Uma cacofonia de latidos de alerta chama-me a atenção para a caixa de cartão entregue à minha porta. No interior, encontra-se uma única folha de plástico branco ondulado, dobrada com uma forma semelhante à de uma mala de viagem. Os meus companheiros caninos cheiram, com curiosidade, à medida que vou desenrolando a forma rígida, que ocupa quase todo o comprimento da minha sala. Quando empurro para fora os vincos de um dos lados, ouço um pop chocantemente sonoro.
Procuro freneticamente os danos, com o coração a bater. Mas não há nada partido. Em vez disso, a mala de plástico transformou-se e, de repente, tenho um caiaque em tamanho real na minha sala.
Criada pela empresa Oru Kayak, a embarcação faz parte de uma revolução científica e tecnológica inspirada pela multissecular arte do origami.
Aquilo que começou por ser um esforço para compreender a matemática subjacente aos padrões de dobragem revelou possibilidades surpreendentes na manipulação da forma, do movimento e das propriedades de todo o tipo de materiais – dos filtros de máscaras faciais ao plástico dos caiaques e até às células vivas. “Não consigo acompanhar a rapidez da evolução”, comenta Robert J. Lang, um destacado artista de origami que já trabalhou em física de laser. “É um momento maravilhoso para este domínio”.
A arte do origami persiste no Japão pelo menos desde o século XVII, mas existem indícios de dobragem em papel em tempos muito mais remotos. Inicialmente, os modelos eram simples porque o papel era caro e usados sobretudo para fins cerimoniais, como as borboletas de papel macho e fêmea conhecidas como Ocho e Mecho que enfeitam as garrafas de saké nos casamentos xinto.
À medida que os preços baixavam, o origami passou a ser utilizado em papel de embrulho, brinquedos e, até, em aulas de geometria para crianças.
Craig Cutler
Em meados do século XX, o mestre de origami Akira Yoshizawa ajudou a elevar a arte de dobragem em papel ao estatuto de arte. Deu vida e personalidade a cada criatura que desenhou. Com a publicação do seu primeiro livro de origami, em 1954, Yoshizawa tornou esta forma de arte mais acessível, fundando uma linguagem facilmente compreensível de linhas pontilhadas, traços e setas que contribuem para sistemas ainda hoje utilizados.
Em finais da década de 1950, as formas delicadas de Yoshizawa inspiraram Tomoko Fuse, actualmente uma das artistas de origami de maior renome no Japão. O pai ofereceu-lhe o segundo livro de Yoshizawa sobre origami em criança, enquanto recuperava de um episódio de difteria. Tomoko criou metodicamente cada modelo e ficou fascinada por origami desde então.
Craig Cutler
Proteger. O elaborado padrão de dobragem da máscara facial Air99’s Airgami ajuda a aperfeiçoar a adaptabilidade ao rosto e a função. Concebidas a partir de um filtro N95 flexível fundido com uma camada mais rígida e dobrável, as extremidades da máscara mantêm-se junto do rosto devido ao padrão específico de vincos. Quando alisada, é duas a três vezes maior do que uma máscara N95 comum. O aumento da área de superfície de uma máscara permite a circulação de mais ar. “É como respirar através de uma palhinha em vez de um tubo”, diz Richard Gordon, co-fundador e director-geral da Air99.
Entre os seus diversos feitos, Tomoko é famosa pelos seus avanços em origami modular, que utiliza unidades interligadas para criar modelos com maior flexibilidade e potencial complexidade. Ela vê o seu trabalho menos como uma criação e mais como uma descoberta de algo que já existe, “como um caça-tesouros”, afirma.
Com efeito, o origami explora padrões que ecoam no universo, visíveis em formas naturais como folhas que emergem de um botão, ou insectos fechando as asas. No entanto, para que estas dobras requintadas se tornem cientificamente úteis, os investigadores precisam de descobrir os padrões e de compreender como estes funcionam. E isso exige matemática.
Craig Cutler
Explorar. Este disco expansível ocupa o centro de um protótipo à escala de 1:2 de uma sombra estelar no Laboratório de Propulsão a Jacto da NASA, que poderá ser uma peça essencial na busca de mundos habitáveis. A nossa galáxia tem quase tantos planetas como estrelas, mas os cientistas ofuscados pelas segundas não os conseguem detectar directamente. Voando à frente de um telescópio para bloquear a luz, a sombra estelar pode ajudar os cientistas a verem melhor. A estrutura da sombra estelar baseia-se num padrão intermitente, que lhe permite enrolar-se num cilindro para o lançamento. Uma vez instalada, a sombra (parcialmente aberta na imagem anterior) desdobrar-se-ia, assumindo a forma de um disco plano com pétalas, semelhante a uma flor.
Há muito tempo que este processo de atribuição de números aos padrões complexos do origami motiva o trabalho do matemático Thomas Hull, da Universidade de Nova Inglaterra Ocidental. Quando entro no Departamento de Matemática da sua faculdade, percebo logo qual é o seu gabinete. A porta ao fundo do corredor está entreaberta, revelando papel de cores garridas dobrado em todo o tipo de formas geométricas. Os modelos preenchem cada canto da divisão: pendem do tecto, enfeitam as estantes e ilustram o desktop do computador. Thomas sente-se fascinado há muito por padrões e ainda se lembra de ter dobrado uma garça de papel aos 10 anos, maravilhando-se com os vincos ordenados na folha lisa.
Há regras em jogo que viabilizam o funcionamento do origami, lembra-se de ter pensado. Este investigador e outros passaram décadas a tentar perceber a matemática que governa o mundo do origami.
Craig Cutler
Espantar. Ainda não se compreende a matemática subjacente às elegantes dobras desta estrutura, que se forma quando dobras curvas são acrescentadas a folhas circulares. “Obtemos formas 3D impressionantes com vincos muito simples”, diz Erik Demaine, professor do MIT que desenhou este padrão de dobragem com o colega Martin Demaine. Atraídos para as dobragens como forma de fazer novos truques de magia, esta dupla de pai e filho apaixonou-se pelos problemas geométricos do origami. Embora os vincos curvos ainda não tenham aplicações, Erik vê muitas possibilidades na simplicidade e força potencial.
Enquanto conversamos, Thomas vai buscar um conjunto de modelos dobrados em formas intrigantes ou que se movem de maneiras inesperadas. Uma é uma folha dobrada numa série de montanhas e vales conhecida como padrão miura-ori, que colapsa ou abre com um único toque. Imaginado pelo astrofísico Koryo Miura na década de 1970, o padrão foi utilizado para compactar os painéis solares da sonda japonesa Space Flyer Unit, lançada em 1995.
Nos anos entretanto decorridos, o origami tem sido aplicado a muitos tipos de materiais diferentes, incluindo folhas minúsculas de células. Este suporte invulgar reveste a estrutura que se dobra autonomamente criada por Kaori Kuribayashi-Shigetomi, na Universidade de Hokkaido. Quando tocadas, as células contraem-se, transformando estruturas planas em “peças de Lego” celulares, como ela lhes chama, que um dia poderão ajudar a desenvolver órgãos.
Craig Cutler
Flutuar. Em 2007, Anton Willis, que acabara de concluir a sua pós-graduação em arquitectura, mudou-se para um apartamento em São Francisco. O imóvel era tão atravancado que ele teve de guardar o seu adorado caiaque num armazém. Um artigo sobre Lang, o artista de origami e físico, publicado numa revista, deu-lhe a ideia de resolver o seu problema: um caiaque que se dobrasse. Começou a fazer modelos em papel, por vezes sorrateiramente no escritório, com uma única folha para garantir que a embarcação seria estanque. “Durante algum tempo, era quase como se amarrotasse o papel para ver onde ele se dobrava sozinho e depois refinava o processo a partir daí”, diz Anton, que acabou por fundar a Oru Kayak. A empresa tem agora uma gama completa de embarcações dobráveis que se compacta em minutos, disponível ao mesmo preço dos caiaques tradicionais.
Apesar da actual popularidade do origami na ciência e na tecnologia, as primeiras incursões dos investigadores nos domínios das dobragens encontraram resistência. Thomas Hull ainda se lembra de uma discussão em 1997 com um gestor de programa da Fundação Nacional de Ciência (NSF, na sigla anglófona), a agência governamental dos EUA que apoia a investigação e o ensino. Thomas apresentava então os contornos gerais de um potencial projecto quando o gestor de programa o interrompeu para dizer que a NSF nunca financiaria “uma proposta de investigação com origami no título”.
Este cepticismo não foi exclusivo dos Estados Unidos. Tomohiro Tachi, um famoso engenheiro de origami da Universidade de Tóquio, baixa os olhos e sorri quando lhe pergunto se enfrentou resistência ao seu trabalho. Conta que os japoneses vêem com frequência o origami como uma brincadeira para crianças. No entanto, essa percepção tem mudado nas últimas décadas e a NSF liderou grande parte da mudança.
Craig Cutler
Içar. Shuguang Li estava a brincar com um cilindro desdobrável em origami quando, num impulso, o pôs no saco do aspirador. Shuguang, então bolseiro de pós-doutoramento em Harvard e no MIT, sugou o ar e ficou surpreendido por ver a forma contrair-se como se estivesse a pressioná-la com a mão. Ao testar outras formas, apercebeu-se de que os padrões de dobragem e a rigidez dos materiais controlavam os seus movimentos, uma descoberta que levou à criação destes braços robóticos fortes, suaves e leves. Cada braço funciona como um músculo artificial, envolto numa “pele” de saco de vácuo com um esqueleto interno inspirado por dobragens de origami. Variando a pressão do aspirador, Shuguang consegue que os braços executem tarefas úteis, como levantar e segurar objectos.
Quando ocupou um cargo temporário na organização, a partir de 2009, Glaucio Paulino insistiu em financiar investigação com origami. “O processo foi brutal”, conta este professor de engenharia em Princeton. “Estávamos sempre pressionados a defender a ideia.” Em contrapartida, os esforços compensaram. Em 2011, a NSF publicou o primeiro de dois concursos combinando origami e ciência e equipas de investigadores apresentaram as suas ideias. Esta acção deu legitimidade ao campo emergente e o uso do origami na ciência floresceu. “Muitos começaram a trabalhar em origami”, diz Robert J. Lang. “Chegara o seu tempo.”
Agora, o origami está a ultrapassar os limites daquilo que os cientistas consideram possível, em particular nas mais ínfimas escalas. Num dia escaldante de Verão, encontro-me com Marc Miskin, engenheiro electrotécnico da Universidade da Pensilvânia. No átrio do Centro Singh de Nanotecnologia da Universidade da Pensilvânia, espreitamos através de uma parede cor de laranja vivo para o interior das salas onde pessoas vestidas com Tyvek dos pés à cabeça trabalham atrás de microscópios ou sob exaustores de ventilação. Parece que estamos a um mundo de distância do caos colorido do gabinete de Thomas Hull, mas o origami poderá ser igualmente essencial aqui.
Craig Cutler
Curar. As dobras giratórias deste robot minúsculo permitem-lhe girar enquanto colapsa ou se expande. Este padrão Kresling homenageia a arquitecta e especialista em design Biruta Kresling. As dobras inspiraram a invenção de estruturas cilíndricas pequenas e grandes, incluindo esta minúscula ferramenta médica. Elaborado por uma equipa chefiada pela engenheira mecânica Ruike Renee Zhao, da Universidade de Stanford, o dispositivo poderá um dia ser essencial para a administração localizada de fármacos. Campos magnéticos podem conduzir o robot, deslocando-o pelo organismo de diversas formas. Por exemplo, é propulsionado pela rotação graças à geometria das suas dobras. Ímanes emparelhados, colocados em extremidades opostas do cilindro, obrigam as dobras a comprimir-se, bombeando medicamentos líquidos no local desejado.
Marc Miskin e os seus alunos têm utilizado a sala limpa para fabricar um exército de robots pouco maiores do que um grão de poeira. Estes robots minúsculos requerem muita criatividade. As engrenagens e a maioria dos outros mecanismos com peças móveis funcionam melhor no mundo à escala humana, governado pelo impulso e pela inércia, explica o investigador. Porém, isso não se aplica em escalas minúsculas, onde forças como a fricção são enormes, provocando constantes problemas. As engrenagens não funcionam. As rodas não giram. As correias não correm.
É aqui que o origami entra em cena. Os padrões de dobragem curvam-se e deslocam-se da mesma forma em qualquer dimensão, pelo menos em teoria. Criados com as mesmas tecnologias utilizadas na indústria dos chips informáticos, os robots de Marc Miskin parecerão flocos planos com braços e pernas. Accionados por uma corrente eléctrica, os seus membros curvam-se, ajudando-os a caminhar numa gota de um escorrega de vidro ou a acenar a uma ameba de passagem.
Craig Cutler
O artista de origami e médico Robert J. Lang dobrou esta garça a partir de uma única folha de papel sem cortes. A complexidade desta forma — desde os seus membros esguios às asas emplumadas — era considerada quase impossível no passado. Porém, este pioneiro no uso da matemática no origami desenhou a ave, utilizando conceitos geométricos essenciais do programa TreeMaker, que desenvolveu em 1993 para testar se os computadores poderiam ajudar a desenhar origami.
Segundo o cientista, há inúmeras possibilidades para a utilização destes minúsculos robots – da indústria de manufactura à medicina. Por ora, porém, é mais importante ultrapassar os limites. “Se perseguirmos problemas difíceis, seremos recompensados com tecnologia interessante”, diz.
O origami é particularmente promissor na biomedicina. Uma equipa liderada por Daniela Rus, directora do Laboratório de Ciência Informática e Inteligência Artificial do Instituto de Tecnologia do Massachusetts, desenvolveu um robot capaz de se dobrar para caber numa cápsula. Quando a cápsula é ingerida, o robot desdobra-se e pode ser dirigido dentro do sistema digestivo, usando campos magnéticos programáveis. Um teste inicial demonstrou uma utilização possível: a remoção do estômago de pilhas-botão potencialmente mortais e engolidas por milhares de crianças anualmente. “Imagine embutir-lhe medicamentos ou utilizá-la para tratar um ferimento”, pede Daniela. “Imagine um futuro de cirurgias sem incisões, sem dor e sem risco de infecção.”
É neste tipo de sonhos grandiosos que o origami parece ajudar mais a ciência. Esta forma de arte forneceu um novo conjunto de ferramentas para activar a imaginação e criar tecnologias consideradas impossíveis, incluindo um caiaque que se dobra e fica suficientemente pequeno para caber no porta-bagagens de um automóvel. Numa tarde luminosa de Outono, levo o meu caiaque para o lago Accotink, na Virgínia. A mala de plástico atrai olhares curiosos dos transeuntes quando a desdobro. Talvez um dia as formas dobradas pareçam prosaicas. Agora, porém, o origami vai continuar a provocar excitação à medida que impulsiona a ciência, a medicina e a tecnologia para o futuro – e me mantém à superfície enquanto me afasto da margem do lago.