegas por falta de acesso ao tratamento.
Desde o dia em que Christian Guardino nasceu, a mãe Elizabeth percebeu que os seus olhos não estavam bem. Eles mexiam-se, sacudiam e reviravam-se para o interior. Um olho entortava na direcção do nariz. Quando o alimentava, em vez de olhar na sua direcção, Christian mirava a luz mais brilhante — um candeeiro, se estivessem em casa, o Sol, se estivessem na rua. Era aflitivo.
O primeiro oftalmologista que observou Christian, de semblante carregado, mandou a família consultar um especialista em Nova Iorque. O especialista fez um electrorretinograma (ERG), procedimento por meio do qual um minúsculo sensor electrónico aplicado sobre o olho mede a reacção da retina a clarões de luz. Uma retina saudável reage disparando um sinal eléctrico para o nervo óptico que gera, na imagem produzida pela máquina de ERG, um vale profundo seguido de um pico alto. O ERG de Christian não produziu nada de semelhante: apenas rabiscos, malformados e débeis.
A sua visão, já então deficiente, nunca registaria melhorias significativas. Nada havia a fazer.
O médico explicou a Elizabeth que Christian padecia de uma doença da retina conhecida como amaurose congénita de Leber (ACL).A sua visão, já então deficiente, nunca registaria melhorias significativas. Nada havia a fazer. O rapaz veria pouca coisa do mundo e caminharia sempre apoiado numa bengala.
Christian precisou efectivamente de uma bengala, e da mão orientadora da mãe, quando em 2012, aos 12 anos de idade, visitou pela primeira vez um consultório dirigido pelo Instituto Ocular Scheie, da Universidade da Pensilvânia. Em contrapartida, no passado mês de Janeiro, atravessou o edifício principal do Instituto sem bengala e, aparentemente, sem medo nenhum. Gracejando e tagarelando, o adolescente guiou um bando de doutorados, médicos, técnicos de laboratório e este jornalista, atravessando o arejado salão de entrada do edifício. Mostrou admiração pelo átrio alto e pelas varandas brilhantes onde outras pessoas bebiam café.
Moradores de Sundarbans (Índia) experimentam armações com lentes de ensaio para exames oculares. A equipa de cuidados oftalmológicos, chefiada por Asim Sil, viaja de barco por esta região longínqua, atravessada por inúmeros rios. O objectivo é ajudar a reduzir a população invisual da Índia, país onde existem mais de oito milhões de cegos.
“Ena!”, exclamou, quando nos aproximávamos da saída do edifício. À nossa frente, uma gigantesca porta giratória fazia rodar os enormes painéis. A mãe vinha atrás, a alguma distância, e ele caminhava sem ajuda. Christian nunca se deteve, nem fez pausas. Prosseguiu calmamente e manteve a passada enquanto uma parede de vidro se fechava atrás de si e outra suavemente se afastava do seu caminho. Deu mais um passo e saiu para a rua.
Christian Guardino conseguia ver. Tudo o que antes para si constituía um obstáculo — luz e sombra, aço e vidro, móvel e imóvel — agora proporcionava-lhe prazer. O mundo abrira-se diante dos seus olhos.
“Consegue acreditar nisto?”, perguntou Elizabeth poucos minutos mais tarde. À sua frente, Christian caminhava ao lado de Jean Bennett, cujo laboratório na Universidade da Pensilvânia produzira o líquido contendo material genético que restituíra a visão a Christian. “Tudo aconteceu tão depressa”, afirmou Elizabeth. Apenas três dias depois de começar o tratamento do primeiro olho, Christian já conseguia vê-la. “Antes interrogava-me sobre se o meu filho alguma vez seria capaz de ver-me e agora…”, disse, apontando para ele a caminhar sem assistência. “Parece um milagre.”
O milagre de Christian foi uma vitória duramente conquistada.
O milagre de Christian foi uma vitória duramente conquistada. Resultou de 20 anos de trabalho por parte de Jean Bennett e dos seus colaboradores, que identificaram a mutação genética incapacitante da retina de Christian, inventando de seguida uma maneira de introduzir no seu olho uma cópia boa desse gene. Jean Bennett iniciou os ensaios com a terapêutica apenas na esperança “de conseguirmos detectar alguma melhoria”. Nove anos mais tarde, ela mostra-se assombrada por tudo parecer resultar tão bem.
Jean tem o cuidado de não engrandecer o seu trabalho e de não subestimar os obstáculos que se levantam a futuros avanços. No entanto, as melhorias até agora registadas em Christian e outros doentes dão-lhe esperanças cautelosas de que este método elementar de substituição de genes possa resultar noutras formas de cegueira. Ela e outros especialistas acreditam que, mediante certas variações da sua técnica, seja em breve possível aos médicos identificar e tratar anomalias genéticas semelhantes numa fase suficientemente precoce (talvez mesmo in utero), de modo a reverter, ou prevenir, lesões oculares.
Cirurgiões do Centro Ocular Duke introduzem um implante Argus II no olho de Karen Brown, de 59 anos, cega devido a retinopatia. O dispositivo contorna as células retinianas doentes e transmite dados a partir de uma câmara através do nervo óptico até ao cérebro.
Ao longo da última década, os esforços desenvolvidos em dois outros domínios – as células estaminais pluripotentes e os implantes biomédicos (ou “biónicos”) – proporcionaram igualmente pelo menos alguma visão a pessoas que antes estavam cegas. As células estaminais pluripotentes são células em fases precoces de desenvolvimento, antes de se diferenciarem em peças formativas dos olhos, dos cérebros, dos braços e das pernas. Revelam-se cada vez mais promissoras para a substituição ou recuperação das células retinianas defeituosas subjacentes a muitas causas da cegueira. E a primeira geração de retinas biónicas (microchips que substituem as células retinianas defeituosas, captando ou ampliando a luz) está a criar uma versão de visão com baixa resolução para pessoas que durante muitos anos não viram nada.
Estes progressos animam debates onde se discute algo impensável há 10 ou 20 anos: derrotar a cegueira humana e fazendo-o em pouco tempo.
Estes progressos animam debates onde se discute algo impensável há 10 ou 20 anos: derrotar a cegueira humana e fazendo-o em pouco tempo.
Será que isto é sequer realista? Alguns defensores do procedimento e angariadores de fundos sugerem que sim. O empresário Sanford Greenberg, que perdeu a visão devido a um glaucoma, quando frequentava a universidade, fundou a organização End Blindness by 20/20, prometendo oferecer três milhões de dólares em ouro à pessoa ou pessoas que mais contribuírem para pôr fim à cegueira até essa data. O Instituto Nacional dos Olhos está a financiar agressivamente a investigação oftalmológica. A Organização Mundial de Saúde e a Iniciativa Visão 2020 da Agência Internacional para a Prevenção da Cegueira fixou o objectivo de “eliminar a cegueira evitável até 2020”. Entretanto, muitas reportagens sobre trabalhos como o de Jean Bennett parecem dar como garantido que iremos ser bem-sucedidos.
Rhian Lewis, de 50 anos, utiliza um ponteiro para interpretar as imagens enviadas para o cérebro pelo seu implante retiniano, sob vigilância do investigador Charles Cottriall, do Hospital Ocular de Oxford. A descodificação destes sinais pelos doentes revela o elevado nível de reorganização e regeneração de que as ligações neuronais são capazes.
Qualquer pessoa que siga Christian Guardino poderá sentir-se tentada a concordar. No entanto, Henry Klassen, investigador em células estaminais pluripotentes, previne: “Não existem soluções rápidas para curar os casos mais difíceis.”
A maioria dos investigadores concorda. Jean Bennett sabe que a terapêutica genética que deu a visão a Christian (e ainda precisa de ser replicada noutros casos) é admirável por contrariar um longo historial marcado por desilusões, atrasos e até catástrofes, mas testemunhou o fracasso de inúmeros esforços de terapêutica genética. Num artigo científico recente, ela lista sem contemplações os enormes obstáculos que se levantam ao alargamento do seu método terapêutico, mesmo a outras causas genéticas de ACL. Por exemplo, o gene por si introduzido no olho de Christian, denominado RPE65, adapta-se bem ao vírus benigno modificado que utilizou para transportá-lo até às suas células, mas muitos outros genes causadores de ACL são demasiado grandes para adaptar-se. Além disso, muitas outras mutações nocivas da ACL causam lesões em fases muito mais precoces da vida, ou actuam em lugares do olho menos propícios à substituição genética e, portanto, não podem ser tratadas com os vírus actualmente disponíveis.
Num cinema de Riverside, na Califórnia, Terry Byland (ao centro) consegue ver formas no ecrã graças ao implante retiniano Argus II. Entre 2004 e 2010, Terry, que perdeu a visão devido a retinopatia pigmentar, ajudou os cientistas a desenvolver o sistema do implante, que inclui uma câmara montada nos óculos e um processador portátil.
Essas barreiras e outras semelhantes, que afectam as células estaminais pluripotentes e os implantes biónicos não vão desaparecer da noite para o dia. A maior parte dos progressos serão difíceis de alcançar e incrementais. Muitas curas milagrosas revelar-se-ão passageiras.
No entanto, o desafio de acabar com a cegueira tratável é um assunto completamente diferente.
Cerca de um em cada 200 habitantes da Terra (39 milhões de pessoas) não consegue ver. Outros 246 milhões sofreram perdas de visão num grau que lhes impõe restrições moderadas a graves. A perda de visão afecta igualmente centenas de milhões de pessoas, muitas vezes parentes, dedicadas a ajudar aqueles que não conseguem ver.
Estes encargos isoladamente já são suficientes para justificar a busca de novos tratamentos. Porém, os olhos estão igualmente a atrair cada vez mais as atenções por serem um local seguro e acessível para ensaiar tratamentos que podem ser utilizados noutros pontos do corpo.
Para começar, os investigadores conseguem observar directamente o olho e verificar o que há de mal e se um tratamento resulta ou não.
Para começar, os investigadores conseguem observar directamente o olho e verificar o que há de mal e se um tratamento resulta ou não. Da mesma maneira, o dono do olho pode ver com ele (ou não), o que fornece rapidamente informação vital sobre o seu funcionamento. O olho também proporciona retorno de informação – por exemplo, sobre a dilatação da pupila ou sobre a actividade eléctrica no nervo óptico. Além disso, um investigador que realize um tratamento experimental num olho pode normalmente utilizar o outro como controlo.
Os olhos também são resistentes. No seu interior, o sistema imunitário auto-restringe-se de uma maneira que torna o olho “privilegiado em termos imunitários”, tolerante a invasores que poderiam causar inflamação noutros órgãos. Significa isto que se pode experimentar nele com mais segurança um tratamento, como uma terapêutica genética, que talvez gerasse o caos noutros locais.
Os neurocientistas adoram os olhos, pois “são o único lugar onde se pode ver o cérebro sem abrir um buraco”, como me explica um deles. A retina, visível através da pupila, é, no essencial, uma taça de neurónios unida ao cérebro pelo nervo óptico: no seu conjunto, o olho é uma “evaginação do cérebro”, formada durante o desenvolvimento fetal, esticando-se para longe dele. À semelhança do olho, o cérebro beneficia de privilégios imunitários e, por isso, os tratamentos que resultam para os olhos podem ser transpostos com facilidade para o cérebro ou para a medula espinal.
Estas vantagens têm uma importância acrescida, dado que as estratégias experimentais actualmente centradas no olho poderão orientar, no futuro, tratamentos para todo o organismo humano. A terapêutica genética traz consigo a promessa de corrigir genes defeituosos que causam doenças de todos os tipos. As células estaminais pluripotentes trazem a promessa de substituir estruturas inteiras de tecidos e os implantes biónicos conseguem substituir órgãos insuficientes. Os olhos tornam-se agora janelas para as possibilidades e limitações das abordagens terapêuticas.
De mãos dadas, estudantes cegos da escola Asram da Missão Vivekananda, em Bengala Ocidental, na Índia, encaminham-se para a aula de ginástica. O ensino curricular e a formação profissional ajudam-os a evitar o destino de muitas pessoas cegas na Índia: uma vida de mendicidade nas ruas.
Se o leitor imaginar uma imagem trémula a preto-e-branco de elevado contraste e baixa resolução, a piscar, então acabou de imaginar algo parecido com aquilo que Rhian Lewis vê através do seu olho biónico. Rhian, de 50 anos, vive em Cardiff, no País de Gales, e padece de retinopatia pigmentar, uma doença causadora da morte das células fotorreceptoras por deficiência genética, provocando a diminuição da visão a partir da periferia. Com o tempo, o campo visual vai-se estreitando até desaparecer, “como um interruptor de regulação da intensidade da luz que gradualmente a reduz até à escuridão”, afirma ela.
A doença começou a afectar Rhian muito cedo. Quando ainda gatinhava, só saía do quarto se houvesse luz. Ainda assim desenvencilhou-se na escola secundária e na universidade e trabalhou num bar. Mais tarde, mesmo depois de o olho direito cegar por completo, trabalhou durante 20 anos numa livraria e papelaria memorizando cada secção e aprendendo a diferenciar os vários tipos de canetas. Desde que a loja encerrou, tem passado a maior parte do tempo em casa, cuidando dos seus gémeos, que estão agora no final da adolescência.
Em Junho de 2015, deslocou-se ao Hospital de Medicina Ocular de Oxford, submeteu-se a anestesia e, dez horas mais tarde, acordou com um olho biónico.
Em Junho de 2015, deslocou-se ao Hospital de Medicina Ocular de Oxford, submeteu-se a anestesia e, dez horas mais tarde, acordou com um olho biónico. Durante aquilo que foi “sem dúvida, a operação mais complicada de toda a minha vida”, resume o cirurgião Robert MacLaren, a equipa de Oxford introduziu entre as camadas delicadas da sua retina um microchip do tamanho de uma sarda, carregado com 1.600 minúsculos fotodíodos. A experiência clínica de Robert MacLaren está a avaliar se este chip, denominado Alpha, tem capacidade para substituir as células fotorreceptoras mortas no centro da retina de Rhian, transformando a luz em impulsos de corrente que a rede neuronal existente transmitirá ao cérebro.
Quando ligaram o dispositivo, contou-me Rhian, “não conseguia acreditar. De repente, conseguia ver qualquer coisa”. O cérebro dela interpretava os sinais eléctricos do chip como clarões e brilhos fortemente contrastantes. “Não é uma imagem propriamente dita”, diz. “É apenas uma espécie de consciência de que há diferenças.”
Desde esse dia, foi aprendendo a interpretar estes impulsos luminosos. Isto implica treino no laboratório de Robert MacLaren. “Detesto aquilo”, diz. Mas compensa. Aprendeu a reconhecer um tipo de clarões padronizados como uma pessoa, outro tipo como uma árvore. Aperfeiçoou a sua capacidade para distinguir contrastes no horrível “teste dos 50 tons de cinzento” (na verdade, são sete). Consegue ler um mostrador de relógio, de alto contraste, à distância de um braço. Foi passear a pé por Oxford com a equipa do cirurgião e descobriu que distinguia, pela primeira vez em muitos anos, as janelas de um edifício das suas paredes.
Os progressos são contudo modestos e Rhian ainda faz quase tudo por tacto e através da visão evanescente do seu olho bom. O olho biónico dá trabalho a utilizar: por norma, desliga-o.
Gerd Gamanab, de 67 anos, procurou tratamento demasiado tarde: 50 anos de trabalho agrícola ao sol da Namíbia, destruíram-lhe as córneas. À semelhança do que acontece em muitos casos, a cegueira poderia ter sido evitada com cuidados de saúde regulares.
Estas limitações são previsíveis nestes protótipos primitivos, afirma Eberhart Zrenner, o cirurgião ocular alemão que começou a desenvolver o Alpha há mais de vinte anos. “A ideia nunca foi alcançar a visão total, mas melhorar a capacidade do doente para reconhecer objectos e movimentar-se”, explica. E isso está de facto a acontecer.
Eberhart Zrenner descreve um doente que consegue de novo ler o seu nome; outro ainda que, pela primeira vez, contemplou o rosto da sua noiva e “viu que ela estava a rir-se”. Quase metade dos seus 29 doentes que receberam uma versão prévia parecida do implante consideram-no útil.
Rhian também acha o seu útil. Mesmo que não melhore mais, a imagem do chip constitui um pequeno milagre, pois a luz substitui as trevas. Ela prevê que, à medida que o olho esquerdo cegar por completo, o olho biónico, ou talvez um seu sucessor, lhe permita fazer tudo o que faz agora. “A motivação são os meus filhos”, diz. Os dois têm uma visão perfeita agora, mas correm o risco de desenvolver retinopatia pigmentar, pois a doença é hereditária.
Segundo Robert MacLaren, o projecto dos implantes está a produzir lições valiosas.
Segundo Robert MacLaren, o projecto dos implantes está a produzir lições valiosas. Em primeiro lugar, demonstrou que os fotodíodos conseguem substituir as células fotorreceptoras naturais, o que é um enorme avanço. O dispositivo também mostrou que os doentes podem aprender a interpretar novas formas de apresentação dos estímulos visuais. Além disso, na opinião de Robert MacLaren, os implantes mostram que “ainda subsiste um potencial de visão mesmo depois de as células fotorreceptoras morrerem, porque há outros nervos ainda intactos. Nunca pensei que isto pudesse ser demonstrado.”
O cirurgião defende que estas lições já estão a impulsionar progressos em duas outras áreas de investigação: a terapêutica genética e as células estaminais pluripotentes.
Na Califórnia, uma equipa de especialistas está a realizar uma experiência com células estaminais pluripotentes que nasceu quase directamente de um implante. Um dos responsáveis é Mark Humayun. E o seu primeiro grande projecto consistiu em co-inventar o Argus II, que se tornou, no início da década de 2010, o primeiro implante retiniano comercializado. Tal como o Alpha de Zrenner, o Argus recorre a um dispositivo de eléctrodos introduzido na região posterior da retina. Em vez de captar a luz, esta rede de 60 eléctrodos recolhe sinais a partir de uma câmara montada nos óculos que os transmite através de uma unidade de processamento transportada num cinto ou num saco.
Todo este equipamento impõe um conjunto mais rígido de limitações e exigências do que o Alpha. Além disso, a câmara externa implica que, ao contrário do que sucede com o Alpha, este não é capaz de explorar os pequenos movimentos do globo ocular, que desempenham um papel misterioso, mas vital, na visão.
O encaixe deste implante em retinas humanas contribuiu para inspirar o dispositivo de células estaminais pluripotentes que Mark Humayun está agora a desenvolver. Ele e o seu colega, o biólogo Dennis Clegg, chamam-lhe simplesmente adesivo. A carroçaria desse adesivo é uma “bolacha” fina com a forma aproximada deste d, mas com o dobro do tamanho. Sobre esta área, Dennis distribui 120 mil células derivadas de células estaminais pluripotentes embrionárias.
Mark e Dennis planeiam utilizar este adesivo para tratar a degenerescência macular associada à idade (DMI). A cegueira provocada pela DMI é o contrário do que sucede na retinopatia pigmentar: um ponto esbatido obnubila o centro da visão da pessoa e, de seguida, vai lentamente escurecendo e alargando-se até ela ficar funcionalmente cega. É a mais vulgar causa de perda de visão não tratável, responsável por 5% do total de casos de cegueira.
A DMI deve-se a degenerescência celular na camada mais recuada do globo ocular, o epitélio pigmentar da retina (EPR). O EPR proporciona um apoio essencial à camada celular fotorreceptora situada imediatamente à sua frente. Mark e Dennis esperam que as células estaminais pluripotentes do adesivo substituam as células de EPR degeneradas.
Em estudos com animais conduzidos por esta dupla, foi possível incorporar mais eficientemente as células na camada de fotorreceptores quando estas se encontravam dispostas num adesivo.
O ensaio começou agora e terminará em 2018. Se produzir resultados, poderá ser útil no tratamento da DMI e de outras formas de cegueira.
O ensaio começou agora e terminará em 2018. Se produzir resultados, poderá ser útil no tratamento da DMI e de outras formas de cegueira. Mark e Dennis talvez aprendam também algo sobre a maneira de fundir essas células em estruturas biológicas de outros órgãos.
O potencial ainda não aproveitado das células estaminais pluripotentes atraiu outros especialistas que procuram curas para a cegueira, entre os quais Henry Klassen, da Universidade da Califórnia. Henry passou 30 anos a estudar a forma de induzir células progenitoras no sentido de substituírem ou reabilitarem células retinianas com insuficiência. Depois de utilizar células retinianas progenitoras para melhorar a visão em diversos animais, está a ensaiar um tratamento semelhante em pessoas com retinopatia pigmentar.
O cirurgião utiliza uma agulha para injectar no olho meio milhão a três milhões de células progenitoras destinadas a desempenhar papéis distintos na recuperação da retina doente. Alguns doentes com retinopatia pigmentar que recorreram à intervenção conseguem agora ver mais luz e formas. Kristin Macdonald, quase totalmente cega devido a retinopatia pigmentar, foi tratada a um olho em Junho de 2015. Agora consegue ver os seus móveis e, na piscina, “uma tonalidade esbatida”, o azul reflectido da água que anteriormente era apenas preto e branco. Henry Klassen espera que estes progressos venham a provar a sua premissa, segundo a qual se posicionarmos as células certas nos lugares certos, elas saberão o que fazer.
Estas mulheres herero, com os seus chapéus tradicionais, aguardam que lhes retirem as palas do olho num “campo da catarata” em Omaruru (Namíbia). A intervenção cirúrgica demora cerca de 20 minutos. A falta de acesso a esta cirurgia em muitas regiões faz das cataratas a principal causa de cegueira a nível mundial.
A especialista namibiana em cirurgia ocular Helena Ndume gosta de descrever o que os doentes fazem quando recuperam a visão após anos de cegueira. Ela conta a história de um homem que, depois de uma vez quase ter chocado contra um elefante, agradeceu a Helena o tratamento, porque agora já conseguia ver os animais errantes; outra mulher foi vista por Helena após o tratamento absorvida a retirar todas as espinhas do peixe que estava a comer; uma mulher de 46 anos conseguiu finalmente ver o seu filho mais novo.
Helena Ndume tem recolhido muitas histórias destas nos últimos 20 anos, durante os quais foi prosseguindo a sua própria experiência destinada a acabar com a cegueira. Num sentido, os resultados da experiência não levantam dúvidas: em duas décadas, cerca de trinta mil doentes receberam tratamento e cerca de trinta mil recuperaram a visão. A cura claramente funciona. Mas o tratamento, uma simples operação às cataratas, não é aquilo que a experiência de Helena está a testar. Ela e outros investigadores procuram testar se a humanidade, uma vez em posse da cura, se preocupará em disponibilizá-la a todos os que necessitarem.
As cataratas são uma doença por norma mais prevalecente nas comunidades pobres.
Causa metade de todos os casos de cegueira da Terra. Nos países desenvolvidos, por norma, os indivíduos com cataratas começam a ser tratados assim que têm problemas a ver televisão. Nos países menos desenvolvidos, as pessoas com cataratas por norma ficam cegas. O tratamento é simples: põe-se o cirurgião e o doente na mesma sala, prepara-se o doente, passa-se 15 a 20 minutos a substituir o cristalino natural obnubilado por uma lente artificial límpida e faz-se um exame geral pós-operatório. Nos países menos desenvolvidos, o tratamento custa normalmente 13 a 90 euros, mas está ao alcance de poucos.
Antonia Nuses, de 85 anos, vê o seu neto, Brendon, depois de ser submetida a uma intervenção cirúrgica no campo da catarata em Omaruru. Esta operação permite que muitos doentes voltem a ver, após várias décadas sem visão.
Em colaboração com a Namíbia e outros Estados africanos, bem como com a organização internacional SEE International, Helena Ndume tenta resolver o problema criando “campos da catarata”. Nestas reuniões, Helena e outros cirurgiões chegam a operar quinhentas pessoas por semana. No ano passado, a ONU reconheceu o “serviço prestado à humanidade”, concedendo--lhe o primeiro Prémio Nelson Mandela.
Trata-se de uma distinção adequada para uma pessoa que, há 41 anos, quando ainda era uma rapariga de 15, deixou atrás de si outro tipo de escuridão ao fugir do apartheid que a África do Sul impusera à Namíbia. Na companhia de três amigos, instalou-se num campo em Angola dirigido pelo movimento SWAPO, sobreviveu a um ataque de metralhadora lançado pouco depois da sua chegada, fugiu até à segurança da Zâmbia, comunicou à SWAPO que gostava de frequentar uma escola de moda mas, em vez disso, mandaram-na para a faculdade de medicina de Leipzig, onde se casou com um compatriota pouco depois morto em Angola. Criou o seu bebé sozinha, concluiu a sua formação como oftalmologista, rejubilou quando a Namíbia conquistou a independência em 1990 e regressou de vez ao país em 1996 com o filho, determinada a ajudar os invisuais.
Mais de duzentos doentes estavam inscritos, mas só se apresentaram 82. Muitos tiveram medo que lhes cortassem os olhos.
A minha história preferida de Helena Ndume tem que ver com uma mulher que tratou no primeiro ano dos campos, num consultório em Rundu (Namíbia). Mais de duzentos doentes estavam inscritos, mas só se apresentaram 82. Muitos tiveram medo que lhes cortassem os olhos.
Quando Helena instalou o campo em Rundu no ano seguinte, a mesma mulher apareceu. Queria mostrar à médica a sua quinta, que conseguira alargar: “Agora faço imensas colheitas!”, contou. Puxou-a pela mão até à porta do consultório. “Trouxe alguns amigos”, disse a mulher. Lá fora, encontrava-se uma multidão, ansiosa de se submeter à cirurgia depois de testemunhar o efeito.
Nessa semana, Helena Ndume tratou centenas de pessoas. Nas palavras do seu colega Sven Obholzer, os doentes “entravam caminhando com as mãos pousadas sobre os ombros da pessoa à sua frente e saíam sem precisar de ajuda”.
E contudo, apesar do trabalho feito por Helena Ndume e por outros, cerca de vinte milhões de pessoas em todo o mundo continuam cegas devido a cataratas.
E contudo, apesar do trabalho feito por Helena Ndume e por outros, cerca de vinte milhões de pessoas em todo o mundo continuam cegas devido a cataratas. Se fossem todas tratadas, estariam curados metade de todos os casos de cegueira. Essa meta implicará a criação de infra-estruturas permanentes para transformar o tratamento em rotina. Esta foi uma das razões pelas quais o antigo basquetebolista Dikembe Mutombo construiu um hospital em Kinshasa. Quando Helena Ndume o visitou, tornaram-se patentes a sua qualidade e a sua falta de capacidade de resposta. Estava previsto que ficasse por cinco dias, mas Helena ficou sete e realizou mais de cem operações. Deixou uma lista de espera de centenas de inscritos. Por cada doente tratado, dezenas ficam por ver e sem ver: “Sempre mais.”
Anita (à esquerda) e Sonja Singh nasceram com cataratas. A família não tinha dinheiro para as cirurgias. Quando as irmãs tinham 5 e 12 anos, doadores financiaram as operações. As vias de comunicação olho-cérebro são mais maleáveis na infância: Anita recuperou mais visão do que Sonja, mas agora ambas desfrutam de um novo campo de visão.
Expliquei a Helena Ndume as causas de cegueira que esta reportagem iria abordar e ela comentou: “Essas coisas, a degenerescência macular e a retinopatia pigmentar, nada são comparadas com as cataratas.” Helena, que é a mais generosa das almas, não quis dizer com isto que estas doenças são pouco importantes. Quis dizer que o maior desafio da medicina não é apenas descobrir curas, mas também disponibilizá-las.
Nesse dia, Helena Ndume fez oito operações às cataratas antes do almoço. Assistindo a uma delas, vi pela primeira vez um bisturi a cortar um globo ocular. A cena perturbou-me. Ali estava um olho escancarado graças ao espéculo oftálmico e, contudo, alheio ao aço que escavava uma curva na córnea.
Ao reconhecer isso, foi-me mais fácil assistir à intervenção. Compreendi que a anestesia iria desaparecer e que, logo que isso acontecesse, o olho voltaria a ver com clareza.