O manto da vieira está dotado de quase uma centena de olhos azuis brilhantes. Cada um contém uma camada espelhada que funciona como lente de focagem e duplica as possibilidades de captação de luz.
Para que servem os olhos dos animais? Para muitos, eles têm a mesma função dos olhos humanos.
Mas não é verdade. Não é mesmo verdade.
No seu laboratório da Universidade de Lund, na Suécia, Dan-Eric Nilsson contempla os olhos de um cubozoário. Os olhos de Dan-Eric são azul-claros e, claro, estão virados para a frente. Já o cubozoário possui 24 olhos castanho-escuros e agrupados em quatro aglomerados, os ropálios. No seu gabinete, o investigador mostra-me o modelo de um deles: parece uma bola de golfe na qual cresceram tumores. Uma haste flexível fixa-o ao cubozoário.
“Quando os vi pela primeira vez, nem acreditei”, comenta ele. “São mesmo estranhos.”
Quatro dos seis olhos existentes em cada ropálio são simples ranhuras e cavidades detectoras de luz. As outras duas, porém, são surpreendentemente sofisticadas. À semelhança dos olhos humanos, possuem lentes que focam a luz e processam imagens, mas em baixa resolução.
Com a ajuda dos olhos, a massa acéfala consegue encontrar alimento, evitar obstáculos e sobreviver.
Entre outras funções, Dan-Eric Nilsson utiliza os olhos para reunir informação sobre a diversidade da visão animal. Mas como interpretar aquela alforreca? É um dos animais mais simples do planeta: uma massa gelatinosa e pulsante que arrasta quatro conjuntos de tentáculos urticantes. Nem sequer possui um cérebro digno desse nome, apenas um anel de neurónios circundando a sua campânula. Que informação poderia fazer-lhe falta?
Em 2007, Dan-Eric e a sua equipa demonstraram que o cubozoário da espécie Tripedalia cystophora utiliza os seus olhos inferiores, equipados com cristalinos, para detectar obstáculos nas proximidades, como as raízes de mangue no meio das quais nada. Demoraram mais quatro anos a descobrir a utilidade dos olhos superiores. O primeiro grande indício foi um peso livre que existe no sector inferior do ropálio, destinado a assegurar que o olho superior está sempre apontado para cima. Se este olho detectar manchas escuras, a alforreca sente que está a nadar sob o mangue, onde poderá encontrar os pequenos crustáceos de que se alimenta. Se só vir luz intensa, é sinal de que se desviou para mar alto e arrisca-se a passar fome. Com a ajuda dos olhos, a massa acéfala consegue encontrar alimento, evitar obstáculos e sobreviver.
São olhos com lentes bifocais, olhos com espelhos e olhos que espreitam para cima, para baixo e para os lados em simultâneo.
Os olhos do cubozoário fazem parte de uma variedade quase interminável de olhos do reino animal. Alguns vêem apenas a preto e branco, outros são capazes de apreciar um arco-íris completo, incluindo espectros de luz invisíveis aos nossos olhos. Alguns não conseguem sequer perceber a direcção de onde provém a luz, mas outros conseguem detectar presas em fuga a quilómetros de distância. Os mais pequenos olhos de animais estão implantados na cabeça das vespas da espécie Gonatocerus ashmeadi: são pouco maiores do que uma amiba. Em contrapartida, os maiores são do tamanho de pratos e pertencem a espécies de lulas gigantes. À semelhança dos nossos, o olho da lula funciona como uma câmara, com um cristalino que foca a luz numa única retina repleta de fotorreceptores, as células que absorvem fotões e convertem a energia num sinal eléctrico. Pelo contrário, o olho composto de uma mosca divide a luz recebida em milhares de unidades separadas, cada qual munida de um cristalino e fotorreceptores próprios. Os olhos do ser humano, da mosca e da lula existem aos pares na cabeça dos seus donos. Mas as vieiras têm filas de olhos dispostos ao longo dos seus mantos, as estrelas-do-mar possuem olhos na extremidade dos braços e todo o corpo do ouriço-do-mar funciona como um único olho gigante. São olhos com lentes bifocais, olhos com espelhos e olhos que espreitam para cima, para baixo e para os lados em simultâneo.
De certo modo, esta diversidade é intrigante. Todos os olhos detectam luz e a luz comporta-se de forma previsível. No entanto, tem uma multiplicidade de usos. A luz revela a altura do dia, a profundidade da água e a presença de sombra.
É reflectida pelos inimigos, pelos companheiros e pelos locais de abrigo. O cubozoário utiliza-a para encontrar pastagens seguras. Nós utilizamo-la para investigar paisagens, interpretar expressões faciais e ler estas palavras. A variedade de tarefas que os olhos desempenham só é limitada pela fecundidade da natureza. Para compreender a maneira como os olhos evoluíram, a comunidade científica precisa de fazer mais do que examinar estruturas. Terá de compreender como os animais utilizam os seus olhos.
Há cerca de 540 milhões de anos, os antepassados da maioria dos grupos de animais contemporâneos surgiram subitamente em cena, num surto de especiação conhecido como explosão câmbrica. Muitas destas criaturas pioneiras deixaram fósseis, alguns dos quais tão bem preservados que permitiram aos cientistas utilizar imagens captadas por microscópio de varrimento electrónico para compor a sua anatomia interior e reconstituir a sua visão do mundo.
Contudo, estes olhos já eram complexos e não há vestígios de estruturas anteriores. O registo fóssil nada diz sobre como os animais sem visão começaram a ver o mundo. Este mistério perturbou Charles Darwin. “Supor que o olho, com toda a sua maquinaria inimitável..., poderia ter sido formado pela selecção natural parece-me, confesso, absurdo”, escreveu em “A Origem das Espécies”.
Entre os animais vivos, há exemplos de todos os estádios intermédios entre as primitivas secções fotossensíveis de uma minhoca e os olhos aguçados de uma águia.
Os criacionistas gostam de concluir a citação neste ponto, com o grande homem a duvidar da sua própria teoria. Na frase seguinte, porém, Darwin resolve o seu próprio dilema: “Contudo, a razão diz-me que, conseguindo demonstrar a existência de várias gradações entre um olho perfeito e complexo e um muito imperfeito e simples, cada uma sendo útil para o seu possuidor…, então a dificuldade em acreditar que um olho perfeito e complexo pudesse ter sido formado pela selecção natural, embora impossível de superar pela nossa imaginação, dificilmente pode ser considerada real.”
A existência das gradações referidas por Darwin pode ser demonstrada. Entre os animais vivos, há exemplos de todos os estádios intermédios entre as primitivas secções fotossensíveis de uma minhoca e os olhos aguçados de uma águia. Dan-Eric Nilsson até conseguiu demonstrar que os primeiros podem evoluir até aos segundos num período de tempo surpreendentemente curto.
O investigador sueco criou uma simulação que começa por uma folha pequena e plana de células pigmentadas fotossensíveis. A cada geração anual, a folha torna-se um pouco mais espessa. Começa lentamente a curvar-se, transformando-se de folha em taça. Adquire um cristalino rudimentar, que se vai aperfeiçoando gradualmente. Mesmo nas condições mais adversas, com o olho a melhorar apenas 0,005% em cada geração, a folha mais simples demora apenas 364 mil anos a transformar-se num órgão semelhante a uma câmara inteiramente funcional. Em termos evolutivos, é um piscar de olhos.
Os olhos mais simples não podem ser vistos como meras etapas num percurso rumo a uma maior complexidade. Aqueles que existem actualmente são feitos à medida das necessidades dos seus utilizadores. Os olhos de uma estrela--do-mar não distinguem cores, pormenores ou objectos velozes. Fariam uma águia embater contra uma árvore. Por outro lado, a estrela-do-mar não precisa de detectar e capturar um coelho em fuga. Precisa simplesmente de detectar recifes de coral (pedaços enormes e imóveis da paisagem) para poder, lentamente, deslocar-se até casa. Os seus olhos conseguem fazer isso; não tem qualquer necessidade de desenvolver algo melhor. O olho de uma águia numa estrela-do-mar seria um exagero ridículo.
“Os olhos não evoluíram da simplicidade para a perfeição”, diz Nilsson. “De início, desempenhavam tarefas simples na perfeição e evoluíram de forma a desempenharem muitas tarefas complexas com excelência.”
Há alguns anos, o investigador sueco consagrou este conceito num modelo que acompanha a evolução dos olhos em quatro fases, cada uma definida não só por estruturas físicas, mas pelas actividades que estes permitem aos animais.
A primeira fase implica a monitorização da intensidade da luz do ambiente para avaliar o momento do dia ou a profundidade do animal numa coluna de água. Não é necessário um olho perfeito para isto: basta um fotorreceptor isolado. A hidra, um parente pequeno da alforreca, não possui olhos, mas tem fotorreceptores no corpo. Todd Oakley e David Plachetzki, da Universidade da Califórnia, demonstraram que estes receptores controlam as células urticantes da hidra, tornando-as mais facilmente activadas no escuro. Talvez isto permita à criatura reagir às sombras das vítimas que por ela passam ou reservar os ataques para a noite, quando as suas presas são mais abundantes.
A espécie Odontodactylus scyllarus tem uma extraordinária abundância de receptores de cor: 12 (nós possuímos 3). Os olhos também se deslocam e assimilam a profundidade, a luz infravermelha e violeta.
Na segunda fase do modelo de Nilsson, os animais conseguem identificar o local de proveniência da luz, uma vez que os seus fotorreceptores desenvolvem um escudo – geralmente um pigmento escuro – que bloqueia a luz proveniente de determinadas direcções. Um receptor deste tipo confere ao seu possuidor uma noção do mundo num único pixel, insuficiente para se qualificar como visão propriamente dita, mas suficiente para avançar em direcção a uma fonte de luz ou afastar-se dela para um refúgio à sombra.
Na terceira fase, os fotorreceptores protegidos com escudos aglomeram-se em grupos, cada um apontando para uma direcção ligeiramente diferente. Com eles, os organismos já podem integrar informação sobre luz proveniente de diferentes direcções, produzindo uma imagem do seu mundo. Isto assinala o ponto em que a detecção de luz se transforma em visão propriamente dita e aglomerados de fotorreceptores se transformam em olhos reais. Os animais com olhos correspondentes à terceira fase têm capacidade para encontrar refúgio, como as estrelas-do-mar, ou para evitar obstáculos, como os cubozoários.
Teve início uma corrida às armas e os animais reagiram aumentando de tamanho, ganhando mobilidade e desenvolvendo conchas, espinhos e couraças.
A quarta fase é aquela em que a evolução dos olhos progride abruptamente. Com a incorporação do cristalino para focar a luz, a visão torna-se mais nítida e detalhada. “Quando chegamos à quarta fase, a lista de tarefas é interminável”, diz Dan-Eric Nilsson. Esta flexibilidade pode ter sido uma das faíscas a desencadear a explosão câmbrica. De repente, as rivalidades entre predadores e presas poderiam já desenrolar-se à distância. Teve início uma corrida às armas e os animais reagiram aumentando de tamanho, ganhando mobilidade e desenvolvendo conchas, espinhos e couraças.
À medida que evoluíam, o mesmo acontecia com os seus olhos. Todas as estruturas básicas da visão hoje presentes já existiam no Câmbrico, mas foram apuradas numa extraordinária variedade de formas. O macho do efemeróptero parece ter um enorme olho composto colado em cima de outro mais pequeno, dedicado a observar os céus em busca de silhuetas de fêmeas voadoras. Um peixe do género Anableps desdobrou os seus dois olhos em mais dois, de modo a ter um acima da superfície da água para examinar o céu enquanto o outro procura ameaças e presas em baixo.
O olho humano é razoavelmente rápido, hábil na detecção de contrastes e ultrapassado em resolução apenas pelas aves de rapina, um olho diversificado para o mais versátil dos animais.
Uma imagem de raios X revela um chip de retina ligado a sensores electrónicos inseridos sob a pele (em cima, esquerda). Os 1.500 pixels do chip implantado na retina do olho de Peter Bohm substituem os fotorreceptores perdidos devido a retinite pigmentosa (em cima, direita). Os sinais dos eléctrodos do chip estimulam o nervo óptico, permitindo-lhe ver o mundo novamente, pelo menos a preto e branco.
Longe de representar um obstáculo à teoria da selecção natural, a evolução do olho complexo é um dos seus exemplares mais esplêndidos. “Existe grandiosidade nesta maneira de ver a vida”, escreveu Darwin no final da sua obra. Foram os seus olhos correspondentes à quarta fase evolutiva que lhe permitiram ver esse esplendor.
O modelo de Dan-Eric Nilsson dá uma dimensão nova a um velho debate: o lendário biólogo evolutivo alemão Ernst Mayr afirmou que os olhos tinham 40 a 65 origens independentes, dado existirem em tantas formas e feitios. Em contrapartida, o falecido Walter Gehring, biólogo suíço, acreditava que os olhos evoluíram apenas uma vez, constatação feita após ter descoberto que o mesmo gene principal – denominado Pax6 – controla o desenvolvimento ocular em quase todas as criaturas vivas com olhos. Ambos têm razão. Os olhos correspondentes à terceira fase evoluíram de facto a partir dos seus precursores da segunda fase, mais simples, em diversas ocasiões. O cubozoário, por exemplo, desenvolveu os seus de forma independente dos moluscos, dos vertebrados e dos artrópodes. No entanto, os olhos de todos estes organismos são variações dos mesmos detectores de luz da primeira fase.
Sabemo-lo porque todos os olhos são compostos pelas mesmas peças. Os organismos dotados de visão não dispensam proteínas chamadas opsinas, bases moleculares de todos os olhos. As opsinas funcionam envolvendo um cromóforo, uma molécula capaz de absorver a energia que lhes chega a partir de um fotão. A energia dá nova forma ao cromóforo, forçando a opsina a contorcer-se. A transformação desencadeia reacções químicas que culminam num sinal eléctrico.
Existem milhares de opsinas diferentes, mas todas relacionadas entre si. Há alguns anos, a investigadora Megan Porter comparou as sequências de quase novecentos genes, codificando proteínas de opsina de todo o reino animal e confirmando que todas partilham um antepassado comum. Surgiram uma única vez e depois diversificaram-se numa enorme árvore genealógica.
Diferentes grupos animais desenvolveram independentemente o seu próprio tipo de lente, combinando proteínas que desempenhavam diferentes funções não relacionadas com a visão. Todas são estáveis e capazes de curvar a luz.
A mãe de todas as opsinas não surgiu do nada. A evolução improvisou as primeiras opsinas a partir de proteínas que funcionavam mais como relógios do que como fotossensores. Estas proteínas ancestrais ligavam-se à melatonina, uma hormona que controla os relógios corporais de muitos organismos. A melatonina é destruída pela luz, por isso a sua ausência pode assinalar os primeiros raios da alvorada, mas apenas uma vez. Qualquer criatura que sinta o nascer do dia graças à melatonina tem de produzi-la continuamente.
Em contrapartida, os cromóforos associados às opsinas limitam-se a mudar de forma quando absorvem luz e podem facilmente recuperá-la. Por isso, quando as proteínas associadas à melatonina entraram em mutação, transformaram-se subitamente em fotossensores reutilizáveis. Estas foram as primeiras opsinas e foram tão eficientes que a evolução nunca mais desenvolveu uma alternativa melhor, limitando-se a criar variações sobre o mesmo tema.
A mosca moderna vê com milhares de lentes, mas os olhos compostos evoluíram rapidamente durante o período câmbrico, como o olho fossilizado de um artrópode da Austrália com três mil lentes.
O mesmo não se pode dizer de outros componentes oculares. Repare-se no caso das lentes. Quase todas são compostas por proteínas que aperfeiçoam a visão focando a luz nos fotorreceptores subjacentes. No entanto, ao contrário das opsinas, as lentes estão unidas apenas pelo nome. O cristalino humano não tem qualquer relação com as lentes de uma lula ou de uma mosca. Diferentes grupos animais desenvolveram independentemente o seu próprio tipo de lente, combinando proteínas que desempenhavam diferentes funções não relacionadas com a visão. Todas são estáveis e capazes de curvar a luz.
Os olhos maiores pertencem às espécies de lulas de maior dimensão. O olho de uma lula gogante Como o da imagem) mede 17 cm de diâmetro; são conhecidos outros com 30. Eles permitem que o animal aviste o tremeluzir de plâncton luminoso agitado pelas investidas de cachalotes, arqui-inimigos das lulas. Fotografado no Museu Nacional de História Natural, Instituto Smithsonian.
As lentes mais estranhas da natureza pertencem aos quítones, um grupo de moluscos marinhos de aparência oval adornados com placas blindadas. Estas placas estão polvilhadas com centenas de olhos correspondentes à terceira fase de evolução, cada qual com a sua própria lente. Estas lentes são compostas por um mineral chamado aragonite, que os quítones criam a partir de moléculas de cálcio e carbonatos presentes na água do mar. Expondo o problema de maneira simples, esta criatura desenvolveu uma forma de aguçar a visão olhando através de rochas. E quando as suas lentes rochosas são erodidas, os quítones fabricam novas lentes.
A evolução não tem capacidade de previsão. Não consegue recomeçar do zero, por isso as suas obras padecem sempre de imperfeições.
Opsinas, lentes e todos os outros componentes do olho comprovam os ajustes improvisados da evolução, a reutilização constante de materiais já existentes para novas funções e a combinação de estruturas simples para formar estruturas complexas. No entanto, a evolução não tem capacidade de previsão. Não consegue recomeçar do zero, por isso as suas obras padecem sempre de imperfeições. Dan-Eric Nilsson mostra-se particularmente desalentado com os olhos compostos. A sua estrutura, composta por várias unidades repetidas, gera um tecto adverso à sua resolução visual. Se uma mosca quisesse ver com a mesma resolução que um ser humano, o seu olho precisaria de ter um metro de diâmetro. “Os insectos e os crustáceos ganharam o seu espaço apesar dos olhos que têm e não por causa deles”, resume. “Teriam conseguido muito mais com outro tipo de olhos, mas a evolução não quis. A evolução não é esperta.”
Eric Warrant trabalha com Dan-Eric Nilsson na Universidade de Lund e defende um ponto de vista mais leniente. “Os olhos dos insectos têm uma resolução temporal muito mais rápida”, diz. “Duas moscas perseguem-se uma à outra a enorme velocidade e vêem até 300 lampejos de luz por segundo. Com sorte, os humanos vêem 50.” O olho de uma libélula confere-lhe visão de quase 360º. E a mariposa-elefante possui olhos tão sensíveis que até consegue ver cores só com a luz das estrelas. “Em certos aspectos, estamos melhor, mas em muitos outros estamos pior”, resume o investigador. “Não existe um olho que faça tudo melhor.” Os nossos olhos, como uma câmara, têm os seus próprios problemas. As nossas retinas, por exemplo, são estranhamente construídas de trás para a frente. Os fotorreceptores ficam atrás de uma rede emaranhada de neurónios, algo parecido com pôr os cabos de uma câmara à frente da lente.
Os olhos da mariposa-elefante, uma espécie noctívaga, recolhem os mais pequenos vestígios de luz. Mesmo sob a luz ténue das estrelas, conseguem distinguir as cores das flores com néctar.
Os conjuntos de fibras nervosas também têm de passar por um buraco na camada fotorreceptora para alcançar o cérebro. É por isso que temos um ângulo morto. Não existe qualquer vantagem nestes defeitos: são meras peculiaridades da nossa história evolutiva.
Os humanos desenvolveram planos de recurso: a nossa retina contém células longas que funcionam como fibras ópticas, conduzindo a luz através dos neurónios até aos fotorreceptores. E os nossos cérebros conseguem preencher os pormenores ausentes nos nossos ângulos mortos. No entanto, há problemas inevitáveis. Por vezes, as nossas retinas descolam-se do tecido subjacente, resultando em cegueira. Isso nunca aconteceria se os neurónios ficassem atrás dos fotorreceptores, mantendo-as ancoradas. Este design mais sensível existe nos olhos dos polvos e das lulas. O polvo não tem ângulos mortos. A sua retina nunca se descola. Isso acontece-nos porque a evolução não segue um plano. Desloca-se em meandros e improvisa.
Por vezes, inverte o sentido da marcha.
Os olhos são tão complexos quanto os seus donos precisam que sejam e, se as suas necessidades diminuírem, o mesmo acontece aos olhos.
A maioria das aves e répteis vê a cor com quatro tipos de fotorreceptores, cada qual com uma opsina sintonizada para uma cor diferente. Mas a maioria dos mamíferos evoluiu a partir de um antepassado nocturno que perdera dois destes cones, presumivelmente porque a visão a cores é menos importante de noite.
Os animais não possuem olhos melhores do que precisam e perdem-nos rapidamente quando já não precisam deles porque desperdiçar energia num sistema sensorial inútil é uma receita para a extinção.
A maioria dos mamíferos vê o mundo com uma paleta limitada. Os cães possuem apenas dois cones, um sintonizado para o azul e outro para o vermelho. Os primeiros primatas inverteram esta perda, voltando a desenvolver um cone sensível ao vermelho. Isso abriu os olhos dos nossos antepassados a um mundo de vermelhos e laranjas, anteriormente invisível, que poderá tê-los ajudado a distinguir os frutos maduros dos restantes. Os mamíferos marinhos seguiram outra via, prescindindo do cone azul quando se tornaram aquáticos. Muitas baleias perderam também o cone vermelho. Possuem apenas fotorreceptores em forma de bastão (bastonetes), excelentes para a escuridão do oceano, mas inúteis para ver cor.
Quando as vantagens da visão se vão reduzindo, alguns animais perdem os olhos por completo. O tetra-cego excedeu-se nesta matéria. No Plistocénico, alguns destes pequenos peixes de água doce nadaram até ao interior de grutas profundas. Os olhos tinham escassa utilidade na escuridão e os seus descendentes evoluíram e transformaram-se em diferentes populações de peixes cegos cavernícolas, criaturas brancas e rosadas, nas quais uma prega cobre a antiga posição dos olhos. Esta degenerescência ocorre porque os olhos exigem muita energia de manutenção.
Os animais não possuem olhos melhores do que precisam e perdem-nos rapidamente quando já não precisam deles porque desperdiçar energia num sistema sensorial inútil é uma receita para a extinção. Os olhos testemunham a incessante criatividade da evolução e o seu realismo implacável.
O olho esquerdo desta lula, aponta para cima, tem o dobro do tamanho do olho direito para melhor detectar presas entre a luz e a coluna de água. O olho mais pequeno, não visível, aponta para a escuridão abaixo, detectando presas e predadores bioluminescentes.
Na Universidade de Maryland, Tom Cronin espreita para o interior de um aquário e dois olhos compostos protuberantes retribuem a mirada. O “Senhor Googles” é um animal lindo, adornado com um casaco caleidoscópico em tons de pêssego, branco, verde e vermelho. É um estomatópode. Pertence a um grupo de crustáceos com patas vigorosas e protuberantes sob a cabeça, fazendo lembrar um louva-a-deus. Os braços do animal possuem, nas extremidades, martelos formidáveis capazes de se esticar com tal força e velocidade que podem partir conchas e vidro de aquários.
Os olhos do estomatópode têm três regiões separadas que se focam na mesma faixa estreita de espaço, proporcionando percepção de profundidade sem necessidade do outro olho. Também assimilam regiões ultravioletas do espectro e luz polarizada. E enquanto nós possuímos três tipos de receptores de cor nas nossas retinas, Tom descobriu que os estomatópodes têm 12, cada uma sintonizada para uma cor diferente. “Não fazia sentido. Nada daquilo fazia sentido”, recorda.
Para que servem então todos aqueles receptores? A investigadora suspeita que estão relacionados com as façanhas pugilísticas do animal
Durante anos, os cientistas partiram do princípio de que, com todos aqueles receptores, o estomatópode deveria detectar diferenças mínimas entre tonalidades. Hanne Thoen, da Universidade de Queensland, destruiu essa ideia em 2013. Ela mostrou fibras ópticas de diferentes cores nos estomatópodes, recompensando-os com alimento se atacassem uma em particular. Depois, juntou mais as cores até os animais já não conseguirem discriminá-las. Os resultados foram péssimos: nem sequer conseguiam distinguir cores cujas diferenças eram óbvias para nós.
Para que servem então todos aqueles receptores? A investigadora suspeita que estão relacionados com as façanhas pugilísticas do animal.
A retina processa dados visuais, acrescentando e subtraindo informação nos nossos cones antes de enviá-la para o cérebro. Talvez o estomatópode transmita as respostas dos 12 receptores de cor directamente para o cérebro, que compara os dados brutos com algum tipo de paleta de cores. Embora o estomatópode não esteja apto a distinguir cores, este sistema poderá torná-lo soberbo no reconhecimento de cores, o que, por sua vez, ajudá-lo-á a tomar decisões rápidas para golpear.
Tom Cronin ainda não está convencido. De volta ao laboratório, balouça uma pipeta sobre uma caixa de Petri contendo um estomatópode mais pequeno, com escassos centímetros de. Ele acompanha o objecto com os olhos e depois ataca. O golpe é suficientemente forte para produzir um som audível. “Viram como ele demorou a pensar antes de atacar. Não tomou uma decisão súbita”, diz. “Mas para que serve tudo aquilo?”
Este cubozoário mede apenas dez milímetros de diâmetro, mas possui 24 olhos alojados em quatro ropálios. Quatro dos seis olhos de cada ropálio são simples fotossensores,mas dois possuem lentes para focagem da luz. Um peso de cristal flutuante, mantém a lente apontada para cima, procurando as copas do mangue, que indicam a presença de alimento e abrigo.
É a questão que Dan-Eric Nilsson também coloca. Não é suficiente conhecer a estrutura dos olhos do estomatópode, os genes activados no interior ou os sinais neurológicos por eles enviados para o cérebro. Em última análise, para compreendermos porque são como são, precisamos de saber como são utilizados. Esta é a derradeira verdade sobre os olhos dos animais: só conseguimos compreender a sua evolução quando aprendemos a ver o mundo através deles.
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