A azáfama da vida parece puxar-nos para a correria. De manhã, temos de tomar o pequeno-almoço à pressa para chegar ao emprego, onde os prazos dos projectos nos obrigam a manter o ritmo. No final do dia, os livros para ler, as séries para ver e as tarefas domésticas para fazer atiram-nos para um turbilhão de actividades que, mais uma vez, têm de ser feitas o mais rapidamente possível para recuperarmos o fôlego.

Paremos por um momento. Vamos desfrutar da leitura deste artigo. Vamos aproveitar ao máximo estes minutos. E agora que parámos, pensemos: quando foi a primeira vez que tivemos de correr para atingir um objectivo?

NUMA CORRERIA

A vida de cada um é diferente, mas é possível que muitos de nós sejamos transportados para os primeiros anos formativos. Nessa altura, quando mal levantávamos um pé do chão, os "trabalhos de casa" e os exames mantinham-nos atentos a um temporizador invisível. Infelizmente, muitas das nossas memórias de infância perderam-se para sempre. O tempo acaba por apagá-las ou alterá-las de tal forma que já não podemos ter a certeza de que as experiências de que nos lembramos são reais.

Mas, de qualquer modo, mesmo que tivéssemos uma memória perfeita, a primeira vez que tivemos de correr não tínhamos cérebro, pelo que seria impossível recordá-la. Esta "primeira corrida" da nossa vida teve lugar quando estávamos divididos em duas metades: o óvulo e o espermatozóide, que estavam destinados a encontrar-se.

Graças a uma equipa de investigadores da Universidade de Estocolmo, sabemos agora como começamos a mover-nos, ou seja, como é que os espermatozóides activam a maquinaria que move as suas pequenas caudas (os flagelos) para se aventurarem em busca do óvulo. Esta transformação é uma das partes fundamentais da fertilização, pelo que compreender os seus mecanismos exactos pode ser crucial na procura de tratamentos para a infertilidade ou de novos métodos contraceptivos.

COMO COMEÇAMOS A CORRER

O movimento dos espermatozóides inicia-se devido a quimioatractores – substâncias químicas que as células minúsculas serão capazes de detectar. Este sinal químico vem do óvulo e dá aos espermatozóides um conjunto de instruções que os activa para se colocarem em posição. Para traduzir a mensagem, os espermatozóides utilizam receptores na sua membrana para captar os quimioatraentes e convertê-los em sinais celulares.

Até este momento, os embriologistas tinham uma ideia bastante clara do que se estava a passar. Ou seja, conheciam a pista de corrida (o trato reprodutor feminino), o corredor (o espermatozóide), a forma como se move (nadando ao longo do flagelo) e a meta (o óvulo). Até sabiam quem era o motor de arranque, os quimioatractores. A única coisa que não sabiam era como é que o espermatozóide sabe que deve começar a correr. Esse "disparo" continuava a escapar-lhes.

David Drew, Professor de Bioquímica na Universidade de Estocolmo, estava a estudar uma proteína chamada SLC9C1. Esta proteína é exclusiva dos espermatozóides e a sua função é trocar o sódio no exterior da célula com o hidrogénio no interior. Por outras palavras, é um tipo de proteína chamada "bomba de protões".

TRANSPORTAR IÕES PARA TRÁS E PARA A FRENTE

As bombas de protões encontram-se em praticamente todos os tipos de células, uma vez que são responsáveis pela regulação da acidez e pela manutenção de um pH estável no interior da célula. Isto acontece porque um ambiente demasiado ácido ou demasiado básico pode afectar o metabolismo, pelo que a acidez tem de ser mantida dentro de um intervalo muito específico. Dentro desse intervalo, as células são capazes de detectar pequenas variações e neutralizá-las para evitar danos.

No caso específico da SLC9C1, a bomba é activada quando recebe um dos sinais enviados pelo óvulo. Uma vez activada, começa a retirar protões do interior da célula e a introduzir sódio. Esta troca de iões diminui a acidez do interior do espermatozóide, o que, neste caso particular, activa a sua motilidade. Assim, devido a esta alteração do pH, os espermatozóides estão agora prontos para fazer a longa viagem até ao óvulo.

Na sua tentativa de compreender até a mais ínfima parte do mecanismo, o laboratório de Drew procurou compreender exactamente quais as alterações moleculares que ocorrem no SLC9C1 quando este se liga a um quimiorreceptor. Depois de excluir a maioria dos processos encontrados nestas bombas, parecia que a resposta era uma "faísca". Ou seja, graças a uma região especial da bomba, denominada DSV (Domínio Sensível à Voltagem), a SLC9C1 é activada por uma alteração da tensão da membrana celular. Este processo é exclusivo da SLC9C1, uma vez que todas as outras bombas de protões não possuem a maquinaria necessária para serem iniciadas por esta "faísca".

 

ved mehta
ILUSTRAÇÃO DE VED MEHTA, UNIVERSIDADE DE ESTOCOLMO

A ligação do quimioatraente ao espermatozóide provoca uma mudança de voltagem que ativa o transportador SLC9C1.  Uma vez activada, a proteína SLC9C1 troca Na+ por iões H+, o que torna o flagelo do espermatozóide mais alcalino e, juntamente com o AMPc, leva à abertura de canais de Ca2+, resultando num movimento dirigido do espermatozóide. Esta sequência de eventos, presente em espécies tão distantes como os corais e o homem, é essencial para a fecundação.

UMA DESCOBERTA ELECTRIZANTE

Nas palavras de Drew, esta é uma descoberta surpreendente e emocionante. Estudar como a natureza conseguiu criar este "interruptor biológico" abre a porta à criação de proteínas sintéticas que podem ser activadas por este mecanismo. Assim, poderiam ser desenvolvidos novos medicamentos ou, aprendendo a bloqueá-lo, poderiam ser desenvolvidos contraceptivos masculinos mais eficazes.

Nas conclusões, os investigadores sublinham que este trabalho não se refere apenas ao esperma. O que é realmente revolucionário nesta descoberta é o facto de terem descoberto como uma bomba de protões pode ser transformada num receptor que activa processos celulares através deste mecanismo.

A SLC9C1 é, até à data, a única bomba de protões controlada por voltagem, uma característica que se pensava ser exclusiva de outras proteínas chamadas "canais iónicos". Revelou, assim, novos mecanismos celulares, até então desconhecidos.

No entanto, não deixa de ser surpreendente. Esta mudança de voltagem é o "gatilho" que dá início à primeira corrida que faremos na nossa vida, até ao óvulo. Aí, centenas, ou milhares de espermatozóides tentarão atravessar a zona pelúcida para se juntarem gâmeta a gâmeta e produzirem a fecundação. Entrando num território mais poético do que científico, quase se poderia dizer que estes investigadores descobriram a "faísca" da vida.