Há alguns anos, os espeleólogos Peter e Ann Bosted passeavam pela sua cidade natal de Hawaiian Ocean View, na ilha Grande do Hawai, quando Ann vislumbrou uma pequena cavidade perto da estrada.
Não tinha mais do que um metro de diâmetro, mas era suficientemente convidativa para o casal encostar o carro e tentar deslizar por ela adentro.
“Tínhamos algumas horas para matar”, contou Peter. “Começámos a investigar e encontrámos uma passagem lateral que se revelou mais labiríntica do que esperávamos.” De regresso a casa, Peter assinalou a puka, ou entrada da gruta, num mapa digital e fez planos para lá voltar mais tarde, com autorização do dono do terreno, para descobrir até onde a abertura poderia levá-lo.
Vista do espaço, a cidade de Hawaiian Ocean View parece um tapete entrançado de asfalto posicionado sobre a encosta do vulcão Mauna Loa. A malha urbana, composta por 264 quilómetros quadrados de ruas entrecruzadas e terrenos vazios, tem mais do dobro da superfície de Lisboa, mas menos de 4.500 habitantes. Ocean View tornou-se um destino internacional de espeleologia graças a Kipuka Kanohina, uma rede de cavidades lávicas semelhante a veias que corre entre 5 e 25 metros abaixo da cidade.
Há duas maneiras de uma cavidade se formar: depressa e devagar! Muitas das grutas mais icónicas foram lentamente esculpidas ao longo de milhões de anos pela água ácida, gotejando ou fluindo sobre uma superfície de calcário. Em contrapartida, as cavidades lávicas são formadas num instante geológico (um ano ou talvez dois, por vezes semanas) por uma erupção da crosta terrestre.
No Hawai, a maioria dos tubos lávicos foram formados por um fluxo semelhante a xarope chamado pahoehoe. À medida que escorre pelo vulcão, a lava da superfície arrefece em contacto com o ar e solidifica, criando uma camada exterior elástica, parecida com a pele. Por baixo desta membrana insuflada, a lava continua a jorrar, erodindo o solo e esculpindo túneis subterrâneos. Isolada da atmosfera, a lava pode correr desimpedida, frequentemente ao longo de quilómetros. Quando a erupção acalma e os canais drenam os restos de lava fundida, o resultado é uma rede impressionante de tubagens tridimensionais.
Em nenhum outro local da Terra, existirão tantos tubos lávicos acessíveis à exploração como no Hawai e nenhuma outra cidade se revelou tão propícia à aventura como Ocean View.
Na década de 1990, o casal Bosted integrou uma equipa que cartografou os 222 quilómetros de comprimento da gruta Lechuguilla, por muitos considerada uma das mais belas grutas do mundo. Hoje, são sexagenários e estão quase reformados, mas continuam a fazer parte de um pequeno grupo de espeleólogos experientes que fixaram residência permanente em Ocean View. Ann e Peter contam que fazem mais espeleologia agora do que em qualquer outra altura das suas vidas. Calculam que, dentro de poucos anos, terão acumulado mais de duzentos dias no subsolo.
Peter e Ann trouxeram-me com eles para explorar a nova puka que descobriram ao lado da estrada, juntamente com outro casal, Don e Barb Coons, espeleólogos de longa data que passam o inverno em Ocean View. Don, de 64 anos, foi guia em Mammoth Cave durante dez anos e passou 18 invernos nas expedições lendárias que contribuíram para o alargamento do mapa de Chevé, em Oaxaca, no México, a segunda gruta mais profunda da América do Norte. É presidente da Cave Conservancy of Hawaii, uma organização que adquire terrenos em Ocean View e nos arredores para preservar os túneis lávicos existentes sob ela.
Equipados com capacetes com lanternas e protecções nos joelhos e cotovelos, deslizamos de costas para o buraco e rastejamos durante cerca de cem metros por uma passagem previamente cartografada com menos de um metro de altura. A lava correu por esta cavidade há muitos séculos.
Os tubos lávicos do Hawai parecem uma paisagem de outro planeta. Delicadas estalactites de lava caem das paredes e do tecto, assumindo uma panóplia de formas estranhas, desde dentes de tubarão pontiagudos a pináculos gotejantes e pegajosos. Varas de lava compridas e ocas, espremidas do tecto pela acção de gases durante o arrefecimento da gruta, pendem em densos aglomerados. Em alguns locais, a cobertura prateada de magnesioferrite enruga-se como tinta a descascar. Noutros, uma camada fina de gesso pinta as paredes de branco vivo e tapetes de bactérias litotróficas excretam manchas azul-esverdeadas de dejectos microbianos.
Acabamos de rastejar junto de uma encruzilhada onde o tecto desce até menos de 30 centímetros acima da base, serrilhada e afiada. “Esta é a nossa ideia de diversão”, diz Peter com indiferença, enquanto progredimos, contorcendo-nos e avançando ao longo do corredor estreito, enquanto oiço a minha T-shirt que se vai rasgando. A passagem é demasiado apertada até para os nossos capacetes, por isso tiramo-los e movemo-nos na escuridão.
As recompensas por todos os arranhões, nódoas negras e rasgões na roupa sofridos esta manhã são mais 47,06 metros de gruta acrescentados ao mapa da rede de Kipuka Kanohina. Pode não parecer muito, mas é com dias como este que o mundo se aproxima aos poucos de estar completo, a um ritmo de cinco a sete quilómetros por ano. Kanohina poderá em breve ser o sistema de tubos lávicos explorado mais longo do mundo.
A cavidade que o sistema de Kanohina parece pronto a suplantar no livro de recordes fica no outro extremo da ilha. Foi provavelmente criada durante a erupção de outro vulcão, Kilauea, no século XV. Com mais de 64 quilómetros de comprimento, Kazumura é o mais longo e o mais profundo tubo lávico cartografado até à data. Embora o seu tecto nunca se afaste mais do que poucas dezenas de metros da superfície, a queda vertical – desde o topo da gruta, descendo pelo maciço vulcânico até terminar junto da costa – é de 1.101 metros.
O jornalista Joshua Foer investiga Kazumura, o mais comprido dos tubos lávicos explorados em todo o mundo, que se prolonga por mais de 64 quilómetros e, nalguns pontos, é tão grande como um túnel de metropolitano. As suas paredes sulcadas ganharam forma após uma erupção vulcânica registada há aproximadamente seiscentos anos.
Ao contrário do sistema de Kanohina, composto por várias passagens paralelas que se entretecem como o delta de um rio de grandes dimensões, Kazumura é maioritariamente um longo túnel a direito, nalgumas zonas tão amplo e alto (mais de 18 metros) que facilmente poderia ser adaptado para o metropolitano. Apesar das dimensões gigantescas, a primeira exploração total de Kazumura só ocorreu em 1995, quando o trajecto foi concluído numa expedição de dois dias.
“É um tesouro nacional e, no entanto, há pessoas nesta ilha que vivem mesmo em cima da gruta e nem sequer sabem que ela existe”, diz Harry Shick, dono de um terreno que organiza visitas a uma secção de Kazumura situada sob a sua propriedade.
Existe um muro de silêncio em torno dos tubos lávicos da ilha Grande. A maioria dos espeleólogos prefere que os forasteiros não tomem conhecimento das suas descobertas. Quando o casal Bosted se ofereceu para me levar à gruta Manu Nui, em processo de cartografia desde 2003, a National Geographic teve de prometer que não revelaria a sua localização exacta, referindo apenas que fora criada pelo Hualalai, o terceiro vulcão mais activo da ilha, depois de Mauna Loa e Kilauea.
As estalactites de lava são expelidas do tecto de um tubo lávico por gases sob alta pressão e arrefecem enquanto pingam.
Manu Nui é, em muitos aspectos, a jóia da ilha. Com uma inclinação média de 15,7 graus, é um dos tubos lávicos mais íngremes do Hawai e a sua caracterização é surreal. Após entrar na gruta por uma puka num terreno particular, subimos à câmara. Cobertas de escorrências cor de chocolate, de manteiga de amendoim, de cereja e de caramelo, as paredes parecem tão suculentas que quase me sinto tentado a lambê-las. O casal Bosted faz questão de assegurar que estas formações singulares não são perturbadas por curiosos em busca de aventuras. As estalactites de lava são frágeis e basta pôr a mão no sítio errado para desfigurar para sempre uma gruta. Harry Shick até já percorreu quilómetros de Kazumura, colando com supercola as formações que encontra quebradas!
“Nem sequer percebemos ainda os ecossistemas destas grutas”, resume Lyman Perry, do Departamento de Florestas e Vida Selvagem do Hawai. “Não queremos pessoas lá dentro. Se se descobrir que estes sítios existem, vão acabar por ser estragados.” Ainda mais delicadas do que as formações das grutas são as sensibilidades culturais que as envolvem. Muitos hawaianos consideram os tubos lávicos kapu, ou locais sagrados, devido ao seu uso como locais ancestrais de sepultamento. Segundo a tradição hawaiana, os ossos contêm o mana, ou energia espiritual, de cada indivíduo e não devem ser perturbados.
A aparência pegajosa de uma parede de rocha, na gruta de Manu Nui, deve-se a alterações na composição química da lava e à oxidação do ferro nela contido, dando origem a vários minerais.
Segundo Keoni Alvarez, activista e cineasta de 31 anos que combate as tentativas dos promotores imobiliários para construção em cima de grutas funerárias, sempre que são encontrados restos humanos num tubo lávico, o sistema de grutas inteiro, do princípio ao fim, é declarado kapu. “Acreditamos que as nossas grutas são sagradas e não devem ser dessacralizadas”, disse-me.
O problema é que ninguém consegue saber se uma gruta em particular foi utilizada como local de sepultamento dos antepassados até ser explorada. Muitos hawaianos recusam-se categoricamente a aventurar-se em grutas, respeitando aquilo que poderiam encontrar no interior.
Os lagos de água cristalina são raros nos tubos lávicos do Hawai. Podem parecer convidativos, mas os exploradores dizem que os mergulhadores podem ficar desorientados nas passagens contorcidas, ou serem encurralados por obstáculos ou rochas desmoronadas, consumindo ali todo o oxigénio.
No entanto, embora os hawaianos de hoje tendam a ser cuidadosos com os tubos lávicos, os seus antepassados utilizavam-nos com frequência. Em muitas entradas de grutas, há provas de habitação pré-histórica, com fogueiras e socalcos para dormir. Em tempo de guerra, os tubos mais compridos foram selados e utilizados como refúgio para esconder mulheres, crianças e anciãos. Em alguns casos, foram construídos muretes nas entradas, deixando apenas uma passagem suficientemente grande para um indivíduo passar.
Segundo estimativas de um perito local, uma em cada duas grutas da ilha Grande contém algum tipo de artefacto arqueológico. Sobretudo do lado seco da ilha, virado a sotavento, é difícil encontrar água doce e os tubos lávicos costumavam ser o sítio mais promissor para tal. Nas profundezas do interior de Kanohina, a centenas de metros das entradas, é frequente descobrirem-se restos de tochas de nogueira e anéis de rochas que em tempos seguraram cabaças para colher a água gotejante.
Este troço de Kipuka Kanohina divide-se em três túneis que afunilam à medida que os espeleólogos avançam. A caminhada sobre rocha vulcânica pode ser perigosa. “A textura é semelhante a velcro”, diz um espeleólogo. A superfície pode rasgar a roupa e cortar a pele. Outros perigos pendem sobre as cabeças: pedaços afiados de lava podem partir-se e cair do tecto.
Don Coons e Peter Bosted sublinham com insistência a diferença que existe entre aventura e exploração. A aventura é motivada pelo gosto de experimentar excitação. A exploração é lenta e metódica, nunca prosseguindo propósitos egoístas. Todas as cavidades por eles exploradas, incluindo este troço estreito e serrilhado de Kipuka Kanohina por onde agora rastejamos, precisam de ser meticulosamente examinadas e cartografadas recorrendo a clinómetros e telémetros de laser.
“O mar profundo, o espaço sideral e as grutas são as únicas fronteiras que restam”, diz Don. “São os locais onde ainda é possível explorar, descobrir algo novo e ser a única pessoa da história a vê-lo.”
De regresso à puka na beira da estrada, com os nossos corpos dobrados presos entre a base e o tecto, Don toma uma decisão pessoal desconcertante. “Isto parece-me um pouco perigoso”, diz, com o seu habitual tom seco. “Tenho de expirar para conseguir passar.” Ele anuncia que vai voltar para trás, deixando a nosso cargo descobrir onde a gruta poderá levar-nos.
A uma distância de sete corpos e meio adiante, chegamos a uma pilha de rochas desmoronadas de tal maneira pesadas que não conseguimos movê-las a partir da nossa posição prostrada. Por agora, a pista termina aqui, mas a brisa suave que sentimos no rosto só pode significar que, do outro lado, há mais território para conquistar.