Na longa artéria paralela ao mar, o areal emoldurado pela imponente falésia do Sítio da Nazaré está repleto de pessoas. Num espaço por definição de liberdade e movimentos dispersos, forma-se uma fila. Por detrás da muralha humana, entrevê-se o motivo: são os cobiçados gelados! Com olhar guloso, os clientes brandem pequenas colheres transparentes. Nesta insuspeita ferramenta, encerra-se uma silenciosa revolução: bioplástico. Diminuta, a palavra “Compostable” surge discretamente gravada, metáfora do esforço de vários agentes para minimizar o impacte dos plásticos de origem fóssil no nosso quotidiano.

As campanhas contra plásticos de uso único multiplicaram-se nos últimos anos, conduzindo inclusivamente a alterações na legislação (o fim dos sacos gratuitos nos supermercados foi disso exemplo). O plástico tornou-se um imenso elefante na sala. Da gigantesca ilha flutuante do Pacífico ao minúsculo cavalo-marinho montado num cotonete cor de rosa, há hoje uma consciência de que se impõem medidas urgentes e eficientes. O crescimento exponencial da população mundial e do nível de vida de muitos países elevaram a produção, utilização e deposição de plástico. Não tardaram a surgir, por isso, soluções para esta problemática, na forma de bioplásticos.

À primeira vista, a premissa parece simples: utilizar recursos de base orgânica para a produção de plástico, substituindo os elementos tradicionais, de origem fóssil. Resolver-se-iam duma penada dois problemas: redução de desperdício e da dependência do petróleo! Mas assim que se aprofunda o assunto, surgem cada vez mais dúvidas e menos respostas.

Valorsul

A Valorsul recebe todos os dias milhares de toneladas de resíduos orgânicos da Grande Lisboa que passam por sistemas de triagem mecânica para separar contaminantes (como plásticos e metais).

Em busca delas, chegamos a Cantanhede. No Biocant, centro de investigação que acolhe cerca de 40% das empresas de biotecnologia de Portugal, a Biotrend é uma das instituições que foca a sua energia na criação de alternativas. Numa ampla sala repleta de complexos instrumentos de inox reluzente, vários técnicos de fato imaculadamente branco movem-se entre centrifugadoras, tubos retorcidos e recipientes que mais parecem panelas de pressão XXL!

Bruno Ferreira, o director-geral, enquadra o problema: “97% do crude é utilizado para combustíveis e apenas 3% para plásticos e outros usos. Ainda assim a ideia de produzir plásticos a partir de fontes renováveis é aliciante, reforçando o conceito de economia circular”, diz. “No entanto estes podem não ser biodegradáveis. Resolvem o problema dos fósseis e do CO2, mas não da poluição, e criam novas dificuldades técnicas e económicas”.

Um dos vectores da Biotrend é a criação de poliéster, em laboratório, a partir de resíduos orgânicos, através de um processo biológico com recurso a bactérias e fermentadores, tendo como objectivo a certificação de biodegradabilidade, nomeadamente em ambiente marinho. O espectro de utilização possível é muito vasto, de peças automóveis a próteses, passando naturalmente pelas embalagens. Estes novos materiais podem, por exemplo, vir a substituir parafusos cirúrgicos, evitando uma segunda operação para os retirar. Estuda-se também a sua utilização como “base” sobre a qual são cultivados tecidos (implantes, cartilagens), soluções potencialmente revolucionárias para a medicina e cosmética.

bioplásticos na cosmética

Um filme bioplástico experimental desenvolvido pela Biotrend.

Na verdade, há novos produtos já entre nós. Basta fazer um périplo por algumas grandes superfícies e manter a atenção. Concentremo-nos em apenas dois exemplos: a Delta lançou a eQo, uma linha de cápsulas de café biodegradáveis, produzida a partir de fibras vegetais. E no Continente os sumos Autêntico utilizam embalagens em R-PET, um plástico que, embora de origem fóssil, é totalmente reciclado.

Do outro lado do espectro, há quem defenda que os bioplásticos pouco ou nada vêm resolver. Activista da associação ambientalista ZERO, Susana Fonseca coloca o dedo na ferida: “O grande problema é que os bioplásticos mantêm o mesmo modelo de produção e consumo que já temos nos plásticos fósseis, sobretudo nos descartáveis, que levam à redução de biodiversidade, escassez de recursos e poluição.”

Por outro lado, há também a discussão sobre as matérias-primas para a produção de bioplásticos. Cascas de batata e afins não chegariam para substituir a totalidade de todos os plásticos de origem fóssil. E uma aposta substancial num modelo baseado em matéria orgânica como base para a produção dos plásticos do futuro poderia criar competição por recursos alimentares. Para a ambientalista, “estes novos compostos são um nicho, com algum valor, mas não uma transformação radical do paradigma. Não são uma alternativa por si sós.” Para a associação ZERO, a solução terá de passar pela criação de circuitos que prolonguem a vida útil destes materiais, por exemplo através da criação de tara nas garrafas de plástico, incentivando a reutilização e reenchimento.

Na cadeia LIDL, encontra-se já uma solução curiosa em curso: um detergente para lavagem da louça à mão concentrado, em pastilhas, dilui-se em água antes da utilização e o modelo é aplicável a outros produtos de consumo doméstico se a indústria apostar nessa via.

A ZERO realça que até a etiqueta “Compostável” pode ser falaciosa. A comunicação para o público é complicada, não sendo fácil explicar a diferença entre tipos de plásticos e o seu grau de decomposição, o que complica o tratamento e a reciclagem posterior. Na prática, a compostagem industrial é complexa e as soluções existentes assentam num processo de três meses, enquanto os plásticos compostáveis demoram aproximadamente seis meses a degradar-se. Tal como existem hoje, são processos pouco compatíveis.

colher em bioplástico

Uma colher compostável.

É importante espreitar a jusante do problema e medir os resíduos. Uma mudança de comportamento social e económico não é muito diferente do leme de um transatlântico: após o comandante ordenar a rotação, demora muito até a repercussão se fazer sentir no navio. Também nos resíduos uma eventual mudança comportamental demorará a expressar-se em estatísticas. A sul, numa das principais unidades de compostagem do país, o Centro de Valorização e Tratamento Orgânico (CTVO) da Valorsul, em Loures, são recolhidas milhares de toneladas de resíduos orgânicos, em cantinas, restaurantes e outros grandes produtores. Desse processo, resulta, além da retirada de imenso lixo que terminaria em aterro ou incineração, um composto orgânico utilizado como fertilizante e a produção de energia eléctrica através de biogás. Ali, no interior, o impacte olfactivo é intenso! Mas rapidamente passa.

Guiado por João Paulino entre enormes contentores repletos de restos alimentares e muitos sacos de plástico, percebe-se rapidamente que os obstáculos à compostagem industrial de bioplásticos acumulam-se. Além da diferença temporal que os processos físico-químicos tomam, o CTVO está desenhado para retirar mecanicamente os contaminantes logo no início do tratamento, através de grandes crivos, rolos e helicóides, de forma a assegurar que, nos estágios posteriores, a presença de material não-orgânico já seja residual.

Ora, estes sistemas mecânicos não distinguem plásticos de origem fóssil dos bioplásticos, o que significa que estes acabarão misturados com plásticos convencionais, não chegando a ser compostados nem reciclados (segundo a Sociedade Ponto Verde, em 2020, foram recolhidas 409.057 toneladas de embalagens, das quais 68.235 de plástico). A reciclagem tem cumprido metas comunitárias, mas terá também de se adaptar a novas faces do problema.

Questionada sobre a problemática, a LIPOR, entidade congénere da Valorsul no Norte do país, afirma: “É natural e provável que surjam novos materiais, sejam eles plásticos, fungos, cartão ou outras fibras naturais. A substituição total não parece que vá acontecer; é mais provável que se registe uma proliferação de possibilidades para as quais os sistemas de gestão de resíduos terão de se preparar.” Dado o investimento colossal destas unidades (a da LIPOR correspondeu a 36 milhões de euros em 2005), “provavelmente só no caso de produção em massa deste novo tipo de resíduo surgirão eventuais soluções de tratamento dedicadas, como a biorrefinaria ou conversão termoquímica”, explica a instituição nortenha.

bioplásticos

No Centro de Tratamento e Valorização Orgânica em Loures, o processamento de resíduos orgânicos apresenta diversas vantagens: além de diminuir os problemas ambientais em aterro (águas lixiviadas e maus odores) permite a produção de fertilizantes para agricultura (em primeiro plano) e biogás (estrutura em segundo plano).

Para melhor compreender o cenário a montante, a Logoplaste, uma das principais empresas de plástico nacionais, abre as portas da sua unidade industrial da Mealhada. Aqui, polímeros pouco maiores do que grãos de arroz são transformados em pré-formas coloridas, que serão depois aquecidas e sopradas para criar embalagens, tanto a partir de materiais virgens como reciclados.

Afável e entusiasta, Paulo Correia, o CTO da Logoplaste, diz estar habituado a que a discussão sobre plásticos resvale para campos emocionais e conclusões precipitadas. O plástico não é uma entidade individual, fazendo parte de um eco-sistema de potenciais soluções que se tocam e interligam. Soluções como o papel, o alumínio, o vidro e o plástico têm todas o seu espaço próprio. Este eco-sistema é complexo, cheio de vasos comunicantes”, explica. “Mas o plástico é um material órfão. Pede-se responsabilidade social a todas as entidades, lembrando que as alternativas regularmente sugeridas, como o papel, também apresentam problemas – basta ver o efeito das monoculturas sobre a floresta autóctone.” Mesmo na questão dos microplásticos no ambiente, “um dos grandes contribuidores é a lavagem de roupa (que hoje tem uma base maioritariamente à base de poliéster), em máquinas domésticas, sem filtros capazes de os reter, sem qualquer controlo no escoamento para rios e oceanos. Não se deve olhar para estas questões de maneira isolada e unicamente sobre uma matriz emocional”, diz.