Para David Hao, médico especialista em dor crónica do Massachusetts General Hospital, em Boston, a conversa com um novo paciente que sofre de dor crónica grave costuma ser assim: ele expõe todos os tratamentos possíveis, incluindo injecções de esteróides, ablação dos nervos dolorosos, acupunctura, fisioterapia ou cirurgia. E, no final da consulta, alguns inevitavelmente perguntam: “acha que deveria experimentar marijuana”?
Os pacientes souberam, através de familiares, amigos ou da comunicação social, que a canábis ou os compostos derivados, denominados canabinoides, podem ajudar no alívio de dor como a sua. Enquanto cientista, porém, Hao dá-lhes uma resposta honesta: “com base nas evidências disponíveis, os benefícios são questionáveis”. Estudos sérios realizados até à data não concluíram que os canabinoides reduzam suficientemente a dor, tendo levado a Associação Internacional para o Estudo da Dor a recusar-se a apoiar estes fármacos em 2021.
A falta de evidências foi sublinhada no ano passado numa análise publicada na JAMA Network Open. O estudo concluiu que 60% do alívio da dor relatado por pessoas tratadas com canabinoides também era observável naquelas a quem fora administrado um placebo. Isto sugere que a redução da dor não se deveu principalmente aos compostos presentes na canábis, mas às expectativas das pessoas de que isso as iria ajudar. Segundo os autores, essa expectativa positiva baseou-se parcialmente numa cobertura mediática excessivamente entusiasta.
A canábis medicinal apresenta-se sob muitas formas, incluindo produtos inaláveis através de fumo ou ingeríveis por via oral, contendo doses baixas a elevadas de tetrahidrocanabinol (THC) – responsável pela euforia associada à marijuana – e de canabidiol (CBD), um composto que não causa euforia. Artigos publicados na imprensa generalista, incluindo jornais de grande circulação, apresentam regularmente a planta como tratamento para a dor, concluiu o estudo da JAMA.
A análise da JAMA Network Open descobriu que eram publicados artigos positivos na comunicação social mesmo quando as conclusões da investigação mencionada eram neutras ou negativas, diz Karin Jensen, líder do estudo e investigadora do laboratório de neuroimagiologia da dor do Instituto Karolinska, na Suécia. A National Geographic não conseguiu verificar esta conclusão de forma independente devido a um acordo de confidencialidade entre os investigadores e a empresa de recolha de dados Altmetric, sediada em Londres, que os impede de partilhar os artigos avaliados pela equipa de Jensen para o estudo da JAMA.
“A comunicação social parece ser resistente aos factos neste caso porque, independentemente daquilo que um ensaio diga, a imprensa relata-o sempre de um ponto de vista positivo. Por isso, é natural que as pessoas continuem a pedir este tipo de medicação”, diz Jensen.
Segundo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, um quinto dos norte-americanos sofre actualmente de dor crónica. É, por isso, essencial para os cuidados de saúde que os estudos futuros que explorem o efeito dos canabinoides na dor apresentem resultados que não se desviem para o lado positivo por ideias pré-concebidas, diz Hao.
É difícil fazer um ensaio cego nas investigações sobre canábis
Em qualquer ensaio clínico, quando um participante não recebe o composto terapêutico, mas um substituto inerte, como um comprimido de açúcar, e relata resultados positivos, o fenómeno denomina-se efeito placebo. Os melhores testes clínicos usam um protocolo chamado duplamente cego, no qual nem os participantes nem os cientistas sabem quem está a tomar o fármaco activo e quem está a receber o placebo.
A maioria dos estudos que testam compostos derivados de canábis utilizaram comprimidos para fornecer quantidades rigorosas desta droga (alguns implicando inalação) e os investigadores asseguraram-se de que o placebo tinha o mesmo sabor e cheiro da substância activa. No entanto, os participantes podem, por vezes, adivinhar se lhes foi dado a substância activa ou o placebo, dependendo de como se sentem após a ingestão do comprimido. Quando os participantes sabem que lhes foi dado a substância e não o placebo, isso pode distorcer a sua percepção acerca da eficácia do fármaco e influenciar os resultados do estudo.
Os investigadores do Karolinska quiseram perceber a dimensão da resposta ao placebo nos estudos relacionados com a canábis e avaliaram 20 relatos envolvendo 1.459 participantes. Um dos estudos que examinaram, por exemplo, comparava uma canabinoide sintético, a nabilona, com um placebo administrado a pacientes com fibromialgia. Os co-autores do artigo concluíram que a substância proporcionava benefícios significativos. Tal deveu-se, em parte, às questões em torno da componente cega do ensaio, as quais, juntamente com outras, levaram o estudo a sobrestimar o valor do fármaco.
Para contrabalançar a capacidade de os participantes descobrirem o que lhes fora dado, por vezes os investigadores administravam o composto em doses baixas ou usavam fórmulas que não continham THC, para não ficarem eufóricos e não saberem que tinham ingerido o o canabinoide.
No entanto, sendo uma substância que tantas pessoas conhecem, é tremendamente difícil fazer estudos cegos de canábis bem-sucedidos, diz Deepak D’Souza, professor de psiquiatria na Faculdade de Medicina de Yale que estuda canábis há mais de duas décadas e está a preparar um grande ensaio clínico com canabinoides no Departamento de Assuntos de Veteranos dos EUA.
“Existem formas de fazer bons estudos cegos, mas a maioria deles não o conseguiu. E nem mesmo esses métodos são absolutamente perfeitos”, afirma. Uma abordagem útil é prescrever doses extremamente baixas a algumas pessoas enquanto outras tomam quantidades mais elevadas, para que pelo menos alguns participantes não sintam o efeito psicoactivo. Outra forma de o fazer é acrescentando um descongestionante como placebo para que até essas pessoas sintam alguns sintomas fisiológicos. Uma terceira estratégia é administrar placebos no início, com base na hipótese de que isso tornará o processo de adivinhação mais confuso.
Avaliar as expectativas dos participantes relativamente a quanto acham que os produtos derivados da marijuana podem ajudá-los também é importante, diz D’Souza. “Isso pode ser feito com algumas perguntas simples”, e analisado posteriormente, após a intervenção, com o conhecimento prévio de que as pessoas que acreditam que a canábis é eficaz têm mais probabilidades de relatar resultados positivos, afirma.
O impacto do cérebro na dor é um factor essencial
Ao contrário de algumas doenças crónicas, as condições que envolvem dor podem ser particularmente susceptíveis ao efeito placebo. É o caso do tipo de dor conhecido como dor nociplástica. Ao contrário da dor provocada por danos contínuos nos tecidos ou nos nervos (dor nociceptiva e neuropática, respectivamente), esta dor resulta de alterações nas vias sensoriais do cérebro. Algumas condições comuns que desencadeiam dor nociplástica incluem a fibromialgia, síndrome do intestino irritável e dores de cabeça causadas por tensão, entre outras. Esta dor é tão real e prejudicial como outros tipos de dor, mas não reage a fármacos e a tratamentos comummente prescritos.
Os especialistas ainda não compreenderam os mecanismos exactos por detrás da dor nociplástica, mas começam a perceber que os nossos pensamentos desempenham um papel importante. Em exames de ressonância magnética funcional, por exemplo, as regiões do cérebro envolvidas na percepção e na modulação da dor iluminam-se quando os pacientes têm pensamentos particularmente negativos sobre a sua condição clínica.
As pessoas com este tipo de dor podem ser particularmente propensas a uma reacção de placebo, pensa Hao. “Acho que é visível que o papel das expectativas pode ser potencialmente desproporcional nesse grupo de pacientes”, afirma, embora sublinhe que isto ainda não foi estudado.
Podemos pensar que é irrelevante se os resultados positivos sentidos por algumas pessoas nos ensaios clínicos com canábis resultam da toma da substância ou de pensarem que o fizeram, desde que a sua dor diminua. Mas não, diz Jensen. “Não é suficiente saber que algo está a funcionar. Precisamos de saber por que está a funcionar para podermos ajudar melhor os pacientes”, afirma. “Se fizermos tratamentos que são eficazes por outras razões para além do mecanismo sugerido, isso não vai ajudar, a longo prazo, pessoas” que poderiam ter melhores resultados com outras terapias.
“A recomendação clínica de canábis pode agradar aos pacientes a curto prazo”, diz Jensen, “mas, de momento, as evidências científicas não defendem este tratamento para a dor”.