O planeta vermelho fascina-nos. Apesar do nosso conhecimento crescente, o enigma marciano continua a fascinar os seres humanos.

Nesta noite amena de meados de Outubro, vou a caminho do Observatório McCormick da Universidade de Virgínia numa missão para resolver um mistério antigo: o que leva os terrestres a viverem tão obcecados por Marte?

A cúpula do observatório está aberta, gravando um crescente luminoso cor de âmbar sobre a escuridão do Outono. No interior, um telescópio vai ajudar-me a ver Marte tal como os observadores o avistaram há mais de um século. Em 1877, astrónomos ansiosos usaram o instrumento para confirmar a descoberta das duas minúsculas luas que orbitam Marte: Fobos e Deimos.


Esta noite, o astrónomo Ed Murphy deslocou-se de propósito ao observatório, que estava fechado ao público devido à pandemia em curso. A dança rodopiante das dinâmicas orbitais posicionou Marte na sua maior e mais brilhante posição no céu e Ed calcula que esta seja a melhor altura para o observar na região central do estado de Virgínia, onde a atmosfera turbulenta pode, por vezes, dificultar a observação do céu nocturno.

Trepa por um escadote e instala-se na plataforma de observação, uma estrutura de madeira construída em 1885, ajustando o telescópio gigante na direcção do vistoso ponto de luz cor de laranja. Mexe num manípulo, focando o planeta. “Se esperar por aqueles instantes em que a atmosfera acalma, verá Marte bastante nítido… mas depois o planeta volta a ficar desfocado”, diz, por detrás da sua máscara facial com desenhos espaciais.

Trocamos de lugar. Visto através do telescópio, Marte é uma esfera cor de pêssego que vai ganhando e perdendo resolução. Com algumas hesitações, vou desenhando as suas características indistintas e evocando os académicos do século XIX que em tempos cartografaram as suas paisagens, alguns acreditando que a superfície indiciava a presença de uma civilização avançada.

HORIZONTES ANCESTRAIS. Em 2003, um veículo de exploração espacial encontrou provas de que, em tempos, a água fluiu sobre Marte, mas as condições climáticas ancestrais do Planeta Vermelho continuam a ser tema de debate. Os modelos sugerem dois extremos que poderão ter permitido a existência de alguma matéria líquida à superfície, aqui ilustrada. Os cientis- tas suspeitam que em Marte talvez ocorressem ciclos alternados dos dois estados.

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Quente e húmido. Um clima mais quente, mais próximo da temperatura média de 140C da Terra, teria permitido a existência de água corrente e até de chuva. As tempestades poderiam limpar a maior parte da poeira da atmosfera, criando céus mais azuis. A paisagem rochosa de Marte não poderá ter servido de suporte a qualquer tipo de vegetação.

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Frio e com gelo. Temperaturas mais frias do que as da Antárctida manteriam a água da superfície congelada, com gelo e neve a grandes altitudes. Lava e vapor poderiam aquecer algumas zonas durante breves períodos. No passado, Marte talvez se apresentasse mais acinzentado: o ferro oxidado de hoje confere um tom avermelhado ao seu solo.

Hoje sabemos que não existem enormes cicatrizes de engenharia ziguezagueando sobre a superfície vermelha do planeta. O interesse humano por Marte é intemporal. Há milénios que tentamos compreender Marte, associando-o às nossas divindades, registando o seu movimento e cartografando a sua face. Introduzimos Marte na arte, na música, na literatura e no cinema. Também lançámos mais de cinquenta engenhos até Marte. Muitos deles falharam. E a nossa paranóia por Marte ainda dura.

Quando me encontrei com Ed Murphy em Outubro, havia oito sondas a orbitar Marte ou veículos a explorar a sua superfície poeirenta. Em Março de 2021, mais três emissários robóticos vão ao encontro do Planeta Vermelho, onde um veículo de exploração espacial da NASA denominado Perseverance, teve a recente missão de procurar sinais de vida. Seguiram também duas outras missões potencialmente históricas da China, com a sonda robótica Tianwen-1, e dos Emirados Árabes Unidos, a EMM-Emirates Mars Mission, com a sonda Hope. Mas porquê? De todos os mundos que conhecemos, Marte não é superlativo em aspecto algum. Não é o mais brilhante, o mais próximo, o mais pequeno ou o de acesso mais fácil. Não é tão misterioso como Vénus. Não se encontra tão espectacularmente enfeitado como Júpiter ou Saturno, com os seus anéis. Nem sequer é o sítio mais provável para descobrirmos vida extraterrestre. Esse registo pertence às luas de oceanos gelados existentes no sistema solar exterior.


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As razões científicas para Marte ser um alvo tão cativante são complexas e crescentes, alimentadas por uma cornucópia de imagens e informações recolhidas por todas as sondas, módulos e veículos de exploração espacial (rovers). Marte é um eterno enigma, um local que estamos sempre prestes a conhecer, mas não compreendemos de verdade. “É um dos processos de descoberta mais longos da história”, diz Kathryn Denning, antropóloga da Universidade de York especializada nos elementos humanos da exploração espacial. “É um gigantesco exercício de expectativa.”

A razão pela qual Marte penetrou na cultura popular talvez seja incrivelmente simples: embora a imagem que temos do planeta se tenha tornado mais nítida com o tempo, conseguimos facilmente imaginar-nos lá, a construir um novo lar para lá dos confins da Terra. “É uma tela ainda suficientemente em branco”, diz a especialista.

Com um esboço desajeitado de Marte na mão, penso nas décadas que passámos a perseguir homenzinhos verdes, micróbios e colónias humanas e na maneira como a febre por Marte regressou após cada contratempo. Em simultâneo, conheço muitos cientistas prontos a conduzir os nossos sonhos – e os nossos robots – para outros destinos convidativos do Sistema Solar. Enquanto os cientistas gerem recursos limitados e uma concorrência crescente, não consigo deixar de pensar se algum dia perderemos o fascínio por Marte.

Desde que as civilizações olharam para cima pela primeira vez, os seres humanos acompanham Marte e documentam o seu percurso caprichoso pelos céus. Ao verem esta “estrela errante” a cruzar o céu, no terceiro milénio antes de Cristo, os sumérios repararam na sua cor agoirenta e associaram-nos à divindade malevolente Nergal, deus da pestilência e da guerra. O seu movimento e brilho variáveis prenunciavam a morte de reis e cavalos ou o destino de culturas agrícolas e das batalhas.


As culturas aborígenes também repararam na sua cor, descrevendo-a como algo que fora queimado em chamas ou associando-a a Kogolongo, a catatua-negra-de-cauda-vermelha. Os maias traçaram cuidadosamente a posição do objecto em relação às estrelas, relacionando os seus movimentos com a mudança das estações terrestres. Os gregos associaram-no a Ares, o seu deus da guerra, que os romanos refundiram como Marte. “Sempre houve apenas um planeta Marte, mas houve muitos Martes culturais diferentes em jogo”, diz Kathryn Denning.

planeta marte

MARCAS DE UM PASSADO COM ÁGUA. Recriações de canais construídos por extraterrestres revelaram-se uma fantasia, mas Marte tem de facto características geológicas como canais fluviais e deltas que indiciam uma história com humidade. Agora, volvidos mais de 40 anos de exploração, os cientistas têm um conhecimento mais profundo da superfície do planeta e de que partes da paisagem foram transformadas por águas correntes há cerca de 3.500 milhões de anos.

Em meados do século XIX, os telescópios já tinham transformado Marte de figura mitológica em mundo. À medida que a sua imagem ganhava mais focagem, Marte tornou-se um planeta com clima, terrenos inconstantes e calotas de gelo como a Terra. “Assim que tivemos oportunidade de ver Marte através de um telescópio, começámos a descobrir o mundo em mudança”, conta Nathalie Cabrol, do Instituto SETI, que estuda Marte há décadas. Com o progresso dos instrumentos, este local dinâmico poderia ser estudado e cartografado.

Durante a época vitoriana, os astrónomos esboçaram a superfície marciana e apresentaram os seus desenhos como factos, embora os caprichos e preconceitos dos cartógrafos influenciassem o produto final. Em 1877, um desses mapas atraiu atenção internacional. Tal como fora desenhado pelo astrónomo italiano Giovanni Schiaparelli, Marte tinha uma topografia com contornos bem definidos, com ilhas irrompendo de dezenas de canais, que ele pintou de azul. Schiaparelli encheu o mapa de pormenores e, em vez de se conformar com as convenções de nomenclatura da sua época, designou as características exóticas da sua versão do planeta com topónimos das mitologias mediterrâneas.

“Assumiu uma posição incrivelmente arrojada”, diz Maria Lane, especialista em geografia histórica da Universidade do Novo México. “Era como se estivesse a dizer que vira tantas diferenças face ao que os outros tinham visto que nem conseguia usar os mesmos nomes.”


Em função disso, acrescenta Maria Lane, o mapa de Schiaparelli tornou-se uma autoridade instantânea. A opinião científica e popular decretou que se tratava de uma representação poderosa da verdade. Seguiram-se três décadas de imaginação sem restrições.

água em Marte

MARCAS DE FLUXO. Os antigos deltas fluviais de Marte formaram-se tal como se formam na Terra. Águas rápidas encontram-se com águas paradas, depositando pedaços de areia, minerais e sedimentos provenientes da erosão do vale em redor. Os cientistas esperam que os sedimentos recolhidos na cratera Jezero possam conter vestígios de vida que tenham sido descarregados na bacia.

Terminado esse período, seria perfeitamente compreensível que qualquer indivíduo razoável acreditasse que marcianos inteligentes tinham construído uma rede de canais cobrindo o planeta. Muito desse fervor pode ser directamente associado a Percival Lowell, um aristocrata extravagante com uma enorme obsessão por Marte.

Comerciante abastado de Boston e antigo aluno da Universidade de Harvard, Lowell tinha mais do que um interesse passageiro pela astronomia e era um leitor ávido de artigos científicos e populares. Parcialmente inspirado pelos mapas de Schiaparelli e acreditando que os canais marcianos tinham sido esculpidos por tecnologia extraterrestre, Lowell apressou-se a construir um observatório no alto de uma colina antes do Outono de 1894, quando Marte se aproximaria bastante da Terra e a sua face plenamente iluminada seria ideal para observar esses alegados canais.

Com a ajuda de alguns amigos e da fortuna da família, o Observatório Lowell surgiu nesse ano junto de Flagstaff, no estado do Arizona, numa elevação íngreme baptizada de Mars Hill (Monte de Marte) pelos autóctones. A partir dali, entre as coníferas, o astrónomo estudou diligentemente o Planeta Vermelho, aguardando noite após noite que aquele mundo brilhante ganhasse nitidez. Com base nas suas observações e desenhos, acreditou que poderia confirmar os mapas de Schiaparelli e anunciou a detecção de mais 116 canais. “Quanto mais olhamos, mais começamos a ver linhas rectas”, diz Nathalie Cabrol. “Porque é isso que o cérebro humano faz.”

Segundo a estimativa de Lowell, os construtores dos canais marcianos eram seres supremamente inteligentes capazes de obras de engenharia à escala planetária. Estariam porventura numa corrida com o intuito de sobreviver a alterações climáticas devastadoras, que os obrigaram a construir canais desde os pólos até ao equador. Lowell publicou as suas observações e a sua convicção foi contagiante. Até Nikola Tesla, o pioneiro da electricidade, cujas discussões com o inventor rival Thomas Edison se tornaram famosas, foi apanhado por este entusiasmo e relatou a detecção de sinais de rádio vindos de Marte no início do século XX.

No entanto, a história de Lowell começou a desmoronar-se em 1907, em parte devido a um projecto que o próprio financiara. Nesse ano, os astrónomos captaram milhares de fotografias de Marte através de um telescópio e partilharam-nas a nível mundial. A fotografia planetária acabou por substituir a cartografia como “verdade”, diz Maria Lane. Quando as pessoas conseguiram ver com os seus próprios olhos que as fotografias e os mapas de Marte não coincidiam, deixaram de reconhecer autoridade aos mapas de Lowell.

Apesar disso, na transição para o século XX, Marte tornara-se um vizinho familiar com paisagens mutáveis e a promessa persistente de ser habitado. A vaga de observações seguinte revelou que, sazonalmente, as calotas polares de Marte aumentavam e encolhiam, libertando uma escuridão que alastrava em direcção ao equador. Alguns cientistas das décadas de 1950 acharam que essas zonas sombreadas tinham de ser vegetação que florescia e voltava a morrer e publicaram essas hipóteses em revistas científicas relevantes.

Todo este fervor científico alimentou a ficção especulativa, desde “A Guerra dos Mundos” de H.G. Wells e a série Barsoom”, de Edgar Rice Burroughs, às “Crónicas Marcianas” de Ray Bradbury.

“Na época que precedeu a nossa exploração efectiva de Marte, antes da década de 1960, havia muita imaginação”, resume Andy Weir, autor do romance “O Marciano”. “Um autor de ficção científica diria: não sei nada sobre Marte, por isso posso dizer o que quiser sobre Marte.”

mapa marte

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Em 1965, a sonda Mariner 4 da NASA passou junto do Planeta Vermelho. Captou as primeiras imagens de grande plano da superfície marciana a preto e branco, transformando o rico espaço de recreio da cultura pop numa paisagem cheia de grão e crateras. Quando finalmente a avistámos, a esterilidade árida do planeta foi uma tremenda desilusão. Contudo, a ideia de vida em Marte não demorou muito a regressar à imaginação humana.

Num certo sentido, o isolamento da pandemia de COVID-19 deu-me uma ideia de como serão os dias úteis para um cientista que estude Marte. Costumo viajar muito, sujando os meus cadernos de apontamentos enquanto persigo histórias em desertos, florestas insuportavelmente quentes e gelo marinho. Actualmente, os exploradores de Marte passam o tempo a tentar compreender um sítio que só ganha nitidez através de uma lente ou no ecrã de computador. Não vão, em breve, enfiar uma luva no seu solo alienígena ou limpar a poeira das viseiras que lhes cobrem o rosto. Os veículos de exploração espacial telecomandados fazem esse trabalho por eles.

Numa manhã de Outubro, acedi a uma videoconferência para conversar com Nathalie Cabrol, do Instituto SETI. Ela tinha uma imagem de Marte como pano de fundo. Era um panorama amplo, com picos escuros cobertos de rochedos erguendo-se entre planícies cor de ferrugem e cumeeiras distantes. Pareceu-me apropriada para uma cientista que passou décadas a mergulhar, indirectamente, nas paisagens marcianas.

Depois, Nathalie mudou de cenário. Vejo marcas de pneus, carrinhas e um conjunto de tendas cor de laranja no primeiro plano. Em vez de olhar para Marte, estou a ver uma imagem de um dos acampamentos de Nathalie no Altiplano chileno. Durante décadas, ela esquadrinhou este deserto situado a grande altitude em busca de ambientes semelhantes aos de Marte, procurando vida em picos vulcânicos e lagos de altitude e tentando imaginar como um engenho robótico poderá, um dia, realizar a mesma tarefa, a dezenas de milhões de quilómetros de distância.

Nathalie Cabrol e outros cientistas contemporâneos que centram as suas atenções em Marte têm uma dívida para com a Mariner9, a primeira sonda que orbitou Marte em 1971. De início, não conseguia ver devido a uma tempestade de poeira que cobria o planeta. “Marte ainda tentou, até ao último minuto, manter uma aura de mistério”, diz Nathalie. Quando a poeira assentou, a câmara espiou os cumes dos gigantescos montes Tharsis, um trio de vulcões que só parece pequeno comparado com o seu vizinho monte Olimpo. A oriente ficava o enorme Valles Marineris, um vale de rifte que se assemelha ao Grande Canyon do Arizona, mas nove vezes mais comprido.

Entre milhares de fotografias captadas pela Mariner9, os cientistas viram vales antigos esculpidos por rios, planícies aluviais, canais e deltas. Também identificaram vestígios químicos de gelo de água. Tudo isto eram sinais de que o movimento da água esculpira, em tempos, as paisagens exóticas de Marte.

“Há provas geológicas esmagadoras de que o clima era muito diferente do que é hoje”, diz Ramses Ramirez, do Instituto de Ciências da Vida na Terra de Tóquio. Esse entendimento mudou o rumo da exploração de Marte. “Foi muito mais profundo do que todo o folclore que poderíamos ter em mente”, diz Nathalie Cabrol. “Assim começou outra aventura: a científica.”

A noção de que, no passado, Marte poderia ter sido um lugar parecido com a Terra desencadeou várias questões sobre a evolução planetária e revitalizou o interesse em descobrir se poderia, em tempos, ter existido vida em Marte ou, com sorte, se ainda existiria. “Acho fascinante que ainda estejamos a lidar com temas que seriam familiares a Percival Lowell”, diz Rich Zurek, cientista-chefe do Gabinete para o Programa de Marte do Laboratório de Propulsão a Jacto (JPL) da NASA. “Só que… sem canais.”

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Depois da Mariner 9, a NASA apressou-se a enviar uma missão mais ambiciosa. Em 1976, os seres humanos foram finalmente capazes de olhar para o Planeta Vermelho ao nível dos olhos, quando os dois veículos Viking pousaram no hemisfério norte. Por essa altura, os cientistas já sabiam que não havia um coberto vegetal sazonal em Marte: aquelas sombras móveis deviam-se a tempestades de poeira causadas por poeira vulcânica. Também sabiam que a água já não fluía em abundância sobre a superfície.

Em contrapartida, não sabiam se os solos do planeta eram desprovidos de vida e pelo menos um astrónomo – Carl Sagan – não estava pronto para abandonar completamente a ideia de até existirem formas de vida ainda maiores. Para o caso de os marcianos serem nocturnos, “durante muito tempo, tivemos o plano de instalar uma lâmpada de altíssima intensidade na Viking para podermos tirar fotografias de noite”, recorda Gentry Lee, autor de ficção científica e engenheiro chefe do JPL. Para desilusão de Sagan, a equipa decidiu remover a lâmpada de ambos os veículos. As experiências das Viking não encontraram micróbios marcianos, nem pegadas na areia. Em vez disso, descobriram indícios de percolados no solo: compostos capazes de destruir moléculas orgânicas e com potencial para apagar quaisquer vestígios de vida baseada em carbono.

A missão enviou imagens de planícies cobertas de rochas que poderiam ter sido captadas em qualquer local árido da Terra. Novas paisagens continuaram a chegar, à medida que a NASA pousava veículo atrás de veículo sobre a superfície do planeta: Pathnder em 1997, depois os gémeos Spirit Opportunity em 2004, seguidos pelo Curiosity em 2012. Agora, quando vemos as marcas deixadas pelos veículos de exploração espacial no solo ou vemos os auto-retratos dos robots que os mostram empoleirados à beira de uma cratera colorida, conseguimos mais facilmente imaginar-nos a seguir o seu rasto.

“Depois de pousarmos, há toda uma evocação do que significa ser humano neste sítio”, diz a antropóloga Lisa Messeri, da Universidade de Yale.

A cerca de oito horas de automóvel de Istambul, o lago Salda, no Sudoeste da Turquia, é um refúgio local. Rochas vulcânicas escuras rolam até à areia branca e brilhante que orla as suas margens. Águas límpidas, em tons de água-marinha, tornam-se azul-escuras junto do centro do lago, onde o fundo atinge 200 metros de profundidade. É uma quase perfeita analogia contemporânea da cratera Jezero, o local onde o Perseverance, da NASA, planeia procurar sinais de vida ancestral. “Os habitantes locais chamam-lhe as Maldivas da Turquia”, diz Brad Garczynski, aluno de pós-graduação em ciência planetária da Universidade de Purdue. “Podemos imaginar-nos como um pequeno micróbio a bronzear-se nas margens de Jezero.”

Jezero encontra-se agora seca, mas o terreno esculpido sugere que em tempos conteve um grande e profundo lago de cratera alimentado por rios de águas correntes. Há mais de 3.500 milhões de anos, é provável que a água corresse para Jezero vinda de norte e de oeste, depositando camadas de sedimentos em deltas em forma de leque junto das paredes da cratera. Com o tempo, a cratera alagou, mas acabou por libertar água por uma fenda situada a leste.

A partir das suas órbitas, as sondas identificaram argilas e carbonatos junto dos deltas de Jezero, cuja formação teria exigido água. As areias brancas do lago Salda são constituídas por carbonatos fragmentados chamados microbialitos, estruturas rochosas que aprisionam compostos orgânicos. Na Terra, este processo forma estruturas em camadas que preservam as mais antigas provas de vida microbiana terrestre, remontando há 3.500 milhões de anos. Os cientistas esperam que os carbonatos de Jezero tenham feito o mesmo e tenham aprisionado algo daquilo que outrora habitou o lago ou as suas margens ancestrais.

“É uma das razões pelas quais nos sentimos entusiasmados com a cratera Jezero”, diz Briony Horgan, cientista planetário da Universidade de Purdue. É também por isso que Brad está a experimentar um veículo de exploração de Marte na Turquia: procura os locais mais prováveis para a preservação de bioassinaturas e tenta descobrir como o Perseverance as veria. Para tal, recolheu cerca de 40 quilogramas de amostras no lago Salda e levou-as para casa de avião.

À semelhança de Brad Garczynski, o Perseverance recolhe rochas para uma viagem de regresso, embora apenas 450 gramas, no máximo. As suas câmaras incorporadas (que vêem Marte em diferentes comprimentos de onda) ajudam a identificar as rochas mais promissoras. O veículo guarda essas amostras, que ficarão em Marte a aguardar boleia para casa numa futura nave espacial. Quando chegarem aos laboratórios da Terra, os cientistas lerão os registos do clima ancestral de Marte em busca de sinais de vida. Talvez as câmaras do Perseverance sejam as primeiras a vislumbrar provas de fósseis marcianos.

Quanto mais não seja, Marte conseguiu ensinar à humanidade que somos frequentemente vítimas do nosso desejo de encontrar vida à sua superfície. Desde os canais, à vegetação e à possibilidade bastante discutida de haver vestígios de fósseis em meteoritos de Marte, o Planeta Vermelho tem repetidamente gorado as nossas expectativas com realidades desoladoras e estéreis.

No entanto, aquelas paisagens ancestrais ainda lá estão, conservando um registo da infância do planeta e de uma época em que a vida poderá ter prosperado numa fase ligeiramente mais húmida, envolta numa atmosfera mais densa.

“Sabemos que não há canais, sabemos que não há uma pirâmide em Marte, nem vida extraterrestre”, acrescenta a especialista. Mas se descobrirmos que efectivamente existiu alguma química prebiótica sobre a superfície marciana, poderemos aprender algo sobre a forma como a vida evolui em quaisquer costas rochosas, incluindo a nossa.

E se o Perseverance não encontrar provas de fósseis marcianos, nem sequer sinais de locais como Jezero terem sido habitados? Conseguiremos algum dia desistir da ideia de encontrar vida em Marte? Provavelmente, não, admite David Grinspoon, cientista do Instituto de Ciências Planetárias. “É muito difícil matar essa ideia de que Marte está, de alguma maneira, a esconder-nos vida”, diz. “É uma ideia muito persistente.” Num certo sentido, essa obstinação é, possivelmente, a manifestação mais flagrante do nosso desejo de companhia, uma ânsia de comunhão, uma necessidade de percebermos se estamos ou não sozinhos no universo. Os seres humanos, na sua maioria, precisam de outros seres humanos para sobreviver e talvez essa necessidade de companhia também se aplique a uma escala planetária.

“Não somos uma espécie solitária”, diz Andy Weir. “Ao nível macroscópico, nós – os seres humanos – não queremos estar sozinhos.”