Para os astrónomos, a descoberta da radiação cósmica de fundo de micro-ondas, ou CMB (do inglês Cosmic Microwave Background), foi como encontrar uma caverna pré-histórica coberta de pinturas – a imagem de um Universo primordial uniforme, quente e denso. A radiação CMB , hoje arrefecida, são as primeiras partículas de luz (fotões) que puderam viajar livremente através do espaço, sem interferência da matéria.
Talvez já tenhamos sido testemunhas desta radiação sem o sabermos. Está misturada no ruído ou “chuva” numa televisão mal sintonizada. É constante e vem de todo o céu. Estamos banhados nela. É praticamente uniforme, como um zumbido grave na gama do espectro das micro-ondas.
DOMÍNIO PÚBLICO
Estática numa televisão analógica. Cerca de 1% do ruído detectado pelas antenas da televisão é proveniente da radiação fóssil CMB.
Se mapearmos este ruído espacial com equipamento próprio, deparamo-nos com uma fotografia fóssil, de quando o Universo estava ainda a começar, apenas 380 mil anos após o Big Bang. Para os astrónomos e cosmólogos, a informação aqui contida é mais fascinante do que qualquer programa de televisão, é um documentário sobre o Universo primitivo. É o mais rico conjunto de conhecimento cósmico que temos, e uma das mais robustas evidências para a teoria do Big Bang como a compreendemos hoje.
A radiação cósmica de fundo de micro-ondas está misturada na “chuva” numa televisão mal sintonizada.
Um persistente ruído de fundo
Cada objecto celeste – planeta, estrela ou galáxia – envia-nos a cada instante uma mensagem na sua luz: a sua “fotografia”. Quanto mais longe está de nós, mais tempo precisa essa luz para transpor a distância que nos separa. Por isso, as “fotografias” actuais de objectos que estão muito longe estão ainda a viajar até nós. O que capturamos desses objectos mais distantes são as suas imagens antigas. Mas isso é uma vantagem: olhar para longe permite-nos olhar para o passado.
Assim, olhar para o céu é como escavar num sítio geológico e encontrar nas sucessivas camadas de luz vestígios fósseis de diferentes épocas cósmicas. A camada mais profunda é aquela luz fóssil, que nos chega de todas as direcções e nos fala das condições extremas nos primeiros momentos do Universo.
Em geologia, cada fóssil contém marcas de fenómenos do passado. Os fósseis cósmicos, na forma de pequenas variações de temperatura na radiação CMB em diferentes pontos do céu, permitem-nos também desvendar marcas que a história do Universo deixou nos fotões durante a longa jornada de quase 14 mil milhões de anos até chegarem a nós.
Este brilho remanescente esteve sempre no céu, mas a Humanidade só o “desenterrou” na década de 1960 com o desenvolvimento de grandes detectores de ondas rádio e o florescimento da radioastronomia.
A radiação CMB foi postulada em 1941 por Andrew McKellar, um astrónomo canadiano que tentou medir a temperatura efectiva do Universo. Calculou o valor de cerca de 2,3 graus acima do zero absoluto, 2,3 Kelvin, ou seja, -271 graus Celsius (o zero na escala Kelvin corresponde a -273,15 graus na escala Celsius).
Estudos posteriores confirmaram a previsão teórica da radiação CMB, mas só mais de 20 anos depois, em 1964, dois engenheiros norte-americanos a mediram pela primeira vez. Na verdade tudo aconteceu por acaso, quando Arno Penzias e Robert Wilson, da Bell Telephone Laboratories, estavam a utilizar uma nova antena de rádio, em Nova Jérsia (EUA), para procurar fontes de interferência e melhorar a qualidade dos dispositivos de telecomunicações. Depararam-se com um ruído de fundo, cerca de 100 vezes mais forte do que esperavam, e que vinha de todas as direcções do céu para onde apontassem a antena.
National Park Service
Arno A. Penzias e Robert W. Wilson detectaram pela primeira vez a radiação cósmica de fundo em 1964. Ambos receberam o prémio Nobel para a Física em 1978.
O mistério só foi resolvido quando Penzias se cruzou com um artigo numa revista científica. O autor, Jim Peebles, avançava a possibilidade de detectar a radiação remanescente de uma “explosão inicial” e que permearia todo o Universo, desde a sua origem até à actualidade. Ficou claro que os dois engenheiros tinham encontrado uma das mais robustas evidências de um Universo inicial quente e denso, ou da teoria do Big Bang, descoberta pela qual foram reconhecidos em 1978 com o prémio Nobel para a Física. Esta foi uma das mais icónicas descobertas científicas da história da Humanidade e que permitiu estabelecer a teoria do Big Bang para o Universo quente inicial, pela qual Peebles recebeu também o Nobel em 2019.
A radiação CMB foi postulada em 1941 por Andrew McKellar, um astrónomo canadiano que tentou medir a temperatura efectiva do Universo.
O fulgor primordial
Na expressão Big Bang, a onomatopeia “Bang” é enganadora, já que sugere um evento explosivo no zero do contador do tempo. Seria mais correcto dizer que o próprio Universo era uma enorme explosão contínua que durou cerca de 380.000 anos.
A radiação cósmica de fundo de micro-ondas é a luz dos últimos momentos dessa explosão, é como a fotografia da superfície de uma estrela – uma estrela que é todo o Universo observável, com todo o seu conteúdo comprimido num volume milhões de vezes mais reduzido do que o actual. As temperaturas rondavam as centenas de milhões de graus, numa “sopa” tão quente e densa que a luz e a matéria não se conseguiam separar.
À medida que o Universo se expandia, esse conteúdo foi sendo diluído e arrefeceu. A temperatura desceu ao ponto de as partículas se conseguirem formar, e a sopa quente evoluiu para um nevoeiro de electrões livres e núcleos de hidrogénio (o elemento químico mais simples, cujo núcleo é constituído apenas por um protão), ainda demasiado quente para se formarem átomos. Neste nevoeiro, chamado plasma, que é o mesmo estado da matéria nas estrelas, não é possível ter uma imagem do seu interior, pois os fotões não conseguem viajar muito antes de serem logo capturados por um electrão ou um protão livres.
NASA / SDO / Helioviewer
As elevadas temperaturas das estrelas fazem com que o seu material se encontre no estado de plasma. Quando foi produzida a radiação cósmica de fundo, toda a matéria do Universo se encontrava neste estado.
O Universo tem cerca de 13,8 mil milhões de anos.
Eventualmente a temperatura baixou demasiado para manter este estado de plasma. Os electrões livres foram então definitivamente capturados pelos protões (núcleos de hidrogénio) e formaram-se os átomos de hidrogénio. Nesta cedência de liberdade, os electrões libertaram também fotões de luz. Este processo ocorreu em todo o Universo, ao mesmo tempo. Diz-se que a matéria e a luz (radiação electromagnética) se desacoplaram e o Universo tornou-se transparente à luz. Os fotões puderam então propagar-se pelo espaço desimpedido de matéria, agora cada vez mais vazio e escuro, muito antes de se acenderem as primeiras estrelas.
Os fotões emitidos neste processo são a radiação cósmica de fundo que observamos hoje. Assinalam o fim do Big Bang e são a luz mais antiga que podemos detectar. A luz anterior, presa no antigo plasma, não deixou qualquer imagem.
Durante quase 14 mil milhões de anos, o Universo continuou a expandir-se. A expansão esticou as ondas de luz para comprimentos de onda mais longos. Isto reduziu a sua energia e desviou-as ao longo do espectro electromagnético até à gama das micro-ondas (a mesma dos fornos domésticos com o mesmo nome, e na qual se baseia a rede de telemóveis). Foi aqui que os engenheiros Penzias e Wilson descobriram a radiação CMB em 1964. Esta luz dos últimos momentos do começo do Universo é agora uma luz fria e fóssil que preenche todo o espaço, e por isso é visível em todas as direcções do céu.
A existência da radiação cósmica de fundo de micro-ondas prova duas coisas: que o Universo tem cerca de 13,8 mil milhões de anos, e que no início terá sido bastante mais pequeno e quente do que hoje – dois dos mais importantes postulados da cosmologia moderna.
O mapa térmico do Universo
Os fotões da radiação CMB guardam informação desse passado mas também do que lhes aconteceu na sua longa viagem através do espaço e do tempo, até serem agora capturados pelos instrumentos científicos.
Os engenheiros Arno Penzias e Robert Wilson obtiveram um comprimento de onda homogéneo em todo o céu, e que corresponde à temperatura de apenas 2,7 Kelvin. Tal como o corpo humano, a 36,5 ºC, emite sobretudo radiação infravermelha, a radiação cósmica de fundo de micro-ondas é a radiação que emitiria um corpo que estivesse a -270 ºC – é a temperatura média do Universo, incomparavelmente mais fria do que a sua origem nos inícios do tempo.
Só nas décadas recentes se tornou possível melhorar a medição inicial de Penzias e Wilson. Ela não é perfeitamente homogénea em todas as direcções, mas contém flutuações mínimas na sua temperatura (e por conseguinte, no comprimento de onda). Conhecidas como anisotropias (o que significa não ser igual em todas as direcções), estas variações de décimas do milésimo do grau são preciosidades pré-históricas para os cosmólogos porque são a fonte de informação sobre o Universo mais rica de sempre.
A primeira missão dedicada à caça de anisotropias e a desenhar o mapa do céu com a variação térmica da radiação CMB foi a Cosmic Background Explorer (COBE), da NASA, que operou entre 1989 e 1996. O satélite COBE produziu uma imagem fascinante que captura todo o Universo como era na sua infância, e marca o início da Cosmologia como uma ciência de precisão.
NASA / WMAP Science Team
Mapa detalhado do Universo quando era ainda uma criança, produzido através de nove anos de observação do satélite WMAP, da NASA, a registar fotões emitidos há 13,77 mil milhões de anos.
Em 2001, a NASA lançou outra missão com maior precisão e detalhe, o Wilkinson Microwave Anisotropy Probe (WMAP). Esta missão permitiu estabelecer a idade do Universo como sendo 13,8 mil milhões de anos, com menos margem de erro. Entretanto, em 2009, e enquanto o WMAP ainda estava activo, a Agência Espacial Europeia (ESA) lançou o satélite Planck, que deixou o legado mais sensível e sofisticado até à data. Um dos resultados mais importantes da alta precisão dos dados da missão Planck foi permitir estabelecer os exactos valores dos ingredientes do Universo.
A comunidade científica sabe, por evidências acumuladas ao longo do século XX, que o Universo se está a expandir de forma acelerada impelido por uma enigmática “energia escura”, e que uma importante componente feita de matéria invisível, ou “matéria escura”, é responsável pela forma como a matéria visível – as galáxias e as suas estrelas – se movem e se distribuem no Universo quando este é observado a grande escala.
Ambas, ainda que constituam a maior parte de “tudo o que existe” – ao todo cerca de 95% do “recheio” do Universo – são de natureza ainda desconhecida para os cientistas. As proporções exactas destas duas componentes e a da matéria visível, ou normal – aquela de que somos feitos – foram ajustadas ligeiramente na sequência dos dados obtidos com o Planck, mas sobretudo esta missão veio confirmar a receita do Universo e o modelo teórico que o explica.
TNG Collaboration
Simulação de uma região do Universo com 160 milhões de anos-luz de extensão e que representa o aspecto do Universo a esta pequena escala, com zonas densas de galáxias, e zonas escuras quase sem matéria.
Decifrar o mapa do tesouro
O que nos diz este mapa de variações de temperatura, estas anisotropias celestes? Onde vemos áreas avermelhadas (mais quentes), se apontarmos um telescópio para a correspondente região do céu, vemos aglomerados de galáxias. As áreas azuladas (mais frias) correspondem no céu a vazios e super-vazios, regiões onde quase não vemos galáxias. Para os cosmólogos, estas variações, ainda que mínimas, correspondem a zonas ligeiramente mais ou menos densas do plasma primordial. São as sementes dos aglomerados de galáxias e dos grandes vazios que definem a estrutura do Universo que observamos hoje.
As cores não representam temperaturas absolutas, mas sim desvios relativos à temperatura média de 2,725 Kelvin. Esses desvios são tão reduzidos, da ordem de décimas de micro-Kelvin, que também nos dizem que numa escala suficientemente ampla são insignificantes e que o Universo é homogéneo e praticamente igual em todas as direcções.
NASA / JPL-Caltech / ESA
Comparação entre as imagens de uma mesma região do céu de 10 graus quadrados obtidas por cada uma das três missões dedicadas a mapear com crescente precisão a radiação cósmica de fundo.
O Universo é homogéneo e praticamente igual em todas as direcções.
Esta evidência confirma uma das suposições mais fundamentais e também mais controversas sobre o início do Universo – a teoria da inflação cósmica. Para que o Universo possa estar tão bem distribuído, teve de se expandir de forma brutalmente rápida durante o seu estado primordial. A teoria da inflação pressupõe que depois do Big Bang houve uma expansão rápida em que as pequenas irregularidades e desvios foram suavizados. As flutuações que permaneceram foram pequenas ondulações quânticas no campo de energia da inflação. São essas flutuações que identificamos nas anisotropias da radiação CMB.
Esta teoria da inflação ainda atrai algum cepticismo, mas nenhuma outra conseguiu até agora explicar a notável uniformidade da radiação CMB e as origens e propriedades do Universo com tanta precisão.
O que ainda está por desenterrar?
No mapa das anisotropias existem também áreas anormalmente quentes e frias. Ainda que provavelmente tenham origens técnicas ou de processamento de dados, propostas de explicação incluem interacções com outros universos, ou indícios de um Universo cíclico, numa sucessão de nascimento, expansão e colapso num novo Big Bang, repetido indefinidamente.
Mas mesmo que a radiação CMB não nos abra outros Universos, tem uma quantidade infindável de informação sobre o nosso. Uma das questões que ainda falta responder é a incompatibilidade entre medições baseadas em estudos sobre o Universo jovem (e portanto longínquo) e observações locais do Universo actual. Um exemplo é a divergência entre os valores atribuídos à velocidade com que o Universo continuou e continua a expandir-se. Esta divergência pode reflectir falhas ou peças ainda perdidas no puzzle da nossa compreensão.
Missões espaciais como a Primordial Inflation Explorer (PIXIE), da NASA, e a Voyage 2050, da ESA, em conjunto com o Simons Observatory, no Chile, estão agora em desenvolvimento. Vão escavar o céu de forma ainda mais sensível, à procura de desvios irregulares no espectro da radiação CMB. Mais de meio século depois da sua descoberta, ainda existem recônditos por revelar neste retrato fóssil de como o Universo começou.
Uma das questões por responder é a incompatibilidade entre medições baseadas em estudos sobre o Universo jovem (e portanto longínquo) e observações locais do Universo actual.
Notas
A teoria do Big Bang é a descrição mais consensual entre os astrofísicos e cosmólogos para o que terá sido a origem e evolução do Universo. Com base em certas evidências (como o facto de os grupos de galáxias se estarem a afastar todos uns dos outros), a teoria diz que no passado, há quase 14 mil milhões de anos, toda a matéria e radiação (luz) do Universo estavam concentradas numa região de espaço extremamente pequena, densa, quente e energética. Não existiam átomos, apenas partículas elementares altamente comprimidas umas contra as outras, e não existia nada fora desta região de espaço. O Universo expandiu-se a partir desse ponto denso, criando espaço, numa explosão que é designada por Big Bang (termo jocoso cunhado pelo astrofísico britânico Fred Hoyle, que não acreditava nesta teoria, mas acabou por lhe dar um nome que vingou). Com a expansão e a diminuição da densidade da matéria, a temperatura diminuiu e formaram-se os primeiros elementos químicos.
Sobre a autora: Elsa M. Teixeira é mestre em Astrofísica e Cosmologia pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) e colaboradora no Instituto de Astrofísica e Ciências Espaciais (IA). Actualmente, está a concluir o doutoramento na School of Mathematics and Statistics da Universidade de Sheffield, Reino Unido, onde examina várias formulações teóricas para a física do Universo tardio e métodos para as testar com os dados observacionais actuais. É apaixonada por divulgação científica e palestras públicas como uma ferramenta para tornar a ciência acessível e fascinante para todos.