Desde as reflexões de Aristóteles sobre a natureza do tempo até à teoria da relatividade de Einstein, a forma como percepcionamos e compreendemos o tempo tem sido uma questão que sempre intrigou os seres humanos.
A teoria da relatividade postula que o tempo pode esticar e contrair, um fenómeno conhecido como dilatação do tempo. Não se pode dizer que seja exactamente a mesma coisa, mas tal como o cosmos deforma o tempo, os nossos circuitos neuronais também podem esticar e comprimir a nossa experiência temporal subjectiva. Quem já passou uma daquelas intermináveis tardes de Verão no calor do dia em que as televisões só passavam a Volta a França ou a telenovela com o nome da pedra preciosa do dia sabe disso.
Esta experiência subjectiva do tempo é, no entanto, o tema de um estudo de uma equipa de investigadores do Champalimaud Research's Learning Lab recentemente publicado na revista Nature Neuroscience. Nele, os cientistas abrandaram ou aceleraram artificialmente padrões de actividade neural em ratos, distorcendo o seu julgamento da duração do tempo e fornecendo a evidência causal mais convincente até à data sobre como o cérebro funciona a este respeito.
A HIPÓTESE DO RELÓGIO POPULACIONAL
Em contraste com os ritmos circadianos que regem os nossos ciclos biológicos e moldam a nossa vida quotidiana – desde os ciclos de sono-vigília ao metabolismo –, sabe-se muito menos sobre a forma como o corpo mede o tempo numa escala de segundos ou minutos.
Ao contrário do tique-taque preciso do relógio centralizado de um computador, o nosso cérebro mantém uma noção de tempo descentralizada e flexível, que se pensa responder à dinâmica das redes neuronais espalhadas pelo cérebro. De acordo com esta hipótese, conhecida como a hipótese do "relógio populacional", o nosso cérebro calcula o tempo com base em padrões de actividade que envolvem diferentes grupos de neurónios.
Joseph J. Paton, investigador do Programa de Neurociências do Champalimaud Research, em Lisboa, e autor principal do artigo, explica a hipótese do "relógio populacional" com uma metáfora: "É como deixar cair uma pedra num lago. De cada vez que isso acontece, são geradas ondas que irradiam na superfície num padrão repetitivo. Examinando os padrões e as posições destas ondulações, é possível deduzir quando e onde a pedra foi largada na água".
"Tal como a velocidade a que as ondas se movem pode variar, a taxa a que estes padrões de actividade progridem nas populações neuronais também pode mudar", continua. "O nosso laboratório foi um dos primeiros a demonstrar uma estreita correlação entre a velocidade a que estas 'ondas' neuronais evoluem e as decisões dependentes do tempo".
Para chegar a esta conclusão, a equipa de Paton treinou um grupo de ratos para distinguir entre diferentes intervalos de tempo. Ele e os seus colegas descobriram que a actividade no corpo estriado, uma região profunda do cérebro, segue padrões previsíveis que se alteram a diferentes ritmos. No entanto, a correlação não implica causalidade. Como explica o investigador: "Queríamos testar se a variabilidade na velocidade da dinâmica dos neurónios do estriado era uma simples correlação ou se regulava directamente o comportamento relacionado com o tempo. E para o fazer, precisávamos de uma forma de manipular experimentalmente esta dinâmica".
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O nosso cérebro mantém uma noção de tempo descentralizada e flexível, que se pensa responder à dinâmica das redes neuronais espalhadas pelo cérebro.
TEMPO E TEMPERATURA
"Nunca nos livramos das ferramentas antigas", brinca Tiago Monteiro, outro dos autores principais do estudo. Para estabelecer a causalidade, a equipa recorreu a uma técnica da velha guarda dos neurocientistas: a temperatura.
"A temperatura foi utilizada em estudos anteriores para manipular a dinâmica temporal de comportamentos, como o canto dos pássaros", explica o investigador. "Nas aves, o arrefecimento de uma região específica do cérebro abranda o canto, enquanto o aquecimento a acelera, sem alterar a sua estrutura. É semelhante a mudar o ritmo de uma peça musical sem afectar as notas em si", continua. "Pensámos que a temperatura poderia ser ideal para a nossa experiência, uma vez que nos permitiria potencialmente alterar a velocidade da dinâmica neural sem alterar o seu padrão.
Para testar esta ferramenta em ratos, os investigadores desenvolveram um dispositivo termoelétrico personalizado que permite aquecer ou arrefecer localmente o striatum [corpo estriado], registando simultaneamente a actividade neuronal. Nestas experiências, os ratos foram anestesiados, pelo que os investigadores utilizaram a optogenética – uma técnica que utiliza a luz para estimular células específicas – para criar ondas de actividade no corpo estriado, que de outra forma estaria inactivo, como se se tratasse de atirar uma pedra para um lago. "Tivemos o cuidado de não arrefecer demasiado a área, o que inibiria a actividade, nem de a aquecer demasiado, o que poderia causar danos irreversíveis", explica a co-autora Margarida Pexirra.
"A temperatura forneceu-nos uma forma de esticar ou contrair a actividade neural ao longo do tempo, pelo que aplicámos esta manipulação no contexto do comportamento", acrescenta Filipe Rodrigues, da equipa de Paton. "Treinámos os animais para indicarem se o intervalo entre dois tons era maior ou menor do que 1,5 segundos. Quando arrefecíamos o striatum, os animais tinham mais probabilidades de interpretar um determinado intervalo como curto. Quando o aquecíamos, era mais provável que dissessem que era longo. O aquecimento do striatum acelerou a dinâmica populacional do striatum, semelhante à aceleração do movimento dos ponteiros de um relógio, o que fez com que os ratos julgassem um determinado intervalo de tempo como sendo mais longo do que era na realidade."
TEMPO, CRONOMETRAGEM E MOVIMENTO
"Surpreendentemente, apesar do facto de o striatum coordenar o controlo motor, abrandar ou acelerar os seus padrões de actividade, não abrandou nem acelerou os movimentos dos animais na tarefa", acrescenta Paton. "Isto levou-nos a pensar mais profundamente sobre a natureza do controlo comportamental em geral."
Mesmo os organismos mais simples enfrentam dois desafios fundamentais quando se trata de controlar o movimento. Em primeiro lugar, têm de escolher entre diferentes acções potenciais, por exemplo, se querem andar para a frente ou para trás. Em segundo lugar, depois de escolherem uma acção, têm de ser capazes de a ajustar e controlar continuamente para garantir que é executada de forma eficaz. Estes problemas básicos aplicam-se a todos os tipos de organismos, desde os vermes aos seres humanos. As descobertas da equipa indicam que o striatum é fundamental para resolver o primeiro desafio – determinar o que e quando fazer – enquanto o segundo desafio, como controlar o movimento, reside noutras estruturas cerebrais.
A este respeito, num estudo paralelo, a equipa está agora a explorar o cerebelo, que alberga mais de metade dos neurónios do cérebro e está associado à execução contínua, momento a momento, das nossas acções.
"Curiosamente, os nossos dados preliminares [desse estudo] mostram que a manipulação da temperatura do cerebelo, em oposição à do estriado, afecta o controlo do movimento contínuo". Paton salienta: "Esta divisão de trabalho entre estes dois sistemas cerebrais pode ser observada em doenças do movimento como a doença de Parkinson e a ataxia cerebelar. A doença de Parkinson, que afecta o estriado, dificulta frequentemente a capacidade dos doentes de iniciarem planos motores por si próprios, como andar. No entanto, o fornecimento de pistas sensoriais, como linhas de fita adesiva no chão, pode facilitar a marcha. É provável que estes sinais estejam relacionados com outras regiões cerebrais, como o cerebelo e o córtex, que ainda estão intactas e podem lidar eficazmente com o movimento contínuo. Em contrapartida, os doentes com lesões cerebelares têm dificuldade em executar movimentos suaves e coordenados, mas não necessariamente em iniciar ou fazer a transição entre movimentos".
Ao fornecer novos conhecimentos sobre a relação causal entre a actividade neural e a função de sincronização, as descobertas da equipa representam um avanço no desenvolvimento de novos alvos terapêuticos para doenças debilitantes como a doença de Parkinson ou a doença de Huntington, que envolvem sintomas relacionados com o tempo e o estriado.
"Ironicamente, para um trabalho sobre timing, este estudo levou anos a ser concluído", diz Tiago Monteiro, "Mas há muitos mais mistérios para desvendar. "Que circuitos cerebrais criam estas ondas de actividade temporal em primeiro lugar? Que cálculos, para além da avaliação do tempo ou do tempo de movimento, podem estas ondas realizar? Como é que nos ajudam a adaptar e a responder de forma inteligente ao nosso ambiente? Para responder a estas perguntas, vamos precisar de mais de algo que temos estado a estudar... o tempo", conclui o investigador.