Para ver o nascimento de uma estrela, é preciso um telescópio de diâmetro superior ao de muitas cidades. Eis o ALMA, o maior telescópio terrestre, instalado no deserto do Atacama. Foi inaugurado há dez anos, a 30 de setembro de 2011.
Já tinham passado uma semana e meia a explorar outros locais do Atacama, do lado argentino do deserto. Agora, orientados por um mapa fornecido pelas forças armadas do Chile ao astrónomo chileno Hernán Quintana, procuravam uma rota para subir ao planalto de Chajnantor, situado a cinco mil metros de altitude, quase ao mesmo nível dos dois acampamentos que servem de base aos montanhistas do Evereste.
Com as montanhas dos Andes formando uma barreira que impede a travessia das nuvens acumuladas a leste, sobre a Amazónia, e os ventos do Pacífico provenientes do oeste captando pouca humidade ao passarem sobre a corrente fria do Peru (anteriormente conhecida como corrente de Humboldt), o deserto de Atacama é um dos locais mais secos à face da Terra, com uma pluviosidade média anual inferior a um centímetro e meio. Isolado e com uma atmosfera inóspita, fria e rarefeita, este deserto é ideal para observações do céu nocturno e atrai grandes projectos multinacionais de telescópios.
A maioria dos projectos anteriores fora concebida para observar a fracção do cosmo visível nos comprimentos de onda ópticos – a porção do espectro de luz que o olho humano consegue ver. Hernán Quintana e os seus companheiros procuravam um local para um telescópio diferente, projectado para ver além das cortinas de poeira e gás que envolvem as galáxias, rodopiando em torno das estrelas e prolongando-se pela imensidão do espaço interestelar. O projecto demoraria cerca de 20 anos a desenvolver e a sua concepção e construção teriam um custo superior a 730 milhões de euros. Primeiro, contudo, era fundamental encontrar o sítio certo.
Os objectos do Universo irradiam energia em vários comprimentos de onda, dependendo da temperatura. As explosões de supernovas, por exemplo, são extremamente quentes. Além de emitirem luz visível equivalente à de milhares de milhões de sóis, libertam raios X e raios gama de onda curta e elevados níveis de energia. Na extremidade oposta e mais fria do espectro, encontram-se cometas e asteróides, que emitem comprimentos de onda infravermelhos mais longos do que os telescópios ópticos podem observar.
Grande parte do universo é ainda mais fria. As nuvens de poeira e gás de que se compõem as estrelas atingem temperaturas pouco superiores ao zero absoluto – valor a que os átomos se imobilizam. O nascimento dos planetas ocorre em condições semelhantes, originado por fragmentos de poeira e gás aglomerados no interior da névoa rodopiante que gira em redor das estrelas recém-nascidas.
Na década de 1960, alguns astrónomos que tentavam penetrar neste “universo frio” cedo se aperceberam do enorme desafio inerente à utilização de antenas instaladas ao nível do solo para detecção de comprimentos de onda na ordem dos milímetros e submilímetros, ainda mais longos do que os infravermelhos. O primeiro problema consistia em gerir um gigantesco volume de estática. Ao contrário da luz visível, que atravessa a atmosfera do planeta sem grande interferência, as ondas milimétricas e submilimétricas são absorvidas e distorcidas pelo vapor de água, que emite radiação na mesma banda do espectro, acrescentando ruído terrestre às ondas provenientes dos céus. As ondas milimétricas e submilimétricas também possuem menos energia do que a luz visível, gerando um sinal fraco mesmo numa antena de rádio com uma área de recolha enorme.
Uma perspectiva das galáxias Antennae com remoinhos nunca antes vistos de gás interestelar revelados numa imagem de teste do telescópio ALMA.
A solução encontrada consistiu em dispor um sistema com várias antenas num local com uma atmosfera seca, combinando os sinais de modo a funcionarem juntas como um único telescópio.
Na década de 1980, havia vários sistemas de pequena dimensão em funcionamento no Japão, em França e nos Estados Unidos da América. Pouco depois, os avanços tecnológicos permitiram ponderar a instalação de um sistema de rádio de dimensão muito maior, uma lente enorme com uma capacidade de resolução imensamente maior – desde que se encontrasse um local alto e plano para aumentar a distância entre antenas para a ordem dos quilómetros. Grupos de investigação provenientes da Europa, do Japão e dos EUA convergiram no deserto de Atacama em busca do sítio ideal para um telescópio deste género.
Hernán Quintana examinou os mapas militares do deserto durante semanas antes da expedição da Primavera de 1994 e suspeitou que só as terras altas acima de San Pedro de Atacama cumpririam todos os requisitos. Mas não era fácil lá chegar.
“A viagem foi lenta e dolorosa porque os pneus ficavam constantemente atolados na areia”, recorda Riccardo Giovanelli, da Universidade de Cornell, que acompanhou Hernán juntamente com Angel Otárola, do Observatório Europeu do Sul (ESO) e Paul Vanden Bout e Robert Brown, do Observatório Nacional de Rádio Astronomia (NRAO).
A meio da estrada que saía de San Pedro, a carrinha de Paul e Angel avariou. Os outros conseguiram chegar ao topo da passagem de Jama. “O céu era lindo, em tons de azul mais profundos do que imaginara”, lembra Riccardo. Um dos astrónomos trouxera um instrumento para medir vapor de água. A percentagem de vapor na atmosfera era a mais baixa alguma vez encontrada pelo grupo nos locais anteriormente visitados. “Ninguém teve dúvidas de que o sítio certo ficava algures por ali”, conta Riccardo. Pouco depois, numa segunda viagem de prospecção, Robert encontrou o tal sítio: um planalto amplo no fundo de Cerro Chajnantor, um pico das proximidades.
Em breve, os três grupos internacionais perceberam, sem margem para dúvidas, que juntando forças seriam capazes de construir um único sistema muito mais potente do que qualquer um deles conseguiria individualmente. Em 1999, a Fundação Norte-Americana para a Ciência e o ESO celebraram um acordo de colaboração, ao abrigo do qual cada parte contribuiria com 32 antenas com 12 metros de diâmetro. Os japoneses concordaram em fornecer mais 16 antenas para um sistema complementar.
Assim começou um esforço de quase duas décadas para transformar um dos locais mais isolados do planeta num observatório moderno cheio de vida. Minas terrestres depositadas décadas antes pelas forças armadas chilenas para dissuadir incursões vindas da Bolívia, a norte, tiveram de ser localizadas e retiradas. Foram necessárias negociações prolongadas para convencer uma companhia petrolífera que projectara instalar um oleoduto no local a desviá-lo. Protótipos de antenas foram redesenhados após testes realizados no Novo México. Os custos avolumaram-se. Surgiram discussões, que se resolveram. O NRAO e o ESO não conseguiam chegar a acordo quanto a um projecto de antena, em parte porque cada um queria apoiar fabricantes dos seus próprios países. Por fim, escolheram dois projectos e dois fornecedores para a sua quota das antenas, reduzidas a 25 de cada uma das entidades. Depois, havia a pequena vila de San Pedro, onde existiam apenas duas linhas telefónicas e uma única estação de gasolina. “Tivemos de montar uma pequena cidade numa encosta isolada”, conta Al Wootten, do NRAO, o principal cientista norte-americano do projecto.
A primeira antena, com quase cem toneladas, chegou ao porto chileno de Antofagasta oriunda dos EUA em Abril de 2007. Escoltado por carros de polícia, um camião transportou a gigantesca antena montanha acima, sendo ocasionalmente interrompido por manadas de lamas conduzidas estrada fora pelos seus pastores. Os equipamentos continuaram a chegar nos cinco anos seguintes. Instalá-los de modo a funcionarem colectivamente como um único telescópio foi uma tarefa de precisão assombrosa. Teriam de girar em conjunto quando instruídos e apontar para o mesmo alvo no céu num intervalo de tempo não superior a um segundo e meio. Para reunir os seus sinais de forma coerente, foi necessário instalar no local um potentíssimo supercomputador, capaz de ajustar, com uma margem de erro não superior à largura de um cabelo humano, a distância percorrida pelos sinais através de um cabo, ligando as antenas ao centro de processamento, compensando simultaneamente a expansão e contracção do cabo devido às flutuações de temperatura.
Numa manhã luminosa de Abril, uma perspectiva panorâmica do planalto oferece uma espantosa justaposição. A imensidão castanha está cravejada de pratos brancos que parecem minúsculos contra o plano de fundo azul infinito do céu. Vistas de perto, cada uma das antenas com 12 metros de diâmetro agiganta-se sobre o solo, com a superfície reluzindo ao sol. Operadas remotamente a partir de um acampamento-base, giram graciosamente em uníssono quando se pressiona um botão, contradizendo o seu enorme peso. Dois longos veículos construídos propositadamente para o transporte das antenas, apelidados de Otto e Lore, encontram-se estacionados por perto, prontos para, sempre que necessário, as rebocarem até uma nova posição no planalto.
Quando as últimas 25 antenas norte-americanas se dirigem para o ponto de ancoragem, o maior e mais caro telescópio terrestre aproxima--se da sua conclusão.
O sistema Atacama Large Millimeter/Submillimiter Array (ALMA) começou a corresponder às expectativas ainda antes da sua inauguração oficial, em Março de 2013. No ano anterior, com apenas 16 antenas em funcionamento, um grupo de investigadores dirigido por Joaquin Vieira, do Caltech, vislumbrara através do ALMA 26 galáxias distantes com sinais de formação de estrelas. Ficaram admirados por descobrir que as galáxias se encontravam a distâncias tão imensas como 11.700 milhões de anos-luz, em média, o que significava que a sua produção de estrelas decorria desde que o universo tinha apenas dois mil milhões de anos. Antes disso, pensava-se que este nascimento frenético de estrelas só teria começado cerca de mil milhões de anos mais tarde.
As descobertas têm-se sucedido a um ritmo constante desde a inauguração do ALMA. Em Julho de 2013 os astrónomos informaram que as observações do telescópio tinham contribuído para resolver um enigma de longa data: a razão pela qual as galáxias maciças são tão raras no universo. Imagens de alta resolução captadas pelo ALMA da galáxia vizinha de Sculptor mostravam gás frio e denso emanando do centro do disco galáctico. Os astrónomos concluíram que o gás estava a ser projectado por ventos gerados por estrelas recém-formadas, uma enorme perda de material para a produção de estrelas que poderia entravar o futuro crescimento da galáxia. A confirmar-se noutras galáxias, o fenómeno poderia resolver o mistério. Fiel à sua promessa, o ALMA também ajuda os investigadores a perceber como nascem os planetas. No ano passado, foi noticiado que o ALMA captara imagens de um disco de poeira em redor de uma jovem estrela – um berçário de planetas.
As imagens revelavam aquilo que aparentava ser uma armadilha de poeira no interior do disco: uma região abrigada onde pequenos grãos de poeira se colavam uns aos outros e, grão a grão, ganhavam dimensão suficiente para se tornarem num planeta. Foi um vislumbre inédito do início do processo de formação dos planetas. Estas observações são apenas o início. Quando todas as antenas se alinharem no final deste ano, o ALMA comporá imagens ainda mais detalhadas de galáxias e sistemas estelares. Num planalto árido, a poucos quilómetros do local onde em tempos os pastores dormiam, os nossos olhos abrir-se-ão para um universo nunca antes observado