José Mayer Cunay, de 78 anos, procura banana-pão madura perto do talhão agrícola com 2.500 metros quadrados que ele e o filho Felipe Mayer Lero criaram na Amazónia boliviana, recorrendo a técnicas de abate e queimada. Quatro gerações da família comem fruta, milho e outras culturas plantadas, mas o alimento mais apreciado tem de ser perseguido: peixe, aves e mamíferos.
Talvez o leitor se surpreenda com o que consta desse menu.
É hora da ceia nas terras baixas amazónicas da Bolívia. Ana Cuata Maito prepara uma papa de banana-pão e mandioca doce numa fogueira ateada no solo da sua cabana, atenta à voz do marido que regressa da floresta na companhia de um cão de caça escanzelado.
Com uma bebé de colo a mamar e um rapaz de 7 anos que não lhe larga a manga, aparenta muito cansaço. Espera que o marido, Deonicio Nate, traga hoje carne para casa. “As crianças ficam tristes quando não há carne para comer”, diz Ana através de um intérprete.
Neste dia de Janeiro, Deonicio partiu antes do alvorecer, munido de uma espingarda e de uma catana, para começar bem cedo a caminhada de duas horas até à floresta. Uma vez ali chegado, perscrutou silenciosamente as copas das árvores em busca de macacos capuchinhos e de coatis, enquanto o cão farejava no solo o odor dos pecaris, parecidos com porcos, e das capivaras. Com sorte, Deonicio descobriria uma das maiores prendas de carne da floresta – o tapir de focinho longo e preênsil, que refocila no meio dos fetos húmidos à procura de botões de flor e rebentos.
Wande e o marido, Mokoa, partem em busca de alimento. Ela serve-se de um pau com uma lâmina na ponta para escavar tubérculos. Ele traz um machado para extrair favos de mel de troncos de árvore e arco e flechas para caçar e defender-se.
Nessa noite, porém, Deonicio emerge da floresta sem carne. Aos 39 anos, é um homem enérgico que não parece fácil de derrotar. Quando finalmente se senta para comer papas numa malga de metal, queixa-se de que é difícil arranjar carne suficiente para alimentar a família: duas mulheres e 12 filhos. Os madeireiros andam a assustar os animais. Não consegue pescar no rio porque uma tempestade levou a canoa.
Detritos arrastados pelas cheias atravancam os baixios do rio Maniqui no lugar onde José toma banho. Uma magnífica borboleta lança-lhe sombra sobre as costas. Os tsimane são magros, em maioria, pois caminham vários quilómetros por dia na sua demanda por alimento.
Ouço histórias semelhantes em cada família que visito em Anachere, uma comunidade com cerca de noventa membros pertencentes à antiga tribo índia dos tsimane. Estamos na estação das chuvas, época de maior dificuldade para a caça e a pesca. Mais de 15 mil tsimane vivem em cerca de uma centena de aldeias ao longo de dois rios na bacia do Amazonas, perto da principal cidade comercial, San Borja, a 360 quilómetros de La Paz. Anachere, porém, localiza-se a dois dias se a viagem for feita numa canoa escavada num tronco e, por isso, os tsimane que ali vivem ainda obtêm a maior parte dos seus alimentos da floresta, do rio, ou das suas hortas.
Jovens caçadores hadza perscrutam o vale de Yaeda. As suas famílias alimentam-se de qualquer tipo de animais que os caçadores tragam para casa. Nos últimos 50 anos, a maior parte das terras ancestrais da tribo tem sido tomada por pastores cujo gado afasta os animais selvagens e por agricultores que derrubam árvores para construir vedações.
O mel é uma fonte de energia essencial para os hadza.
Viajo na companhia de Asher Rosinger, aluno de doutoramento integrado numa equipa co-liderada por William Leonard, da Universidade do Noroeste, que estuda os tsimane para documentar o regime alimentar na floresta tropical.
Os 64 moradores da aldeia de Isortoq, no Leste da Gronelândia, ainda caçam e pescam, mas combinam os alimentos tradicionais dos inuit com compras no supermercado, o grande edifício vermelho que se avista em primeiro plano. Um dos seus pratos preferidos é agora foca com ketchup e maionese.
Asher apresenta-me a José Mayer Cunay, de 78 anos. Juntamente com seu filho, Felipe Mayer Lero, de 39, José plantou uma horta viçosa junto ao rio ao longo dos últimos 30 anos. José conduz-nos por um trilho ladeado por árvores carregadas de papaias douradas e mangas, cachos de banana-pão verde e esferas de toranjas penduradas nas árvores como brincos. Flores de helicónia e gengibre selvagem crescem como ervas daninhas, trepando pelos caules do milho e da cana-de-açúcar.
E, no entanto, no abrigo da família, a mulher de Felipe, Catalina, está a preparar as mesmas papas insípidas dos outros agregados familiares. Quando lhe pergunto se os alimentos cultivados na horta são suficientes para satisfazê-los quando há pouca carne, Felipe acena negativamente com a cabeça. “Não chega para viver”, responde. “Preciso de caçar e de pescar. O meu corpo não quer alimentar-se apenas destas plantas.”
Olhando prospectivamente para 2050, ano em que teremos de proporcionar alimentação para mais dois mil milhões de pessoas, a questão sobre qual o melhor regime alimentar assume proporções mais urgentes. Os produtos que decidirmos ingerir nas próximas décadas produzirão consequências dramáticas para o planeta. Em termos simples, um regime alimentar centrado na ingestão diária de carne e produtos lácteos repercutir-se-á com maior gravidade sobre os recursos do planeta do que uma dieta centrada em cereais não refinados, frutos secos, fruta e legumes.
Até a agricultura se desenvolver, há cerca de dez mil anos, todos os seres humanos obtinham alimento através da caça, da recolecção e da pesca.
Até a agricultura se desenvolver, há cerca de dez mil anos, todos os seres humanos obtinham alimento através da caça, da recolecção e da pesca. À medida que a lavoura emergiu, os caçadores-recolectores nómadas foram empurrados para longe das melhores terras, ficando confinados às florestas da Amazónia, às savanas áridas de África, às ilhas longínquas do Sudeste Asiático e à tundra do Árctico. Hoje restam no planeta poucas tribos dispersas de caçadores-recolectores.
É por essa razão que os cientistas intensificam actualmente esforços para aprender o mais possível sobre este antigo regime alimentar e modo de vida, antes que desapareçam. “Os caçadores-recolectores não são fósseis vivos”, contrapõe Alyssa Crittenden, antropóloga especializada em nutrição na Universidade de Nevada. Alyssa estuda o regime alimentar dos hadza, na Tanzânia, um dos derradeiros grupos de autênticos caçadores--recolectores. “Dito isto, temos um punhado de populações forrageadoras que ainda subsistem no planeta. O tempo está a esgotar-se. Se queremos obter informação sobre o que parece ser um estilo de vida nómada e forrageador, precisamos de compreender o seu regime alimentar agora.”
Uma rapariga alimenta o irmão com um pedaço de fígado de uma foca acabada de capturar pelo pai.
Até ao momento, os estudos centrados nos tsimane, nos inuit do Árctico e nos hadza apuraram que entre estes povos não se manifestaram a hipertensão, a aterosclerose ou as doenças cardiovasculares. “Muitos acreditam que existe uma discordância entre a forma como nos alimentamos e a forma como os nossos antepassados evoluíram em termos alimentares”, afirma o antropólogo Peter Ungar, da Universidade de Arkansas. A ideia de que vivemos presos em organismos da Idade da Pedra num mundo de comida rápida é a força condutora da actual loucura pelos regimes alimentares paleolíticos.
A popularidade destes regimes alimentares arcaicos baseia-se na tese de que os seres humanos modernos evoluíram para se alimentarem da mesma maneira que os caçadores-recolectores se alimentaram durante o Paleolítico – o período que durou de há 2,6 milhões de anos até ao início da revolução agrícola – e de que os nossos genes não tiveram tempo suficiente para se adaptarem aos alimentos criados pela agricultura.
A comida não consumida ficará congelada no exterior: no “congelador” de uma família, guardam-se restos de uma orca e de uma foca.
Um regime alimentar da Idade da Pedra “é o único regime que encaixa na nossa constituição genética”, escreve Loren Cordain, um nutricionista da Universidade Estadual do Colorado, no seu livro “The Paleo Diet: Lose Weight and Get Healthy by Eating the Foods You Were Designed to Eat” [sem tradução portuguesa]. Depois de estudar os regimes alimentares dos povos caçadores-
-recolectores ainda existentes e de concluir que 73% destas sociedades obtêm mais de metade das suas calorias através da carne, Loren propôs a sua própria receita: coma carne e peixe em abundância, mas não produtos lácteos, nem feijão nem cereais, pois esses foram alimentos introduzidos no nosso regime alimentar após a invenção dos alimentos cozinhados e da agricultura.
Segundo os defensores da paleodieta, se apenas ingerirmos os alimentos de que outrora se alimentavam os nossos antepassados, conseguiremos evitar as doenças da civilização, tais como as doenças cardíacas, a hipertensão sanguínea, a diabetes, o cancro e até a acne.
Tudo isto parece muito apelativo. Mas será que todos evoluímos para adoptarmos o regime alimentar centrado na carne? Quer os paleontólogos quer os antropólogos afirmam que a situação é mais complicada do que isto. A adesão popular à paleodieta, segundo Peter Ungar e outros, baseia--se numa amálgama de ideias erradas.
A carne tem desempenhado um papel de destaque na evolução do regime alimentar dos seres humanos.
A carne tem desempenhado um papel de destaque na evolução do regime alimentar dos seres humanos. Raymond Dart, que descobriu em 1924 o primeiro fóssil de um antepassado humano em África, popularizou a imagem dos nossos antepassados longínquos como caçadores de animais de cuja carne precisavam para assegurar a sobrevivência na savana africana. Escrevendo na década de 1950, Raymond Dart descreveu esses seres humanos como “criaturas carnívoras, que se apoderavam das suas presas vivas pela violência, batendo-lhes até as matarem… saciando a sua sede ávida com o sangue quente das vítimas e devorando vorazmente carne azulada e contorcida”.
De rosto polvilhado com um pó refrescante de arroz e folhas de pandan, Alpaida rema para visitar amigos que vivem em palafitas. Esta adolescente e a sua família pertencem ao grupo tribal conhecido como bajau do mar, pois vivem todo o ano nos seus lepa-lepas, barcos-casa construídos à mão.
Segundo alguns cientistas, a ingestão de carne foi crucial para a evolução dos cérebros de maior dimensão dos nossos antepassados, há dois milhões de anos. Ao ingerir carne e tutano em vez da dieta vegetal dos símios, o nosso antepassado directo, o Homo erectus, acumulava energia suplementar em cada refeição. Alimentou assim um cérebro maior. A digestão de alimentos de melhor qualidade e fibra vegetal menos volumosa terá permitido que estes seres humanos possuíssem um aparelho digestivo menor. Por sua vez, a energia disponibilizada graças à menor dimensão do aparelho digestivo teria sido utilizada pelo cérebro, segundo Leslie Aiello, a primeira a propor esta hipótese, juntamente com o paleoantropólogo Peter Wheeler. O cérebro consome 20% da energia do corpo humano em repouso; em comparação, o cérebro de um símio requer apenas 8%. Isto significa que, desde o Homo erectus, o corpo humano tem dependido de um regime alimentar composto por alimentos ricos em energia.
Um pescador bajau segura um polvo capturado durante um mergulho. Com excepção de um prato feito com mandioca, todos os alimentos dos bajau vêm do mar.
Avancemos dois milhões de anos no tempo até à época em que o regime alimentar dos seres humanos registou outra viragem de monta, com a invenção da agricultura. O cultivo de cereais como o sorgo, a cevada, o trigo, o milho e o arroz originou um fornecimento abundante e previsível de produtos alimentares, permitindo que as mulheres dos agricultores gerassem bebés em sucessão rápida – um em cada 2,5 anos, em vez de um em cada 3,5, como acontecia com os caçadores-recolectores. Com a explosão demográfica daí resultante, em breve o número dos agricultores superou o dos forrageadores.
À medida que os primeiros agricultores se tornaram dependentes das culturas vegetais, os seus regimes tornaram-se menos diversificados em termos nutritivos que os dos caçadores-recolectores.
Na última década, os antropólogos esforçaram--se por dar resposta a perguntas decisivas sobre esta transição. Quando Clark Spencer Larsen, da Universidade Estadual do Ohio, descreve a alvorada da agricultura, fá-lo pintando um quadro sombrio. À medida que os primeiros agricultores se tornaram dependentes das culturas vegetais, os seus regimes tornaram-se menos diversificados em termos nutritivos que os dos caçadores-recolectores. Devido à ingestão quotidiana dos mesmos cereais, aumentaram as cáries e doenças periodontais raramente encontradas nos caçadores-recolectores, sugere Clark. Quando os agricultores começaram a domesticar animais, as vacas, ovelhas e cabras transformaram-se em fontes de leite e de carne, mas também de parasitas e de novas doenças infecciosas. Os agricultores sofriam com frequência de carência de ferro e atrasos no desenvolvimento, diminuindo em estatura.
Embora fazendo disparar os efectivos demográficos, o estilo de vida e o regime alimentar dos agricultores eram menos saudáveis do que o estilo de vida e o regime dos caçadores-recolectores. Segundo Clark Larsen, o facto de os agricultores gerarem mais bebés apenas vem comprovar que “não é preciso ser saudável para ter filhos”.
Um bebé dorme junto de uma frigideira com abalones, que serão o jantar da família.
O verdadeiro regime alimentar paleolítico, contudo, não era apenas composto por carne e tutano. É verdade que, em todo o mundo, os caçadores-recolectores têm mais necessidade de carne do que qualquer outro alimento e cerca de 30% da sua ingestão anual de calorias costuma provir dos animais. Na sua maioria, porém, também suportam épocas de escassez, durante as quais comem menos do que uma mão-cheia de carne por semana. Segundo alguns novos estudos, não terá sido apenas a dependência da carne nos antigos regimes alimentares humanos que fez disparar a expansão do cérebro. Houve outro factor.
Observações ao longo de um ano confirmaram que os caçadores-recolectores registam frequentemente fraco sucesso como caçadores.
Observações ao longo de um ano confirmaram que os caçadores-recolectores registam frequentemente fraco sucesso como caçadores. Por exemplo, os hadza e os bosquímanos kung, em África, não conseguem obter carne em mais de metade das ocasiões em que partem para expedições com arco e flecha. Isto indica que a situação seria ainda mais difícil para os nossos antepassados que não possuíam estas armas. “Construiu-se o mito de que basta andar pela savana para encontrar antílopes por todo o lado, à espera de que lhes demos uma marretada na cabeça”, brinca Alison Brooks, da Universidade George Washington, especialista na cultura san do Botswana. Ninguém come carne com tanta frequência, excepto no Árctico, onde os inuit e outros grupos, por tradição, chegavam a obter 99% das calorias ingeridas a partir de carne de foca, narval e peixe.
Ninguém come carne com tanta frequência, excepto no Árctico.
Onde vão então os caçadores-recolectores buscar energia quando não há carne? Acontece que o “homem caçador” é apoiado pela “mulher forrageadora”. Com a ajuda dos filhos, ela fornece mais calorias em tempo de escassez. Quando a carne, a fruta ou o mel escasseiam, os forrageadores dependem dos “géneros alimentares de recurso”, como lhes chama Alison Brooks. Os hadza obtêm quase 70% das calorias ingeridas através de plantas. Os kung, por tradição, ingerem tubérculos e nozes de mongongo, os pigmeus aka e baka da bacia do rio Congo comem inhames e os índios tsimane e yanomami do Amazonas alimentam-se de banana-pão e mandioca.
Ayeem Khan usa as botas do pai e o véu vermelho das raparigas solteiras. Quando se casar, trocá-lo-á por um véu branco. Duas vezes por dia, ordenha os iaques da família: parte do coalho do leite será seco para uso no Inverno, época em que os iaques rendem menos.
“Os mitos de que a caça nos define e a ingestão de carne nos torna humanos têm sido veiculados”, lembra Amanda Henry, do Instituto Max
Planck para a Antropologia da Evolução, em Leipzig. “Para falar francamente, acho que eles deixam escapar metade da história. É verdade que os humanos querem carne, mas aquilo que costumam efectivamente comer são produtos vegetais.” E mais: Amanda encontrou grânulos de amido em dentes fósseis e em utensílios líticos, dando a entender que possivelmente os seres humanos ingerem cereais, bem como tubérculos, há pelo menos cem mil anos, tempo suficiente para desenvolver capacidades de tolerância aos mesmos.
A ideia de que parámos de evoluir no Paleolítico é simplesmente falsa. Os nossos dentes, maxilares e faces têm vindo a diminuir de tamanho e o nosso DNA alterou-se desde a invenção da agricultura. Uma prova eloquente deste facto é a tolerância à lactose. Todos os seres humanos digerem o leite materno enquanto bebés, mas até à domesticação do gado, há dez mil anos, as crianças desmamadas não precisavam de digerir o leite.
Todos os seres humanos digerem o leite materno enquanto bebés, mas até à domesticação do gado, há dez mil anos, as crianças desmamadas não precisavam de digerir o leite.
Por consequência, deixavam de produzir a enzima da lactase, que decompõe a lactose em açúcares simples. Depois de os seres humanos começarem a pastorear rebanhos, tornou-se vantajoso digerir o leite, e a tolerância à lactose evoluiu independentemente entre os povos pastores da Europa, do Médio Oriente e de África. Os grupos que não dependiam da criação de gado, como os chineses e os tailandeses, os índios pima do Sudoeste norte-americano e os banto da África Ocidental permaneceram intolerantes à lactose. Os seres humanos também variam na sua capacidade de extrair açúcares de alimentos com amido, enquanto os mastigam, dependendo do número de cópias de um gene transmitido hereditariamente. As populações que, por tradição, ingeriam mais alimentos com amido, como os hadza, possuem mais cópias desse gene do que os yakut da Sibéria, e a sua saliva ajuda a decompor os amidos antes de estes entrarem no estômago.
Os maias da América Central desconheciam praticamente a diabetes até à década de 1950.
Segundo alguns estudos, há grupos indígenas que enfrentam problemas quando trocam os seus regimes alimentares e estilos de vida tradicionais pelo modo de vida ocidental. Os maias da América Central desconheciam praticamente a diabetes até à década de 1950. Ao mudarem para o regime alimentar ocidental rico em açúcares, a incidência da diabetes disparou. Comunidades pastoris tradicionais da Sibéria, como os evenk e os yakut seguiam um regime alimentar dependente da carne, mas quase não sofriam de doenças cardíacas até se tornarem mais sedentários e começarem a ingerir comida processada. Para muitos povos siberianos indígenas, este cenário agravou-se após o colapso da União Soviética. Actualmente, cerca de metade dos yakut em centros urbanos sofrem de excesso de peso e quase um terço padece de hipertensão, segundo William Leonard. E os tsimane que ingerem alimentos comerciais mostram maior propensão para a diabetes do que aqueles que ainda dependem da caça e recolecção.
Uma mulher quirguiz coa o leite com a mão, retirando pêlos de iaque e outros detritos.
Para aqueles cujos antepassados estavam adaptados a regimes alimentares à base de vegetais e que têm empregos sedentários, talvez seja melhor não comerem tanta carne como os yakut. Estudos recentes confirmaram a tese de que, embora os humanos ingiram carne vermelha há dois milhões de anos, o consumo excessivo aumenta a aterosclerose e o cancro na maior parte das populações e a culpa não é apenas das gorduras saturadas e do colesterol. As bactérias gastrointestinais digerem um nutriente da carne chamado L-carnitina. Num estudo com ratinhos, a digestão da L-carnitina fez disparar a placa obstrutora das artérias. Já foi também demonstrado que o sistema imunitário humano ataca um açúcar presente na carne vermelha, o Neu5Gc, provocando inflamação pouco significativa nos jovens mas que pode causar cancro nos adultos. “A carne vermelha é fantástica para quem quer viver até aos 45 anos”, diz Ajit Varki, autor principal do estudo sobre o Neu5Gc.
Segundo muitos antropólogos, embora os defensores da paleodieta previnam que é preciso evitar os alimentos transformados pouco saudáveis, a grande ênfase desta dieta na carne não replica a diversidade de alimentos outrora ingeridos pelos nossos antepassados, nem leva em conta os estilos de vida activos que os protegiam das doenças cardíacas e da diabetes. “Não existia apenas um único regime alimentar do homem das cavernas”, diz Leslie Aiello, presidente da Fundação Wenner-Gren para a Investigação Antropológica. “O regime alimentar humano tem pelo menos dois milhões de anos.”
Por outras palavras, não existe um único regime alimentar ideal para os seres humanos.
Por outras palavras, não existe um único regime alimentar ideal para os seres humanos. De acordo com Leslie Aiello e William Leonard, a marca verdadeiramente distintiva do ser humano não é o seu gosto pela carne, mas a sua capacidade para se adaptar a muitos habitats e combinar diferentes alimentos para criar múltiplos regimes alimentares saudáveis. Infelizmente, o regime alimentar ocidental actual não parece ser um deles.
A pista derradeira sobre a influência do regime alimentar moderno no aumento de algumas doenças é fornecida pelo primatologista Richard Wrangham, que afirma que a maior revolução alimentar dos seres humanos não surgiu quando começámos a ingerir carne, mas quando aprendemos a cozinhar. Os nossos antepassados humanos começaram a cozinhar, de há 1,8 milhões de anos a 400 mil anos, e tiveram provavelmente mais filhos sobreviventes. Macerar e aquecer os alimentos assegura a sua “pré-digestão” e, por isso, o nosso tracto gastrointestinal gasta menos energia a decompô-los, absorve-os melhor e extrai deles mais energia para os nossos cérebros. “A confecção produz alimentos macios e ricos em energia”, afirma Richard. Actualmente, não conseguimos sobreviver comendo apenas alimentos crus e não transformados, acrescenta. Evoluímos e dependemos de alimentos cozinhados.
Os pastores do Pamir Shimshal, no Norte do Paquistão que faz fronteira com a China, tratam de rebanhos. Iaques, cabras e ovelhas são engordados durante vários meses nas pastagens de Verão para conseguirem sobreviver e proporcionar alimento suficiente durante o Inverno.
Para testar as suas ideias, Richard Wrangham e os seus alunos prepararam alimentos cozinhados para ratinhos. Aquando da minha visita ao seu laboratório em Harvard, Rachel Carmody, então aluna de pós-graduação, abriu a porta de um frigorífico para me mostrar sacos de plástico cheios de carne e batata-doce, alguns crus e alguns cozinhados. Os ratinhos criados com alimentos cozinhados registaram um aumento de peso de 15 a 40% relativamente aos ratinhos criados apenas com alimentos crus.
Se Richard Wrangham tiver razão, os alimentos cozinhados proporcionaram aos seres humanos a energia necessária para alimentar cérebros de maior dimensão e ajudaram-nos a obter mais calorias dos alimentos para aumentar de peso. No contexto da vida moderna, o reverso da medalha é que podemos ser vítimas do nosso próprio êxito. Fomos tão bem sucedidos a transformar os alimentos que, pela primeira vez na história da evolução humana, muitos humanos consomem mais calorias do que conseguem queimar por dia.
Fomos tão bem sucedidos a transformar os alimentos que, pela primeira vez na história da evolução humana, muitos humanos consomem mais calorias do que conseguem queimar por dia.
Na minha última tarde de visita aos tsimane, em Anachere, uma das filhas de Deonicio Nate, Albania, de 13 anos, comenta que o pai e o meio--irmão, Alberto, de 16 anos, estão de regresso da caçada e trazem algo. Vamos atrás dela até à cabana da cozinha e cheiramos os animais mesmo antes de os vermos. São três coatis e foram colocados sobre a fogueira.
As mulheres de Deonicio estão também a limpar dois tatus, preparando-se para cozinhá-los num estufado com banana-pão desfiada. Deonicio senta-se junto à fogueira, descrevendo o dia de caça. Enquanto os membros da família saboreiam o banquete, observo o filho mais novo, Alfonso, que estivera doente toda a semana. Ele dança à volta da fogueira, mastigando um pedaço cozinhado de cauda de coati. Deonicio parece feliz. Hoje, em Anachere, longe dos debates sobre o regime alimentar, há carne. E isso é bom!