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Órgãos em Miniatura. Usando técnicas de microengenharia, Clive Svendsen e Samuel Sances, do Cedars-Sinai em Los Angeles, desenvolveram tecido da medula espinal de um paciente com esclerose lateral amiotrófica (ELA) neste chip. Os neurónios motores (a branco) e um vaso sanguíneo (a vermelho), derivados de células-tronco do paciente, formam tecido funcional, como se vê na imagem ampliada. Com um microscópio, pode observar-se a activação dos neurónios em tempo real ou tirar fotografias para análise posterior. O objectivo é criar chips capazes de prever a forma como os vários medicamentos actuarão em cada paciente. Composição: Craig Cutler (mão com chip); Samuel Sances, cedars-sinai (imagem de fundo).

Doze anos depois de Teresa McKeown vencer um cancro da mama no estadio III com um regime brutal de quimioterapia e uma dupla mastectomia, a doença voltou, mais agressiva do que anteriormente. Dessa vez, a quimioterapia falhou. Dia após dia, Teresa sentou-se numa cadeira na sala, demasiado doente para se mover. Manteve quatro diários, um para o marido e outro para cada um dos três filhos adultos, e reuniu forças para escrever os seus  pensamentos sobre um futuro que não esperava vir a partilhar.

Emagrecera até pesar apenas 44,5 quilogramas porque os tumores no intestino tornavam quase impossível comer. Teresa não é dada a raiva ou pânico, mas, antes da cirurgia para remover o bloqueio, fez uma rara admissão de angústia. “Rezo para que, se as coisas não terminarem bem ou se houver uma complicação após esta cirurgia, eu tenha um fim rápido”, lembra-se de ter dito à filha mais velha. “Não sei quanta dor ainda consigo tolerar.”

Desesperada, perguntou ao seu cirurgião, Jason Sicklick, se ele conhecia tratamentos experimentais que lhe pudessem dar mais tempo de vida. O médico é um dos responsáveis por um estudo de ponta daquela que veio a ser chamada medicina de precisão ou personalizada.

Apoiada na investigação genética e na análise de dados, a abordagem contém possibilidades transformadoras no tratamento do cancro e pode modificar a forma como a medicina tem sido praticada. Em vez de agrupar os pacientes em categorias amplas de doenças, a medicina de precisão visa adaptar a prevenção, o diagnóstico e o tratamento à composição bioquímica de cada indivíduo.

Teresa participou no I-PREDICT, um estudo de precisão sobre cancro no Centro Moores para o Cancro da Universidade da Califórnia. Aqui os investigadores não se baseiam numa terapia específica. Em vez disso, analisam o DNA das células cancerosas do paciente. Usando algoritmos especiais, um computador analisa os dados de milhares de variantes genéticas, centenas de fármacos de combate ao cancro e milhões de combinações de medicamentos para encontrar o tratamento que melhor interaja com as anomalias do tumor. Pode ser uma nova imunoterapia, a quimioterapia tradicional, terapias hormonais ou medicamentos que não foram especificamente aprovados para o cancro.

“É um princípio muito simples”, diz Razelle Kurzrock, oncologista e directora do Centro Moores para Terapia Personalizada do Cancro. “Escolhemos a medicação correcta para cada paciente com base no perfil do tumor e não com base numa parte do corpo ou no tipo de cancro que outros cem indivíduos têm.”

Os tumores de Teresa estavam repletos de mutações diferentes. “Estes são os tipos de pacientes que nos faziam baixar a cabeça e nos davam pena”, diz Razelle. Em contrapartida, estão entre os melhores candidatos para uma nova classe de imunoterapias – os chamados inibidores de checkpoint. Os fármacos impedem que as proteínas produzidas pelo tumor se liguem às células do sistema imunitário e as desliguem, o que restabelece a capacidade do paciente para combater o cancro. Mais mutações significa que as células imunitárias reactivadas têm mais alvos para atacar e erradicar.

O I-Predict determinou que nivolumab seria o ideal para Teresa. Trata-se de um inibidor de checkpoint aprovado para o melanoma avançado, o cancro renal e certos tipos de cancro do pulmão, mas não para o cancro da mama. Após duas administrações, os marcadores tumorais no sangue diminuíram mais de 75%. Quatro meses depois, na sequência de novas administrações, os testes não detectaram vestígios de cancro.

Num dia quente de Verão, um ano e meio depois de ter participado no ensaio, Teresa McKeown, de 57 anos, mostrou-me o seu jardim em Valley Center, na Califórnia. É mais de um hectare de vegetação vibrante entre as colinas ressequidas e cobertas de mato. “Sinto-me grata”, diz. “Adoro a ideia da medicina individualizada. Gosto que estejam a descobrir o que causa essa mutação e a forma de abordá-la por oposição à quimioterapia, que é tão perturbadora em todos os aspectos. Mas será possível avançar mais depressa?”


 

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1. Oxímetro de pulso para prematuros mede o nível de oxigénio no sangue. 2. Sensor usado na unha monitoriza a exposição a ultravioletas. 3. Sensor detecta luz UV e azul em monitores e LED. 4. Electrocardiógrafo (ECG) mede a actividade eléctrica do coração de um recém-nascido. 5. Dosímetro UV sem pilhas para pacientes com melanoma. 6. ECG e sismocardiógrafo funciona como um estetoscópio digital. 7. ECG e sensor do som cardíaco. Fontes: Grupo de Investigação John A. Rogers do Centro de Electrónica Bio-Integrada do Centro Simpson e Querrey  da Universidade do Noroeste

A medicina de precisão altera o guião da medicina tradicional, que geralmente oferece recomendações gerais e prescreve tratamentos projectados para ajudar mais pessoas do que as que prejudica, mas que podem não funcionar para um indivíduo específico. A abordagem reconhece que cada um de nós possui características moleculares distintas e que estas têm enorme impacte na nossa saúde.

Em todo o mundo, os investigadores estão a criar ferramentas de precisão que seriam inimagináveis há uma década: sequenciação ultra-rápida de DNA, engenharia de tecidos, reprogramação celular, edição de genes e muito mais. A ciência e a tecnologia em breve tornarão possível prever o risco de cancro, doenças cardíacas e inúmeras outras doenças anos antes de um indivíduo sequer adoecer. A investigação também oferece perspectivas futuras, estimulantes ou perturbadoras, dependendo do ponto de vista, para alterar genes em embriões e eliminar doenças hereditárias.

Num plano mais imediato, a pesquisa indica o caminho para terapias personalizadas dirigidas aos cancros mais resistentes. Na Primavera passada, investigadores do Instituto Nacional do Cancro dos EUA relataram a recuperação dramática de uma mulher com cancro da mama metastático, Judy Perkins, após uma terapia experimental que utilizou as suas próprias células imunitárias para atacar os tumores. Liderada por Steven Rosenberg, a equipa sequenciara o DNA do tumor para analisar as mutações. Extraiu também uma amostra de células imunitárias chamadas linfócitos infiltrantes de tumores e testou-os para ver quais deles reconheciam os defeitos genéticos do tumor. Os cientistas multiplicaram os linfócitos vencedores aos milhões e injectaram-nos em Judy, juntamente com um inibidor de checkpoint, o pembrolizumab. Mais de dois anos depois, Judy, uma engenheira aposentada da Florida, não mostra sinais de cancro.

Claro que apenas uma história de sucesso não faz uma revolução médica. Dois outros pacientes no ensaio de Rosenberg morreram. “Sou um pequeno ponto de luz”, diz Judy. “Precisamos de muito mais pontos de luz para obter os dados que nos permitam explorar o sistema imunitário.” O aspecto decisivo pode não ser este tratamento, mas o que ele revela sobre o poder da medicina de precisão. As mutações características que alimentam o cancro de um indivíduo podem representar a sua destruição. 

Há trinta anos, os cientistas pensavam que seria impossível decifrar o nosso código genético e sequenciar os 3,2  mil milhões de pares de bases do nosso DNA. “Era como se estivéssemos a falar de contos de fadas”, diz Razelle Kurzrock. “A sabedoria convencional assegurava que nunca aconteceria. E em 2003 esse nunca acabou.”

O Projecto do Genoma Humano precisou de 13 anos e aproximadamente 830 milhões de euros para sequenciar um genoma. Hoje, a sequenciação custa cerca de 830 euros. Os equipamentos mais recentes podem produzir resultados num dia. A tecnologia, combinada com a análise molecular sofisticada, ilumina as variações bioquímicas surpreendentes que tornam cada corpo humano único. Quanto mais os cientistas descobrem sobre essas diferenças, mais a medicina convencional parece básica. 

Considere a prescrição generalizada de um medicamento. Embora a maior parte dos indivíduos que tomam um medicamento de sucesso, como as estatinas ou os corticosteróides, beneficiem dos efeitos, a genómica revela que muitos não beneficiam. Há pelo menos cem fármacos que, administrados a pessoas com variantes genéticas específicas, poderão não actuar da forma normalmente prescrita.

E o problema pode ser fatal. Um fármaco administrado de forma rotineira para prevenir a formação de coágulos sanguíneos em pacientes após um ataque cardíaco não funciona em cerca de um quarto da população, que tem uma variante do gene que produz uma forma defeituosa de uma enzima necessária para activar a substância. 

Alan Shuldiner, professor de medicina e investigador de genética da Universidade de Maryland, descobriu que quando administrado a esses indivíduos estes têm duas vezes mais hipóteses de sofrer um segundo ataque ou de morrer no prazo de um ano após o primeiro, comparativamente a pacientes que não têm a variante. Alguns dos principais centros médicos rastreiam agora a variante em pacientes de ataques cardíacos, mas este teste está longe de ser rotineiro.

Muitos especialistas asseguram que, daqui a uma década, um perfil de DNA fará parte da ficha médica de todos os indivíduos. Geisinger, um sistema de saúde da Pensilvânia e Nova Jersey, começou recentemente a oferecer a sequenciação do genoma integrada nos cuidados preventivos, juntamente com mamografias e colonoscopias.

À semelhança do desenvolvimento dos chips dos computadores, que nos libertaram das secretárias e depois nos amarraram aos smartphones, a mudança para uma medicina baseada na genómica e na análise de dados será revolucionária de formas imprevisíveis e porventura perturbadoras. Em breve teremos ao nosso alcance dados exaustivos sobre as doenças que podemos desenvolver ao longo da vida.

Para espreitar o aspecto desse futuro, conheci o especialista em genética Michael Snyder. Ele dirige o Centro de Genómica e Medicina Personalizada da Universidade de Stanford e, nos últimos nove anos, tem acompanhado os marcadores moleculares e fisiológicos do seu próprio corpo. O resultado é uma representação em alta definição do seu funcionamento interno, que regista flutuações que podem sinalizar problemas. É como um mapa meteorológico, mapeando alterações na atmosfera para prever tempestades.


 

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Judy Perkins está cercada por linfócitos infiltrantes de tumores, ou LIT, que lhe curaram o cancro da mama. Quando Judy foi diagnosticada pela primeira vez, tirou o seio esquerdo, mas o cancro voltou. Apesar da quimioterapia, tratamentos hormonais e terapias direccionadas, um novo tumor cresceu no seu peito. Quando o cancro se disseminou, deram-lhe meses de vida. Num tratamento experimental desenvolvido por Steven Rosenberg no Instituto Nacional do Cancro dos EUA, Judy foi injectada com 82 mil milhões dos seus próprios LIT, a que ela chama “exército” .

Michael e a sua equipa têm em conta a sua sequência de DNA enquanto analisam um fluxo contínuo de dados. Este inclui medições de amostras de sangue, urina e fezes que ele fornece rotineiramente, bem como leituras de biossensores que usa em diferentes locais do corpo. A equipa acompanha a sua expressão genética, proteínas e metabolitos e medidas fisiológicas, como actividade física, frequência cardíaca, temperatura da pele e oxigénio no sangue. Ele é submetido a exames de ressonância magnética, ecocardiogramas e outros exames para detectar alterações nos órgãos, músculos e densidade óssea.

Michael não é hipocondríaco. Aos 63 anos, é magro e, se não fosse a falta de cabelo, poderia ser confundido com um estudante de pós-doutoramento com metade da sua idade. Inventou formas de realizar análises genéticas e moleculares, criando uma dúzia de empresas de biotecnologia. Em Stanford, está a tentar aplicar esse trabalho na detecção de doenças nos seus estadios iniciais. Tornou-se a sua própria cobaia porque não acreditou que mais alguém aceitasse todos os testes e monitorização. “Quem diria que me tornaria tão interessante?”, diz.

Há quatro anos, os seus sensores detectaram uma infecção, através de alterações no ritmo cardíaco e no nível de oxigénio no sangue, antes de se sentir doente. Quando desenvolveu febre, suspeitou da doença de Lyme. No momento em que o teste-padrão confirmou o palpite, ele já terminara um ciclo de antibióticos.

Também antecipou o desenvolvimento de diabetes tipo 2. O seu DNA mostrou uma predisposição, mas ele descartara-a porque era magro e não tinha historial familiar da doença. Após uma infecção viral séria, o seu nível de glicose disparou e permaneceu alto – foi a primeira ocasião em que pensou que poderia ter diabetes.
O seu médico inicialmente descartou a possibilidade, tal como ele fizera, mas os testes confirmaram a doença.

Deixou de comer doces, duplicou o tempo dedicado ao ciclismo e começou a correr seis quilómetros quatro vezes por semana. Identificou os alimentos que faziam subir a sua glicose e ajustou a alimentação. No espaço de nove meses, a sua glicose voltou ao normal. Entretanto, recrutou mais de cem voluntários para elaborar perfis semelhantes.

Inscrevi-me e submeti-me a uma bateria de testes, incluindo sequenciação do genoma. Orit Dagan-Rosenfeld, uma consultora genética e investigadora no laboratório de Snyder, conduziu-me a um pequeno escritório e depois ajudou-me a preencher os formulários de consentimento.

Perguntaram-me se compreendia que a sequenciação do DNA poderia produzir resultados “accionáveis”, como as mutações BRCA para o cancro da mama e dos ovários, o problema que levou Angelina Jolie a submeter-se a uma mastectomia dupla preventiva. Avisaram-me que o teste também poderia revelar problemas para os quais não há solução, como o gene APOE4, que aumenta o risco de Alzheimer. No fundo, o questionário avaliava se eu queria mesmo ficar a par de todas as descobertas, ou apenas daquelas que podem ser resolvidas ou de nenhuma e simplesmente doar os dados para a pesquisa.

Assinalei os quadrados onde aceitava ficar a conhecer tudo. O meu estômago surpreendeu-me, contraindo-se em protesto. Enfermeiras fizeram--me então um esfregaço do interior do nariz e das bochechas e recolheram 16 tubos com sangue. 

Enquanto esperava pelos resultados, recordei--me dos dez anos de declínio do meu pai rumo à demência. Seria esse o meu legado genético? Para parar de cogitar, voltei-me para a minha mãe. Aos 94 anos, mora sozinha em Nova Iorque, anda de autocarro e metropolitano, dança e joga mahjong no centro de terceira idade. A promessa do teste do genoma é dar às pessoas mais controlo sobre a sua saúde e, no entanto, pela primeira vez, cheguei a pensar no meu teste como uma herança, talvez afortunada, ou talvez não, mas estranhamente fora do meu controlo.

Os testes de DNA não encontraram nada negativo, disse Orit Dagan-Rosenfeld quando analisámos os resultados por vídeo. Estava agradecida. Mas não me senti tão aliviada como esperava. Nessa altura, já assimilara quanto a ciência tem ainda de evoluir para perceber o que o DNA pode revelar. Aprendi também que metabolizo mal algumas substâncias, incluindo o clopidogrel.

Michael Snyder identificou resultados genéticos importantes em cerca de 17% dos seus voluntários. Um deles tomava medicação para a diabetes tipo 2 há anos, erradamente, porque tem uma forma rara e hereditária da doença. Outro tem uma mutação para cardiomiopatia, uma doença do músculo cardíaco que muitas vezes só é detectada quando causa mortes.

Durante cinco anos, Michael Snyder conseguiu manter a diabetes sob controlo. Depois, o açúcar no sangue subiu. Embora tenha tentado diferentes dietas e levantamento de pesos, a doença continuou a progredir. Começou a tomar medicação. Após alguns meses, esta também parecia não estar a funcionar. O investigador pensa que os ajustes no estilo de vida retardaram o problema, mas até mesmo a mais recente tecnologia médica de precisão, e uma dedicação quase religiosa à manutenção da saúde, pode não se sobrepor às vulnerabilidades incorporadas no DNA.

Genomicamente falando,somos mais de 99% semelhantes, mas separados, em média, por milhões de variações genéticas. Na última contagem, os cientistas catalogaram 665 milhões, que tanto podem ser grandes alterações como diferenças em apenas um dos nucleótidos que constituem o DNA.

Que variantes são inofensivas e quais representam perigos? O desafio é ilustrado por uma experiência realizada na Universidade de Vanderbilt. Os investigadores estudaram 2.022 pessoas e identificaram 122 variantes raras em dois genes conhecidos por estarem associados a anomalias do ritmo cardíaco. Pediram a três laboratórios para determinar que variantes causavam as irregularidades. Um laboratório seleccionou 16, outro 24 e o terceiro 17. Todos os laboratórios concordaram em apenas quatro. Os investigadores compararam então as avaliações dos laboratórios com as fichas médicas dos indivíduos e descobriram que quase ninguém com variantes potencialmente preocupantes tinha ritmos cardíacos anormais.


 

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Em bandejas de congelador arrefecidas a -80°C, o Biobank do Reino Unido armazena amostras de sangue, urina e saliva de mais de quinhentas mil pessoas. Um robot selecciona amostras que os cientistas utilizam para encontrar ligações entre variantes genéticas e doenças.

Para perceber o que o código do DNA está a dizer, serão precisos grandes estudos ao longo de anos, porque as mutações que acarretam riscos são raras e as doenças relacionadas podem levar muito tempo a desenvolver-se. Os Institutos Nacionais de Saúde recentemente lançaram o All of Us, que faz parte da Iniciativa Precision Medicine, para recolher DNA e outras informações de saúde de um milhão de pessoas. A Autoridade de Saúde do Dubai planeia criar um banco de dados genómicos dos três milhões de habitantes do emirado.

O Biobank, do Reino Unido, lidera estes megaestudos. Escondido numa faixa industrial banal em Stockport, o biobanco guarda os segredos médicos de quinhentos mil voluntários britânicos, com idades entre 40 e 69 anos. Um congelador, com uma largura de duas faixas de rodagem e quase dois andares de altura, armazena amostras de sangue, urina e saliva. São dez milhões de amostras em pequenos tubos, empilhados em bandejas e identificados com códigos de barras para proteger o anonimato. Um robot amarelo rola ao longo de uma pista, retirando amostras para estudos. O ar é comprimido e seco de forma tão rigorosa para prevenir a formação de gelo que, mesmo estando do lado de fora do congelador, olhando através de uma parede de vidro, a minha pele parecia-se mais com couro velho do que com um órgão vivo.

Os computadores do biobanco acedem aos registos de saúde dos participantes porque as pistas no DNA só se revelam quando os investigadores podem ligar as variantes dos genes a características e doenças nas pessoas. “Infelizmente, todos irão fornecer informações a longo prazo”, diz Rory Collins, director-executivo e principal investigador do biobanco. “Mas apenas uma pequena parte dessas pessoas será informativa sobre uma determinada doença.” 

O biobanco dispõe de tecido genotipado de cada dador. O processo, habitualmente usado por empresas dedicadas a testes de DNA, examina o genoma à procura de variantes específicas. O biobanco está agora a trabalhar com um consórcio farmacêutico para sequenciar o exoma de cada dador, a parte do genoma que codifica para as proteínas. A genotipagem pode encontrar singularidades e defeitos que os investigadores sabem procurar. A sequenciação pode trazer à luz outros novos.

Mais de quatro mil investigadores em todo o mundo estão a utilizar os dados do biobanco para estudar a genética de doenças como o cancro, a osteoporose e a esquizofrenia e hábitos como o consumo de marijuana ou manter actividade nocturna em vez de diurna.

No entanto, a pesquisa tem aplicações limitadas para diferentes populações porque acompanha um grupo predominantemente caucasiano. Se a humanidade não for estudada em toda a sua diversidade, avisam os cientistas, os avanços genómicos beneficiarão apenas “alguns privilegiados”. Outros grandes bancos de dados genéticos têm a mesma desvantagem. Em 2009, uma análise aos estudos que examinavam as ligações entre genes e doenças descobriu que 96% dos participantes eram descendentes de europeus. Sete anos depois, investigadores relataram algumas melhorias, principalmente porque mais estudos estavam a ser conduzidos na Ásia.

Em todo o caso, os investigadores estão a utilizar os dados para expandir os limites da medicina personalizada. Cientistas do Instituto Broad revelaram recentemente uma espécie de quadro de resultados de risco pessoal, algoritmos que calculam as probabilidades de um indivíduo desenvolver cinco doenças graves comuns: doença cardíaca, cancro da mama, diabetes tipo 2, doença inflamatória intestinal e fibrilhação auricular. 

O quadro de resultados baseia-se numa descoberta inquietante: muitos indivíduos têm inúmeras mutações e cada uma representa um risco insignificante. Cumulativamente, contudo, elas representam um problema. Por exemplo, no cancro da mama, essas pequenas mutações são colectivamente tão perigosas como uma mutação no BRCA1 e muito mais comuns, explica Sekar Kathiresan, que liderou a investigação. Muitos indivíduos albergam dentro de si esses “pacotes” de defeitos e não sabem. Num futuro não muito distante, diz Sekar Kathiresan, os médicos utilizarão sistemas como este para avaliar os riscos dos indivíduos, talvez mesmo desde o nascimento.

Certa tarde, na Primavera passada, sentei-me em frente de um monitor no Instituto de Medicina Regenerativa do Cedars-Sinai, em Los Angeles, para ver ao  microscópio uma imagem ampliada de células. Alguns meses antes, aquelas manchas eram células sanguíneas recolhidas de um dador adulto. Os cientistas modificaram-nas em células-tronco primitivas. Depois, uma equipa liderada por Clive Svendsen, director do instituto, transformou-as numa versão rudimentar da medula espinal, tecido nervoso com a assinatura genética do dador. “No passado recente, isto era ficção científica”, diz.

O objectivo desta alteração da forma celular é criar modelos para estudar doenças. Não um sistema generalizado, mas um modelo funcional da doença específica de um paciente específico. Assim, um investigador de cancro do ovário no laboratório de Svendsen quer sintetizar miniversões de trompas de Falópio a partir do sangue de uma paciente com cancro do ovário. A equipa do intestino produzirá tecido intestinal. Svendsen estuda Parkinson e outras condições neurodegenerativas e, para isso, a sua equipa produz tecido cerebral e da medula espinal.

Os cientistas podem partir de praticamente qualquer tecido adulto. Reprogramam-no, usando proteínas envolvidas na expressão génica para andar para trás no tempo e converter as células maduras em células do tipo embrionário. As células reprogramadas, denominadas células-tronco pluripotentes induzidas, são então colocadas num caldo de factores de crescimento e outras proteínas. A composição é criada de forma precisa para sintetizar qualquer tecido funcional que um investigador queira.


 

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O peixe-zebra pode ser uma ferramenta poderosa para identificar a melhor quimioterapia contra o cancro de um paciente específico.  Os biólogos Rita Fior e Miguel Godinho-Ferreira e a sua equipa da Fundação Champalimaud injectaram células tumorais de pacientes em larvas de peixe-zebra e testaram-nas com a quimioterapia usada nos pacientes. As larvas previram correctamente que fármacos funcionavam em quatro dos cinco pacientes. Os cientistas expandiram o estudo a mais pacientes e outros tipos de cancro. Ratos criados com tumores humanos foram usados para testes similares, mas o procedimento é caro e moroso. O peixe-zebra pode ser criado com mais facilidade em tanques, permitindo testes ao fim de quatro dias.

Uma vez criado, os cientistas separam o tecido e colocam as células sobre um chip, uma placa translúcida do tamanho de um cartão de memória. O chip está revestido com canais minúsculos que transportam sangue e nutrientes para as células e ajudam à sua maturação.

Svendsen acredita que o modelo será importante para testar novos fármacos e prever a forma como um paciente responderá a determinado tratamento. O processo de averiguação da eficácia de um dado medicamento é muitas vezes ingrato, diz ele referindo a epilepsia como exemplo: “Submetemos as crianças a três meses de inferno, experimentando um medicamento após outro. Com o chip, podemos administrar um medicamento diferente todos os dias até encontrar aquele que pára a convulsão.”

Alguns críticos acreditam que as células reprogramadas colocadas num chip oferecem uma visão limitada do que acontece no corpo. Perguntei a Svendsen como saberia, por exemplo, se um medicamento para a epilepsia era tóxico para o fígado ou para o coração. “É simples”, respondeu. “O laboratório usaria células-tronco para criar miniversões desses órgãos, testando-os depois com a medicação.”

Até que ponto as tecnologias celulares e genéticas podem superar os limites da medicina? O laboratório de Shoukhrat Mitalipov, da Universidade de Saúde e Ciência do Oregon, sugere um dos caminhos possíveis. Shoukhrat, nascido no Cazaquistão, usou a ferramenta de edição de genes Crispr-Cas9 para alterar o DNA de embriões humanos.

Shoukhrat Mitalipov e a sua equipa internacional cortaram um segmento no gene paterno para remover uma mutação associada à cardiomiopatia hipertrófica potencialmente fatal. Fizeram o corte Crispr enquanto fecundavam os óvulos de dadores saudáveis com esperma de um homem com a doença. Se esses embriões se desenvolvessem até se transformarem em bebés, não teriam a doença nem transmitiriam o defeito genético à descendência. Shoukhrat, director do Centro de Células Embrionárias e Terapia Genética da Universidade, não tinha a intenção de levar a experiência tão longe. Os cientistas cresceram os embriões durante três dias e depois removeram as células para análise posterior.

O trabalho com genomas de embriões e a modificação do património genético das gerações futuras é há muito considerado tabu, mas em 2015, investigadores chineses relataram o uso de Crispr em embriões humanos não viáveis ​​para modificar o gene da beta-talassemia, uma doença do sangue potencialmente fatal.

Na experiência chinesa, o corte do gene produziu mais danos do que soluções. Shoukhrat não teve esse problema. A sua técnica de reparação não funcionou em todos os casos, mas ele acredita que, com mais aperfeiçoamento, poderia ser usada para eliminar qualquer uma das dez mil doenças associadas a mutações únicas.

Quer o seu método seja confirmado ou não, a comunidade científica tem vindo a aceitar a inevitabilidade da modificação de embriões. Um relatório de 2017 da Academia Nacional das Ciências dos EUA e da Academia Nacional de Medicina dos EUA concluiu que poderiam ser permitidos ensaios clínicos, embora somente após mais investigação e em casos médicos extremos. A tecnologia para fazê-lo está a desenvolver-se rapidamente, o que talvez signifique que o impulso para esticar os limites da possibilidade esteja codificado nos nossos genes.

Quando Shoukhrat Mitalipov me conduziu através de uma sala onde a sua equipa faz experiências em genes de embriões, perguntei-lhe se temia que o trabalho pudesse facilitar a edição de embriões para obter as características desejadas pelos pais. Ele agitou a mão com exasperação. “Eu não faço edição genética, nem faço manipulação”, disse. “Faço correcção. Isso é errado?”

Em 1978, o primeiro bebé-proveta, Louise Brown, também provocou ansiedade em relação ao tema dos bebés “feitos à medida”. Desde então, mais de oito milhões de bebés nasceram através de fertilização in vitro e outras tecnologias reprodutivas. O primeiro transplante de coração, em 1967, desencadeou o medo de que os médicos pudessem pôr termo à vida de pacientes em coma prematuramente para colher os seus órgãos.

Os medos desapareceram à medida que estas inovações se tornaram comuns. O mesmo pode acontecer com a sequenciação de DNA, a edição de genes e outras tecnologias antes inimagináveis à medida que elas se tornarem indispensáveis e este progresso salvar vidas. Mas a revolução da medicina de precisão é diferente de qualquer outra. Permite-nos conhecer o que sempre esteve inacessível sobre os nossos corpos e espreitar o nosso futuro médico. Transporta a ciência para um mundo novo de manipulação – e reparação biológica.

Judy Perkins, que está viva hoje por causa dos desenvolvimentos da imunoterapia e das tecnologias genéticas, acredita que o mundo deve estar atento ao poder que a ciência libertou. “É como a energia nuclear”, diz. “Se ficar fora de controlo, pode ser muito, muito mau. E se for explorada correctamente, é fantástica.”