Dezenas de milhares de africanos morrem todos os anos devido a mordeduras de serpente. O acesso ao tratamento pode ser difícil e a disponibilidade de antivenenos é escassa. Esta é uma crise de saúde.

Simon Isolomo levantou-se perto das 5 horas da manhã, despediu-se da mulher e dos sete filhos e saltou para a sua canoa escavada num tronco. Essa terça-feira de Dezembro de 2018 começara como muitas outras dos seus 30 anos de pescarias na província de Équateur, na República Democrática do Congo. Isolomo, um professor de francês de 52 anos, remando pelo rio Ikelemba rumo ao acampamento de pesca, na companhia de amigos.

Três horas mais tarde chegaram ao acampamento e Isolomo começou a verificar as linhas de pesca instaladas na véspera. Ao sentir que uma delas puxava, mergulhou a mão na água turva.


Uma dor aguda atordoou-o de imediato. O sangue escorreu de duas picadas marcadas na mão. Imediatamente abaixo da superfície da água, uma serpente amarelada com anéis negros (provavelmente uma cobra de água Naja annulata) esgueirou-se e desapareceu de vista.

Os companheiros de Isolomo ajudaram-no a embarcar na canoa e remaram furiosamente de regresso à sua aldeia, Iteli. Quando ali chegaram, cerca de três horas depois da mordedura, Isolomo encontrava-se quase inconsciente.

“Os olhos tinham mudado de cor e vomitava”, recorda Marie, a mulher, chorando enquanto conta a história. Depois de um curandeiro tradicional lhe aplicar um torniquete, partiram de canoa para o hospital em Mbandaka, a capital da província, a cem quilómetros de distância. Antes de lá chegarem, porém, Isolomo parou de respirar e morreu.

A história de Isolomo ilustra a crise mundial provocada pelas mordeduras de serpente: picado numa região longínqua, a horas de distância do hospital mais próximo, não tinha quaisquer hipóteses. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 138 mil pessoas morrem todos os anos de mordeduras de serpente a nível mundial, e aproximadamente 95% dessas mortes ocorrem em comunidades rurais pobres de países em desenvolvimento. Uma das zonas mais duramente atingidas é a África subsaariana, onde se crê que se registem 30 mil mortes por ano causadas por mordeduras de serpente. No entanto, segundo alguns especialistas, o número efectivo de baixas poderá ser o dobro. Um importante factor contributivo é a escassez do único medicamento capaz de neutralizar as toxinas das serpentes perigosas: o antiveneno. Para complicar a situação, muitas vítimas não vão ao hospital ou não chegam lá a tempo. Em muitas unidades de cuidados de saúde, o pessoal não recebeu formação suficiente para tratar mordeduras de serpente e, mesmo havendo disponibilidade do medicamento, este é demasiado caro para muitos. Além disso, a maior parte dos antivenenos africanos mais fiáveis precisam de ser guardados em áreas refrigeradas para se manterem estáveis e preservarem a eficácia. Com os cortes de electricidade frequentes, é quase impossível mantê-los refrigerados.

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Em 2017, com o objectivo de chamar a atenção para a crise mundial provocada pelas mordeduras de serpente e para atrair fundos destinados a financiar a investigação e o tratamento, a OMS acrescentou o envenenamento por mordedura de serpente à sua lista de doenças tropicais negligenciadas – na qual se incluem a raiva, o dengue e a lepra. Em 2019, a organização divulgou o objectivo de reduzir o número anual de mortes e incapacidades causadas por envenenamento em 50% até 2030, iniciativa cujos custos podem ascender a quase 115 milhões de euros.

Esta hierarquização da ameaça poderá servir de alerta para os ministros da saúde em África, afirmou Mamadou Cellou Baldé, de 66 anos, biólogo que dirige o Instituto Guineense para a Investigação Biológica Aplicada (IRBAG), em Kindia, onde existe um consultório para mordeduras de serpente. “Vemos milhões gastos para manipular eleições locais, enquanto os cientistas africanos não dispõem do dinheiro necessário para fazerem investigação que pode salvar vidas”, resume Baldé.


A maior parte dos africanos vitimados por mordeduras de serpente são agricultores que trabalham em campos distantes, descalços ou de sandálias, o que os torna especialmente vulneráveis. Assim que uma serpente venenosa ataca, começa de imediato uma corrida contra o relógio. O transporte até ao hospital mais próximo pode demorar várias horas, por vezes até dias. Quando o doente finalmente lá chega, pode ser demasiado tarde.

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O veneno dos elapídeos, uma família de serpentes à qual pertencem as mambas e as cobras-capelo, pode matar em poucas horas. As neurotoxinas paralisam rapidamente os músculos respiratórios, tornando impossível a respiração. Por outro lado, o veneno dos viperídeos pode demorar vários dias a matar, interferindo na coagulação e provocando inflamação, hemorragia e morte dos tecidos.

Quando a vítima chega ao centro de tratamento, a sua sobrevivência depende de dois factores vitais: existe antiveneno fiável e disponível? E, em caso afirmativo, o pessoal médico sabe como administrá-lo? Na África subsaariana, a resposta às duas perguntas é, frequentemente, negativa.

Alguns indivíduos nem sequer são conduzidos ao hospital. Em vez disso, as famílias podem procurar a ajuda de um curandeiro tradicional, que talvez lhes aplique folhas ou cinzas de ossos de animais carbonizados, ou lhes faça um torniquete em torno do membro mordido, o que pode restringir perigosamente a circulação sanguínea. Alguns tratamentos botânicos conseguem aliviar as dores e reduzir o inchaço, mas não têm capacidade para salvar a vida da vítima, afirma Baldé.

Há cerca de 25 anos, Baldé estava a meio de uma pausa, à sombra de uma mangueira, no IRBAG, quando um homem irrompeu desesperado pelo Instituto, trazendo nos braços uma criança inconsciente. Fora mordida por uma serpente, disse-lhe. Baldé, na altura um entomologista que estudava doenças transmitidas por vectores de infecção, levou a rapariga de 12 anos para o consultório, mas não havia esperança. O instituto fora um centro de tratamento de mordeduras de serpente no início do século XX, mas, por volta de meados do século, o seu âmbito havia mudado. Ninguém soube como ajudar a criança.

Baldé jurou que aquela rapariga seria a última dessas vítimas. Abandonou os insectos, concentrou-se nas serpentes e começou a aprender tudo o que podia sobre mordeduras de serpente.

Na sua pesquisa de tratamentos ao longo dos anos, Baldé, hoje herpetologista de fama mundial e conferencista sobre mordeduras de serpente, tem experimentado produtos localmente disponíveis: comprimidos de fabrico chinês e injecções de antivenenos fabricadas na Índia. Segundo nos disse, o melhor que encontrou foi o Fav-Afrique, um antiveneno produzido pela empresa farmacêutica Sanofi, eficaz no combate ao veneno de dez das mais perigosas serpentes de África. Em 2014, contudo, a Sanofi interrompeu a sua produção porque o produto já não era lucrativo.

A produção de antivenenos é um processo demorado e dispendioso e, atendendo a que a grande maioria das pessoas que deles precisa vive em países em desenvolvimento, são medicamentos pouco lucrativos.

O fabrico de antivenenos requer a utilização de peçonha autêntica. Esta é recolhida em laboratórios que podem alojar milhares de serpentes em cativeiro. A extracção da peçonha é feita uma vez por mês. Dependendo da espécie, a farmacêutica chega a pagar vários milhares de euros por cada grama de peçonha.

Então, a peçonha – em quantidade demasiado pequena para evitar efeitos nefastos – é inoculada em cavalos ou noutros mamíferos de grande porte, cujo organismo desenvolve anticorpos. Após recolha do sangue destes animais, os técnicos de laboratório separam os anticorpos e purificam-nos para fabricar os antivenenos.

Mesmo quando dispomos de um antiveneno de qualidade elevada, o tratamento das mordeduras de serpente nem sempre resulta. “Há uma enorme escassez de dados e investigação publicados”, afirma Jordan Benjamin, da Fundação Asclepius Snakebite, que fornece produtos e dá formação a centros de saúde africanos.

“Por vezes, os antivenenos supostamente destinados a tratar certas espécies nem sequer funcionam em algumas zonas”, diz o especialista em toxicologia médica Nick Brandehoff, director clínico da Fundação. Por exemplo, “a peçonha da víbora Bitis arietans pode mudar de uma região para outra. É extremamente complexa.”

Em 2013, uma empresa do México, a Inosan Biopharma, estava a comercializar um novo antiveneno, capaz de neutralizar as toxinas de pelo menos 18 espécies de serpentes – mais do que quase todos os outros antivenenos disponíveis em África.

“O tratamento pode ser aplicado mesmo quando não se tem a certeza da serpente responsável pela mordedura”, afirma Benjamin. O fármaco, chamado Inoserp Pan-Africa, tem igualmente a vantagem de ser liofilizado. Por não precisar de refrigeração, veio “mudar as regras”, afirma Baldé, um dos primeiros prestadores de cuidados de saúde a experimentá-lo em ensaios de campo.

Apesar de toda a sua eficácia, o Inoserp não está a ser produzido em quantidades suficientes. Em termos gerais, existe uma grave escassez de antivenenos: o número de ampolas em circulação é inferior a 5% do milhão a dois milhões previstos para satisfazer as necessidades anuais da África subsaariana. E mesmo que a disponibilidade do Inoserp fosse generalizada, os habitantes da África rural – cujos rendimentos podem não ultrapassar um punhado de euros por dia – não teriam dinheiro para pagá-lo. Os hospitais e as farmácias podem cobrar 65 a 100 euros por ampola e a maior parte das vítimas de mordeduras de serpente requer várias ampolas.

Há antivenenos mais baratos disponíveis, mas podem ser pouco fiáveis. “Em diversos países africanos, encontrámos antivenenos concebidos para tratar mordeduras de serpentes indianas”, afirma Jean-Philippe Chippaux, perito em doenças tropicais e colaborador do Instituto Francês de Investigação para o Desenvolvimento Sustentável, que ajudou a redigir a estratégia da OMS para as mordeduras de serpente e tem contribuído para o desenvolvimento de antivenenos, entre os quais o Inoserp.

A Inosan Biopharma está a investir milhões de euros para acelerar a produção do Inoserp, na esperança de que os governos acabem por assumir o compromisso de comprarem quantidades suficientes que permitam superar a crise. “Até agora, não obtivemos lucro com o Inoserp”, afirma o director-geral Juan Silanes. “Alguém tinha de começar a investir e nós assumimos essa responsabilidade, mas estamos orgulhosos do que fazemos porque se trata de uma causa importante.”

Outras empresas estão igualmente a investigar novos tratamentos, mas,  de momento, nenhum é tão promissor como o Inoserp, diz Benjamin. Algumas organizações filantrópicas dão passos em frente em áreas onde o apoio governamental ficou para trás. A Fundação Asclepius Snakebite, por exemplo, disponibiliza Inoserp e formação médica gratuitos a centros de saúde na Guiné, no Quénia e na Serra Leoa. O James Ashe Antivenom Trust compra antivenenos para hospitais da comarca de Kilifi, no Quénia, para que os doentes possam beneficiar de tratamento gratuito.

No entanto, como afirma Baldé, é melhor prevenir as mordeduras de serpente do que ter de tratá-las. As campanhas de sensibilização na Guiné e noutros países ecoam a mensagem que Baldé transmite aos seus doentes: calcem sapatos quando caminharem em sítios onde é provável haver serpentes e usem uma lanterna durante a noite.

“A mordedura de serpente tem sido uma doença dos pobres e, por isso, os decisores não se importam”, resume Eugene Erulu, do Hospital de Watamu. Mas ele tem esperanças de que o novo investimento global da OMS na prevenção das mordeduras de serpente se revele eficaz. “Os governos serão obrigados a considerá-la um problema grave”, diz. “E esse é um passo muito importante.”