O corpo humano tem evoluído de modo a dissipar calor de duas maneiras essenciais: os vasos sanguíneos dilatam, transportando o calor até à pele para que ele possa irradiar, dissipando-se. O suor também se forma sobre a pele, arrefecendo-a por evaporação. Quando esses mecanismos falham, nós morremos. Parece linear. No entanto, é um colapso complexo que ocorre por etapas.
Enquanto a temperatura interna de uma vítima de insolação vai subindo, o coração e os pulmões funcionam cada vez mais intensamente, de modo a manterem cheios os vasos dilatados. Uma vez atingido determinado ponto, o coração deixa de ser capaz de aguentar o ritmo. A pressão sanguínea baixa, induzindo tonturas, fazendo a pessoa cambalear e provocando-lhe fala arrastada. Os níveis de sal diminuem e os músculos contraem-se, sofrendo cãibras. Confusas, por vezes mesmo delirantes, muitas vítimas nem se apercebem de que precisam de ajuda imediata.
Com o sangue a afluir maciçamente à pele sobreaquecida, o seu afluxo aos órgãos diminui, desencadeando reacções que decompõem as células. Algumas vítimas sucumbem com uma temperatura interna de apenas 40ºC. Outras conseguem aguentar 42ºC durante várias horas. O prognóstico é normalmente pior nas pessoas muito jovens e nos idosos. Mesmo que sejam saudáveis, os mais idosos encontram-se em clara desvantagem: as glândulas sudoríparas encolhem com a idade e muitos medicamentos de utilização comum enfraquecem os sentidos. Muitas vezes, as vítimas não sentem sede suficiente para beber. A sudação deixa de ser uma opção, uma vez que o corpo já não tem humidade disponível. Em vez disso, até ocorrem arrepios de frio.
Chegado a este ponto, o enfermo pode morrer devido a um ataque cardíaco, mas os indivíduos em melhor forma podem resistir e padecer da chamada visão em túnel, alucinações e até do impulso de arrancar as roupas, que parecem lixa devido ao ardor nas terminações nervosas. Se desmaiar agora, será uma bênção, uma vez que os vasos sanguíneos começam a perder a sua integridade. Os tecidos musculares, incluindo os do coração, podem ser os seguintes na lista de colapsos. Assim que começam as fugas no aparelho digestivo, as toxinas entram na corrente sanguínea. O sistema circulatório reage, desencadeando um esforço maciço de coagulação. É um último recurso que ameaça ainda mais gravemente os órgãos vitais – rins, bexiga e coração. A morte avizinha-se.
No verão de 2003, um sistema de alta pressão atmosférica instalou-se sobre a Europa Central e Ocidental. Maciçamente aquecida sobre o Mediterrâneo, a gigantesca massa de ar rodopiante repeliu, durante várias semanas, as incursões de ar mais fresco provenientes do Atlântico. Em França, as temperaturas subiram radicalmente, ultrapassando durante oito dias a fasquia assustadora de 40°C. À medida que o calor aumentava, começaram a ocorrer mortes.
Passado pouco tempo, os hospitais ficaram sobrecarregados. As morgues ficaram cheias e os camiões frigoríficos e congeladores dos mercados de alimentos aceitaram os cadáveres em excesso. Nas visitas ao domicílio, os prestadores de cuidados encontraram os seus clientes caídos no chão ou mortos nas poltronas. Nessa época, só uma pequena percentagem das residências francesas estava equipada com ar condicionado). A polícia recebeu telefonemas para arrombar portas, “apenas para encontrar cadáveres atrás delas”, recorda Patrick Pelloux, presidente da associação francesa de médicos de emergência. “Foi absolutamente aterrador.” Muitos cadáveres só foram descobertos várias semanas mais tarde.
*O Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas identifica futuros cenários climáticos, designados por Cenários de Concentração Representativos (RCP), que oscilam entre o cenário pessimista (RCP 8,5) e o cenário optimista (RCP 2,6). Os dados aqui utilizados seguem um RCP 4,5 para as projecções de 2040–2059.
Em França, mais de 15 mil mortes acabaram por ser atribuídas à vaga de calor. Em Itália, a situação foi ainda pior, com quase 20 mil mortos. Em todo o continente, mais de 70 mil pessoas (na sua maioria pobres, isoladas e idosas) perderam a vida. O mais quente Verão registado em 500 anos na Europa, como os cientistas haveriam de determinar mais tarde, esteve claramente associado às alterações climáticas. Em Paris, desencadeou um aumento do risco de mortalidade devido ao calor nesse ano em cerca de 70%.
Entre as numerosas ameaças climáticas que os cientistas associam ao aquecimento global, o aumento das vagas de calor é a consequência mais intuitiva e imediata. A nível mundial, os últimos seis anos foram os mais quentes de que há registo. Na Europa, o pavoroso Verão de 2003 provou não ser uma mera excepção estatística: grandes vagas de calor atingiram o continente cinco vezes desde então e 2019 produziu recordes absolutos de temperatura em seis países da Europa Ocidental, incluindo a barreira de 46ºC que se fez sentir em França.
Como é evidente, a derradeira solução para o aquecimento global consiste numa redução drástica das nossas emissões de gases com efeito de estufa. Se fracassarmos por completo nesse intento, em 2100 o número de mortes devidas ao calor poderá exceder 100 mil por ano nos EUA. Noutras regiões, a ameaça talvez se torne ainda maior: na Índia, por exemplo, o número de mortes poderá atingir 1,5 milhões, segundo uma investigação recente. E mesmo que consigamos refrear as emissões, o planeta continuará a aquecer durante várias décadas. Está em movimento uma força irresistível que alterará profundamente a forma como se vive em grande parte do planeta.
O calor extremamente intenso tem consequências perniciosas, mesmo quando não é mortífero. Os investigadores associam as temperaturas mais elevadas a uma maior incidência de casos de bebés prematuros, com baixo peso e nados-mortos. As condições climáticas de maior calor tornam as pessoas mais violentas, em todos os escalões de rendimento, prejudicando os resultados das crianças nos testes escolares e diminuindo a produtividade. Segundo previsões da Organização Internacional do Trabalho, em 2030 os níveis elevados de calor reduzirão em 2,2% o total de horas de trabalho, o equivalente à perda de 80 milhões de postos de trabalho a tempo inteiro, principalmente nos países de baixo a médio rendimento. Mesmo nos países mais ricos, os assalariados com baixo rendimento que trabalham no exterior – na construção ou na agricultura, por exemplo – serão duramente atingidos. Em 2050, é provável que os níveis elevados de calor e humidade no Sudeste dos EUA tornem a época de cultivo totalmente “insegura para o trabalho agrícola, a manterem-se as práticas laborais actuais”, segundo um estudo da Universidade de Washington.
Os seres humanos, juntamente com as suas colheitas e os seus animais domésticos, evoluíram ao longo dos últimos dez mil anos num nicho climático bastante restrito, centrado numa temperatura média anual de aproximadamente 12,8ºC. Os nossos corpos adaptam-se com facilidade a temperaturas mais elevadas, mas há limites para os níveis máximos de calor e de humidade que conseguimos tolerar.
Até o ser humano em melhor forma e mais aclimatado ao calor morrerá após poucas horas de exposição a um estado de “bulbo húmido”, uma medição combinada de temperatura e de humidade que leva em conta o efeito inibidor da evaporação. Neste estado, a atmosfera é de tal maneira quente e húmida que já não é capaz de absorver o suor humano. Uma caminhada longa nestas condições poderá revelar-se fatal. Os modelos climáticos prevêem que, dentro de aproximadamente 50 anos, as temperaturas de bulbo húmido na Ásia Austral e em regiões do Médio Oriente ultrapassem regularmente o máximo crítico.
Nessa altura, segundo um surpreendente estudo publicado em 2020 nas “Actas da Academia Nacional das Ciências” dos EUA, um terço da população mundial poderá viver em lugares semelhantes ao actual Saara, onde a temperatura média de Verão mais elevada ultrapassa 40°C. Milhares de milhões de pessoas terão de fazer uma dura escolha: migrar para climas mais frescos ou ficar e adaptar-se. O refúgio no interior de espaços com ar condicionado é uma solução de recurso óbvia, embora o próprio ar condicionado, na forma actualmente existente, contribua para o aquecimento do planeta e não seja economicamente comportável para muitas pessoas. O problema do calor extremamente intenso encontra-se mortalmente associado a problemas sociais mais importantes, incluindo o acesso à habitação, aos recursos hídricos e aos cuidados de saúde.
DESTINOS DIVERGENTES. Muitas cidades do Paquistão são pobres e sensíveis ao aumento do número de dias quentes, não dispondo do rendimento necessário para se adaptarem. A Índia, mais rica, enfrentará uma tendência semelhante nas temperaturas, mas com resultados menos catastróficos.
Phoenix, no Arizona, é a cidade mais quente dos EUA, com mais de 110 dias por ano com uma temperatura igual ou superior a 37,8°C. Regista-se aqui a maior parte das mortes causadas por calor no país. Em 2020, na comarca de Maricopa, registou-se um número recorde absoluto de 207 mortos, segundo o gabinete do médico-legista, que está incumbido de investigar todas as mortes não naturais, entre as quais se incluem as mortes relacionadas com a temperatura. Sempre que uma morte potencialmente relacionada com o calor é comunicada, Melanie Rouse, a investigadora principal do gabinete, entrevista as pessoas que estiveram recentemente com o falecido. Ela, ou ele, suava abundantemente? Queixava-se de dor de cabeça ou náuseas? Fazia trabalhos no exterior? “Tentamos apurar o que provocou este desfecho”, diz. “Tentamos perceber se existem outras causas de morte verosímeis.”
No local da morte, os investigadores medem a temperatura do corpo e da sala. A mais elevada temperatura interior foi de 62,8°C em 2017! Procedem à extracção do líquido vítreo do globo ocular da vítima para análise química. As células decompõem-se rapidamente a temperaturas elevadas, “mas a esfera do globo ocular é um espaço protegido”, diz Melanie Rouse. Químicos e físicos analisam este líquido a fim de determinarem se o falecido se encontrava desidratado, se havia níveis elevados de glicemia no sangue ou se a função renal estava diminuída – causas de aumento da susceptibilidade ao calor.
Mais de metade das mortes devidas ao calor registadas na comarca de Maricopa ocorreram no exterior, afectando sobretudo os sem-abrigo. A maior parte das mortes ocorridas em espaços fechados registou-se em casas móveis, cujo isolamento insuficiente dificulta a refrigeração. Nos países mais pobres, a situação é ainda mais grave. Na Índia, quando a temperatura excede 40°C, os organismos governamentais recomendam às pessoas que permaneçam dentro de casa e bebam água fresca. Mas estes conselhos de nada servem às dezenas de milhões de pessoas cujas casas são mais quentes no interior do que no exterior, que não possuem electricidade para ligarem ventoinhas ou aspersores ou que, como Noor Jehan, nem sequer têm casa.
Noor, de 36 anos, viveu sempre na rua, num parque de Nova Deli. Todas as manhãs, empilha os seus escassos bens e caminha penosamente até ao emprego, num estaleiro de construção. Trabalha mesmo quando o termómetro marca 48°C.
À semelhança de outros trabalhadores à jorna, não consegue alimentar os três filhos se faltar ao trabalho. “Quando regresso a casa, não tenho água para tomar banho e arrefecer um pouco”, conta. O sítio onde vai buscar a água potável encontra-se a mais de 1,5 quilómetros de distância.
O marido de Noor Jehan trabalha com um riquexó, mas, subnutrido e desidratado, desmaia frequentemente com o calor. A sua irmã, Afsana, e os seus três filhos adaptaram-se colocando esteiras sobre o passeio para descansarem ou até para dormirem. “Os carros que passam criam uma ligeira brisa”, diz Afsana.
Em Phoenix, David Hondula estuda as consequências sociais e sanitárias do calor urbano incessante. Ultimamente tem andado a calcorrear os passeios escaldantes da cidade em busca dos melhores lugares para plantar dezenas de milhares de árvores – uma reacção urbana cada vez mais comum ao aumento das temperaturas em todo o mundo. “Menor exposição ao calor diminui o risco”, explica. “Porém, acho que não serão as árvores plantadas a impedir a morte de pessoas devido ao calor.” Quando lhe pergunto qual seria a melhor solução, ele nem hesita. “Aumentar o acesso ao ar condicionado.”
Em termos históricos, o uso de aparelhos de ar condicionado nas habitações tem sido considerado um luxo. Em muitos lugares, porém, está a transformar-se numa necessidade de saúde pública, revelando-se essencial para a prevenção das mortes relacionadas com o calor. Segundo o Climate Impact Lab, um consórcio de centros de investigação sobre o clima, há boas notícias: prevê-se que, em 2099, o desenvolvimento económico aumente o uso de ar condicionado e o acesso aos cuidados de saúde, salvando milhões de vidas por ano. A Agência Internacional da Energia prevê que o número de unidades cresça exponencialmente de 1.600 milhões na actualidade para 5.600 milhões em meados deste século.
Jason Treat, Christine Fellenz e Eve Conant. Fonte: Climate Impact Lab. Clique na imagem para ver detalhes.
Há más notícias associadas: a tecnologia de ar condicionado actualmente disponível sai demasiado cara ao planeta. Na maior parte dos sistemas, um líquido refrigerante é bombeado através de uma bobina de evaporação existente no interior da unidade. Ao transformar-se em gás dentro da bobina, o líquido atrai o calor e a humidade presentes no ar. No exterior do edifício, um compressor, um condensador e uma ventoinha reconvertem o gás em líquido, libertando o calor e a água condensada.
Esta solução engenhosa, com um século de idade, tem três problemas. Em primeiro lugar, os hidrofluorcarbonetos habitualmente utilizados como líquido refrigerante são, eles próprios, gases com efeito de estufa. Por isso, têm um potencial de aquecimento global milhares de vezes superior, em termos moleculares, ao do dióxido de carbono. Em segundo lugar, os sistemas convencionais de ar condicionado não fazem desaparecer o calor: limitam-se a descarregá-lo no exterior. Segundo um estudo realizado em Phoenix, as unidades de ar condicionado podem provocar um aumento de 1ºC da temperatura nocturna no exterior.
E, em terceiro lugar, os aparelhos de ar condicionado consomem gigantescas quantidades de electricidade: cerca de 8,5% do consumo mundial total. A maior parte dessa energia ainda é gerada pela queima de combustíveis fósseis. Em 2016, os aparelhos de ar condicionado foram responsáveis pela emissão de 1.130 milhões de toneladas de dióxido de carbono, prevendo-se que esse valor quase duplique em 2050.
Como é evidente, precisamos de novas ideias. Para encorajá-las, o Instituto Rocky Mountain, um centro de reflexão com sede no Colorado, ajudou recentemente a promover um concurso internacional. Desafiou os engenheiros a conceberem um aparelho de ar condicionado com um quinto do impacte climático dos aparelhos comuns, um quarto do consumo energético e, no máximo, o dobro do preço do modelo de entrada de gama actualmente comercializado.
Dentro de 50 anos, um terço da população mundial poderá viver em lugares parecidos com o Saara, onde a temperatura média de verão ultrapassa 40˚C.
Alguns concorrentes prescindiram dos refrigerantes líquidos e da compressão de vapor, trocando-os por novas tecnologias promissoras que ainda não se encontram totalmente disponíveis para venda generalizada. Um recorria a arrefecimento termoeléctrico: é provável que venha a ser mais adequado a aplicações muito localizadas, como o arrefecimento rápido de uma lata e não tanto para arrefecer uma sala inteira. Outro concorrente apresentou painéis para telhados revestidos com nanomateriais que repelem o calor solar, devolvendo-o ao espaço num comprimento de onda infravermelho que atravessa directamente a atmosfera. Em princípio, isso permitiria reduzir o aumento de temperatura de um edifício em alguns graus, “mas não é uma solução em si mesma”, afirma Iain Campbell, investigador sénior do Instituto. “Não funciona em condições de humidade e os painéis precisam de estar virados para o céu.” Ou seja, não é suficientemente útil para quem viva no terceiro andar de um prédio com dez pisos.
Os quatro finalistas, que competiram entre si em 2020 num “desafio de arrefecimento” para um prédio de apartamentos em Bahadurgarh, na Índia, utilizaram todos compressão de vapor convencional, mas recorreram a um elemento valorizador, utilizando novos refrigerantes com baixo (ou nulo) potencial de efeito de estufa e sistemas altamente eficientes de evaporação e condensação. Os dois co-campeões, denominados Equipa Daikin e Equipa Gree, arrefecem os seus condensadores com água, em vez de ar, para reduzirem o consumo de energia, e um deles serve-se de painéis solares para obter parte da electricidade. Espera-se que estejam disponíveis nas lojas em 2025, a cerca do dobro do preço do modelo de base. No entanto, os seus custos operacionais são tão baixos que o período de retorno do investimento será de apenas três anos – segundo as estimativas.
Na universidade de Princeton, o arquitecto e engenheiro Forrest Meggers está a desenvolver outro tipo de sistema que não refrigera o ambiente de uma sala: só arrefece as pessoas, absorvendo o calor irradiado pela sua pele, através de painéis de tubos cheios de água montados nas paredes.
Um protótipo da invenção, chamada Tubo de Frio, está pendurado no laboratório de Forrest Meggers. Parece-se com uma esteira tecida com palhinhas de plástico azul. Num dia como hoje, com 30°C de temperatura, se enchêssemos esses tubos fininhos com água a 17ºC, isso proporcionaria aos ocupantes do laboratório uma sensação de 24°C, mesmo com as portas de correr do laboratório escancaradas, devido à pandemia. Forrest Meggers apresenta-se vestido, da cabeça aos pés, com roupa de secagem rápida.
Não é a primeira vez que os arquitectos utilizam painéis de arrefecimento radiante, em tectos e paredes, mas quase sempre equipados com desumidificadores, para impedir que a água condense nos painéis e caia sobre os computadores e as cabeças. Ao envolver os seus painéis com uma simples membrana de polietileno, que mantém o ar húmido afastado dos tubos, mas não o calor irradiado, Forrest afirma ter resolvido esse problema. Na cidade de Singapura, onde o Tubo de Frio foi pela primeira vez aplicado, o sistema gerou um ambiente confortável, utilizando menos de metade da energia de um ar condicionado convencional e originando metade do calor residual. A poupança de energia não é tão espectacular em ambientes áridos, mas os painéis radiantes equipados com isolamento por membrana conseguem ser mais eficientes do que os sistemas convencionais.
Como os painéis refrescam os corpos humanos e não enormes volumes de ar, também poderão resultar em ambientes exteriores. O maior desafio à adopção generalizada desta tecnologia, suspeita Forrest Meggers, será uma questão de atitude. “Os engenheiros estão habituados a pensar sobre o conforto e a frescura no Verão em termos de ar condicionado”, diz.
A cidade de Nova Iorque, onde vivo, escalona os seus bairros em termos de vulnerabilidade ao calor segundo factores de risco como a pobreza, o acesso ao ar condicionado e a disponibilidade de espaços verdes. Na zona norte de Manhattan, o bairro de East Harlem regista a a pior classificação deste índice. A sua taxa de pobreza de 31% é quase o dobro da média da cidade e apresenta uma das mais baixas taxas de propriedade de ar condicionado (88%) da cidade.
Num dia escaldante de Verão, encontro-me com Sonal Jessel, directora de políticas públicas da organização sem fins lucrativos WE ACT for Environmental Justice, para darmos um passeio em East Harlem. Enquanto caminhamos, Sonal chama-me a atenção para um prédio de arrendamento, onde toalhas e trapos preenchem o espaço entre os aparelhos de ar condicionado e os caixilhos das janelas.
“A conta da electricidade deve ter disparado”, diz. A população de East Harlem é 27% negra e os agregados familiares negros pagam, em média, centenas de euros a mais pela energia do que os agregados familiares brancos de rendimento equivalente. Segundo o referido estudo, os edifícios das comunidades negras são mais velhos e têm mais fugas e com maior número de moradores por unidade. “Se um indivíduo estiver a tentar trabalhar ou estudar na sala equipada com ar condicionado e estiverem lá mais três pessoas barulhentas, essa pessoa muda-se para outra sala e liga outro aparelho”, diz.
Caminhamos para leste. Vêem-se poucas árvores nas ruas e o calor irradia dos passeios, dos edifícios e dos motores e tubos de escape dos automóveis. Eu e Sonal Jessel passamos por lotes cheios de ervas daninhas e lojas já fechadas muito antes da pandemia. “O bairro sofre profundamente por ver todos estes espaços devolutos”, diz ela.
Esta situação também aumenta a vulnerabilidade dos moradores ao calor: quando o sociólogo Eric Klinenberg estudou a vaga de calor de 1995, durante a qual mais de 700 pessoas morreram, descobriu que os bairros de baixo rendimento com espaços públicos cheios de vida e muita actividade comercial registaram um menor número de mortes devido ao calor. Os residentes em bairros menos movimentados tinham menos probabilidades de saírem à rua em busca de algum alívio ou para visitarem vizinhos que se preocupassem com eles, depreendeu, porque não se conheciam uns aos outros, tinham menos sítios onde ir e, por vezes, receavam andar a pé pelas ruas. Por isso, permaneciam dentro de casa, sufocando de calor e morrendo.
Nova Iorque mantém em funcionamento várias dezenas de centros de arrefecimento: bibliotecas, escolas, centros de dia para idosos e outros edifícios que abrem as portas ao público durante as vagas de calor. Em Nova Iorque, os centros encerram de noite e muita gente que poderia encontrar alívio nesses lugares nem sequer sabe da sua existência. Algumas pessoas recusam-se a ir para lá com receio de que os seus apartamentos vazios sejam assaltados, como Eric Klinenberg descobriu em Chicago. Em Phoenix, as pessoas sem-abrigo preferiram torrar em cidades de tendas, montadas sobre o asfalto dos parques de estacionamento, do que abandonar os seus bens terrenos enquanto procuravam alívio, relatou Ash Uss, uma activista local.
A persuasão desses grupos a procurar espaços com ar condicionado poderá salvar vidas, como observou David Hondula. No entanto, também a diminuição do isolamento social poderá ser importante. Em Nova Iorque, a taxa de mortalidade dos moradores negros por problemas relacionados com o calor é duas vezes superior à dos brancos, embora esta taxa seja três vezes superior entre os brancos, comparados com os hispânicos, e cinco vezes superior se os compararmos com os asiáticos – talvez, em parte, por haver mais probabilidades de os brancos viverem sozinhos.
A gestão das condições extremas de calor pode ser mais complicada, porque é inseparável de outras questões sociais importantes. No entanto, se melhorarmos a vida dos mais vulneráveis da nossa sociedade, conseguiremos também melhorar a nossa resiliência em condições extremas de calor.
A vaga de calor europeia de 2003 desencadeou avaliações internacionais e reformas importantes. No espaçode um ano, a França ordenou a instalação de “salas de arrefecimento” em lares para idosos anteriormente desprovidos de ar condicionado, criou sistemas de vigilância do bem-estar por via telefónica, reforçou os sistemas de alerta ao calor e lançou uma campanha maciça de educação pública. Quando as temperaturas elevadas voltaram a surgir, foi atribuída a estas medidas uma redução de dez vezes dos valores da mortalidade.
Temos a certeza absoluta de que as temperaturas elevadas continuarão a acontecer e que os aparelhos de ar condicionado, por si, não evitarão todas as mortes provocadas pelo calor. As pessoas continuarão a precisar de sair à rua.
Por isso, em cidades quentes de todo o mundo, há equipas a plantar árvores e trepadeiras para impedir a passagem da luz solar. Estão a pintar coberturas de prédios, a plantar jardins em telhados, a montar estruturas nos passeios e nos parques, a instalar vaporizadores de ar húmido e aspersores nos parques de recreio. Estão em curso experiências com pavimento texturado permeável, que arrefece a atmosfera envolvente ao absorver e, em seguida, evaporar as águas pluviais. Segundo cálculos de investigadores do Instituto da Terra da Universidade de Colúmbia, a plantação de árvores em 17% da superfície terrestre de Nova Iorque e o tratamento da totalidade das coberturas dos edifícios de maneira a reflectirem a radiação solar, em vez de a absorverem, permitiriam baixar a temperatura geral da cidade em cerca de 1ºC.
“Não sabemos se o recurso a todas estas ferramentas será suficiente para sobrevivermos a mais meio grau de aquecimento”, muito menos aos três graus de aumento previstos até final do século, afirma Kristie Ebi, que estuda os efeitos do aquecimento global na saúde humana, na Universidade de Washington. “Mas não fazer nada será, certamente, insuficiente.”
Será por isso decisivo repensar a forma como construímos edifícios para sobrevivermos a um futuro mais quente. Até meados do século XX, a maior parte dos edifícios era construída tendo em conta o clima. Nas latitudes mais quentes, os arquitectos incorporavam vigas, cúpulas, clarabóias, poços de ar e janelas operáveis para favorecer a ventilação cruzada e as correntes de ar ascendentes. Toldos, persianas para filtrar a luz, estores de lâminas orientáveis e alpendres protegiam as salas do sol. As ventoinhas de tecto, que chegam a consumir mil vezes menos energia do que um aparelho de ar condicionado, eram omnipresentes. No entanto, à medida que a elegância e a influência da arquitectura modernista – com as suas janelas inoperáveis e divisórias de alumínio e vidro – se espalhavam pelo mundo a partir dos EUA e da Europa, o mesmo acontecia à dependência face ao ar condicionado por meios mecânicos. A arquitectura bioclimática está de novo na moda. Porém, temos de viver nas cidades que já existem. Não iremos provavelmente demolir, nem remodelar substancialmente, centenas de milhares de torres com isolamento deficiente e consumo intenso de energia. Em vez disso, como sugere o arquitecto Daniel Barber, talvez possamos remodelar as nossas expectativas. É chegado o momento, segundo ele, “de nos habituarmos a aceitar, senão mesmo a valorizar, o desconforto”. Antigamente, sentir um bocadinho de calor a mais no Verão era aceitável até para os mais ricos. Na opinião de Daniel Barber, deveríamos aprender a aceitar isso de novo. À luz deste paradigma, a frescura luxuosa das nossas salas de congressos, ou o “deleite térmico” que acolhe o peão transpirado quando as portas de um centro comercial se abrem de par em par, transformar-se-iam em artefactos de uma loucura passageira de finais do século XX.
Na perspectiva de Daniel Barber, o devorador de energia que é o Norte Global, onde abunda o excesso de conforto, transferiria a sua porção da “riqueza térmica” para o Sul Global carente de energia, pelo menos até desistirmos dos combustíveis fósseis. Seria uma espécie de indemnização a título de conforto por termos sido os primeiros a desencadear as alterações climáticas. “Os arquitectos já dispõem das ferramentas e do conhecimento necessários para reduzir a nossa dependência do arrefecimento mecânico”, afirma. Agora, o seu projecto consiste em tornar o desconforto desejável, talvez mesmo revelador de estilo.
Como é evidente, o estilo só resulta até um certo ponto. O desconforto auto-imposto será uma atitude ética difícil de propor às audiências de massas dos países ricos, e o próprio Daniel Barber reconhece as limitações do corpo humano. “Quando estiverem 60°C, espero, por Deus, que haja um ar condicionado para mim e para si também”, diz. “Mas quando estiverem 29,5°C, por favor limite-se a abrir a janela.”