Purifica o organismo, sintetiza proteínas necessárias à digestão e ao crescimento, controla o metabolismo, produz energia a partir dos alimentos, entre dezenas de outras funções. Falamos do fígado, que pode ser também um grande entrave ao funcionamento do nosso corpo quando é afectado por algum tipo de doença. Embora algumas, como a cirrose, se possam dever ao sobre-uso de alimentos, outras devem-se à acção de agentes patogénicos. Esse é o caso da Hepatite.

Ou Hepatites. Porque existem várias. Têm em comum o facto de serem inflamações hepáticas que podem ser causadas por vírus… mas não só. Parasitas ou bactérias também já foram registados como responsáveis por uma hepatite. Outra causa pode ser, por exemplo, o consumo excessivo de álcool.

De A a E

O quinteto dos vírus de hepatite apresenta-se com as primeiras letras do alfabeto: A, B, C, D e E. As mais comuns são as três primeiras. Embora os sintomas possam ser semelhantes, estas cinco variantes são diferentes na forma como se transmitem, gravidade, distribuição geográfica e métodos de infecção. Alguém com hepatite pode nem saber que a tem, porque os sintomas demoram a aparecer. No caso de atingir de forma aguda, manifesta-se através de febre, com sintomas associados – que vão desde cansaço e perda de apetite até náusea ou vómitos, comuns a muitas outras doenças. Em casos mais graves, sinais mais concretos como urina negra ou icterícia já indiciam casos graves. No caso de a doença ter um desenvolvimento crónico, demora décadas a desenvolver-se sem grande alarido e quando decide surgir em esplendor, torna-se imediatamente um problema sério de saúde.

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CC / www.scientificanimations.com

Imagem de animação médica 3D do vírus da hepatite C.

UMA BREVÍSSIMA HISTÓRIA

A primeira descrição de um possível caso de hepatite é encontrada num documento sumério, por volta do terceiro milénio antes de Cristo. Escreve-se então sobre um caso grave de icterícia com sintomas associados e, para o autor, o responsável é um demónio de seu nome Ahhazu. Tudo fazia sentido: os Sumérios viam o fígado como o lar da alma... No entanto, foi o grego Hipócrates (sim, o do juramento, chamado o pai da Medicina) quem descreveu clinicamente a doença pela primeira vez, num paciente que morreu de uma icterícia fulminante em onze dias. O tratamento receitado era mel e água…

Os Romanos continuaram a descrever casos de hepatite que, pelos seus sintomas vagos, eram às vezes confundidos com leptoespirose e malária. Na Idade Média, os Europeus declaram que a principal responsabilidade da doença vinha de uma maldição divina. Os doentes eram considerados impuros e deviam por isso ser isolados e o contacto com os mesmos evitado – e isto foi uma recomendação papal de Zacarias I no século VIII, que recomendava o isolamento como principal forma de combater a hepatite.

No entanto, é no século XIX que o conhecimento sobre a doença vai avançar rapidamente. Um surto durante a Guerra Civil Americana (1861-1865) e outro vinte anos depois, na cidade de Bremen, na zona das docas, forneceram um rico manancial de casos à ciência. Um médico alemão chamado Luhrman investigou o segundo caso e encontrou uma correlação entre pessoas que tinham sido vacinadas contra a varíola e os infectados por hepatite. Concluiu então que os lotes usados estavam infectados – na altura, as vacinas ainda eram fabricadas a partir de tecido humano e provavelmente, algum do material das vacinas teriam vindo de um doente com hepatite – e que essa era a causa de infecção.

Nas décadas seguintes, outras campanhas de vacinação foram associadas a surtos de hepatite. Foi, no entanto, em 1942 que esta teoria foi confirmada, quando um surto de mais de 50 mil infectados dentro da Marinha dos EUA foi associado a doses de vacina contra a febre amarela que continham plasma humano. Nos oito anos seguintes, testes efectuados nos EUA, Alemanha e Reino Unido delinearam a existência de dois tipos diferentes de hepatite (A e B) e o quadro clínico tipo da doença. Os tipos C, E e D foram descobertos posteriormente, assim como a vacina contra a Hepatite B, criada pelo médico francês Philippe Maupas.

A CADA UM A SUA HEPATITE

Como cada tipo de hepatite tem as suas particularidades, explicamos brevemente como é que cada uma se desenvolve, os seus sintomas e efeitos.

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SHUTTERSTOCK

HEPATITE A 

Aquela que aterroriza os foodies corajosos. É transmitida principalmente através de comida contaminada, normalmente mal cozinhada, ou água e também, claro, se contactarem com os fluidos de alguém já infectado. Dentro do espectro da doença, é das menos problemáticas: uma grande percentagem dos infectados recupera com imunidade total, embora a pequena percentagem que não o faça tem quase certa a morte através de uma hepatite fulminante. Manifesta-se em epidemias cíclicas de rápidas, o que se deve ao seu principal veículo de transmissão. A doença é mais prevalente em áreas com dificuldades económicas e cuidados de higiene básicas mais limitados: África, América Latina ou Ásia Central e Extremo Oriente são exemplos. No entanto, há casos registados noutros locais como os EUA. Se viajarem para estes locais, recomenda-se vacinação, já que a Hepatite A pode ser prevenida desta forma. 

HEPATITE B

A sua transmissão é causada principalmente pelo contacto com fluidos, por exemplo durante o sexo ou o uso de agulhas infectadas, ou a transmissão de mãe para o filho durante a gravidez ou parto.

O número de infectados em 2019, segundo a Organização Mundial da Saúde, era de 296 milhões em todo o mundo – todos doentes crónicos, com um milhão e meio de novos casos a cada ano. Desses, 820 mil morreram, devido a doenças como a cirrose ou o cancro do fígado (e não directamente da própria hepatite).

Como os seus sintomas são aplicáveis a um número de outras doenças, a única maneira de confirmá-la é através de exames e análises. A doença na sua versão crónica implica tratamento com medicamentos durante toda a vida. Além de impedir o avanço de possíveis cirroses ou reduzir os casos de cancro hepático, aumenta também as hipóteses de sobrevivência. Existe, no entanto, uma vacina

Segundo a Organização Mundial dA Saúde, apenas 10% das pessoas com hepatite B crónica são diagnosticadas e dessas 22% recebem tratamento.

HEPATITE C

Tem um quadro muito semelhante à sua congénere anterior. O método de contágio mais comum é através do contacto com sangue infectado, seja através de transfusões ou uso de seringas. No entanto, o tipo C não tem vacina, o que a torna mais perigosa, embora exista medicação anti-viral. Ainda assim, existem actualmente à volta de 58 milhões de infectados, dos quais 3,2 milhões são crianças ou adolescentes. Geograficamente, os locais mais assolados são a Europa, principalmente o Mediterrâneo oriental com 12 milhões de infectados, o Extremo Oriente, juntamente com África e América Latina

HEPATITE D

Incapaz de andar sozinho, este tipo de hepatite necessita do tipo B para se replicar. Logo, ter hepatite B é meio caminho andado para se chegar à D. Uma combinação de ambas é a variante mais perigosa desta doença, levando a uma morte bastante rápida. 5% da população mundial sofre de Hepatite D, maioritariamente entre recipientes de hemodiálise, utilizadores regulares de seringas contaminadas e populações indígenas de certas zonas de África e da Mongólia. A vantagem de estar ligada com o tipo B significa também que o tratamento é igual. Logo, a melhor maneira de prevenir é a vacina.

HEPATITE E 

É a mais contida dos cinco tipos: dura durante duas a seis semanas e acaba por desaparecer por si. Só em casos raros é que desenvolve uma infecção fulminante que pode ser fatal. A principal maneira de transmissão deste tipo é matéria fecal, nomeadamente de suínos como o porco ou o javali, ou humanos. Em alternativa, água que tenha sido infectada com este tipo de materiais. Como nos casos anteriores, surge essencialmente em países com más condições de higiene. Pela maneira específica como se espalha, é muito comum, por exemplo, em campos de refugiados ou zonas de guerra.