Imaginemos o planeta sem vírus.

Com uma varinha mágica, fazemo-los desaparecer. O vírus da raiva desaparece de repente. O vírus da poliomielite desaparece. O letal vírus do Ébola desaparece. O vírus do sarampo, o vírus da papeira e várias gripes deixam de existir. Há uma enorme diminuição do sofrimento e da morte humana. O VIH desaparece de repente e, por isso, a catástrofe da Sida nunca aconteceu. O Nipah e o Hendra, o Machupo e o Sin Nombre deixam de existir e os registos de caos nunca aconteceram. A dengue? Desapareceu. Todos os rotavírus desaparecem: uma enorme bênção para as centenas de milhares de crianças em países menos desenvolvidos cuja morte é causada por eles todos os anos. O vírus da Zika? Desapareceu. O vírus da febre-amarela? Desapareceu. A herpes B, que contagia alguns símios e é frequentemente transmitida aos seres humanos? Desapareceu. Já ninguém tem varicela, hepatite, zona ou até a constipação comum. A varíola? Esse vírus foi erradicado na natureza em 1977, mas agora desaparece dos congeladores de alta segurança onde as últimas e assustadoras amostras foram armazenadas. O vírus SARS de 2003, o sinal de alarme que sabemos agora ter assinalado o início da actual época pandémica? Deixou de existir. E, como é óbvio, o nefasto vírus SARS-CoV-2, causador da COVID-19, com os seus efeitos tão surpreendentemente variados, tão complicado, tão perigoso, tão transmissível, desapareceu. Já se sente melhor?

As coisas não são tão simples.


Este cenário é mais equívoco do que parece. De facto, vivemos num mundo de vírus inimaginavelmente abundantes e diversificados. Só nos oceanos poderá haver mais partículas virais do que estrelas observáveis nos céus. Os mamíferos podem ser portadores de um mínimo de 320 mil espécies de vírus diferentes.

Quando lhes somamos os vírus que infectam animais não-mamíferos, plantas, bactérias terrestres e todos os outros possíveis hospedeiros, o total é incalculável.

Além dos números, existem grandes consequências: muitos vírus trazem vantagens adaptativas à vida na Terra, incluindo à vida humana. Não poderíamos prosseguir sem eles. Não teríamos emergido do lodo primordial sem eles. Há duas secções de DNA com origem em vírus que residem actualmente no genoma dos seres humanos e de outros primatas, sem os quais a gravidez seria impossível. Aninhado entre os genes dos animais terrestres, existe DNA viral que ajuda a embalar e armazenar as memórias em minúsculas bolhas de proteína. Outros genes ainda, adoptados de vírus, contribuem para o desenvolvimento dos embriões, para a regulação do sistema imunitário e para a resistência ao cancro, efeitos importantes que só agora começam a ser conhecidos. Na verdade, os vírus desempenharam papéis essenciais na fase inicial das grandes transições evolutivas. Se eliminássemos todos os vírus, como na nossa especulação inicial, a enorme diversidade biológica que agracia a vida no nosso planeta, desabaria como uma belíssima casa de madeira da qual todos os pregos fossem abruptamente retirados.

vírus

O nosso mundo viral. As células são alicerces da vida, mas os vírus, com toda a sua diversidade genética, podem partilhar esse papel. Os primeiros vírus e células do nosso planeta evoluíram provavelmente numa relação simbiótica de predador e presa. As provas existentes sugerem mesmo que os vírus talvez começassem por ser células, mas perderam a sua autonomia à medida que foram evoluindo para prosperarem como parasitas de outras células. Esta relação de dependência deu início a uma longa história de co-evolução. Vivendo nas células, os vírus obrigaram os hospedeiros a adaptar-se e essas alterações obrigaram os vírus a adaptar-se, num ciclo interminável de tentativas de superação mútua. Clique na imagem para ver detalhes.

Um vírus é como um parasita, mas, por vezes, esse parasitismo assemelha-se mais a uma simbiose, uma dependência recíproca que beneficia o visitante e o hospedeiro. Tal como o fogo, os vírus são um fenómeno nem sempre exclusivamente bom ou mau: podem trazer vantagens, ou causar destruição. Depende do vírus, da situação, do nosso ponto de referência. São os anjos negros da evolução, formidáveis e terríveis. É isso que os torna tão interessantes.

O fluxo de genes virais para os genomas celulares tem sido “impressionante”, dizem os cientistas, e poderá ajudar a explicar algumas grandes transições evolutivas, como a origem do DNA, do núcleo e das paredes celulares e até a separação dos três grandes domínios da vida.

Para avaliarmos a diversidade dos vírus, temos de começar pelos fundamentos daquilo que são e daquilo que não são. É mais fácil dizer aquilo que não são. Não são células vivas. Uma célula, do tipo que se agrupa em grande número para formar o corpo do leitor, ou o meu, ou o corpo de um polvo, contém maquinaria avançada para construir proteínas, produzir energia e executar outras funções especializadas. Varia consoante a célula em questão pertença a um músculo, a um xilema ou a um neurónio. As bactérias também são células e têm atributos semelhantes, embora muito mais simples. Um vírus não é nada disto.


A simples tarefa de dizer o que é um vírus tem sido tão complicada que as definições mudaram ao longo dos últimos 120 anos. Em 1898, o botânico holandês Martinus Beijerinck, que estudou o vírus do mosaico do tabaco, conjecturou que se tratava de um líquido infeccioso. Durante algum tempo, a definição de vírus pautou-se maioritariamente pelo seu tamanho: mais pequeno do que uma bactéria, mas, à semelhança desta, capaz de provocar doenças. Mais tarde, pensou-se que os vírus seriam agentes submicroscópicos, contendo apenas um minúsculo genoma, que se reproduzia no interior de células vivas. Hoje sabemos que isso foi apenas o primeiro passo para os perceber melhor.

“Vou defender um ponto de vista paradoxal, nomeadamente que os vírus são vírus”, escreveu o biólogo francês André Lwoff em “The Concept of Virus”, um influente ensaio publicado em 1957. Não foi muito útil enquanto definição, mas serviu de aviso, dizendo, de outra forma, que “são singulares”. Estava somente a pigarrear, limpando a voz antes de se lançar numa complexa disquisição.

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André Lwoff sabia que os vírus são mais fáceis de descrever do que propriamente de definir. Cada partícula viral é composta por um conjunto de instruções genéticas (escritas em DNA, ou nessa outra molécula capaz de conter informação, o RNA), embaladas numa cápsula proteica (conhecida como cápside). Em alguns casos, o cápside encontra-se rodeado de um envelope membranoso (semelhante ao caramelo de uma maçã caramelizada), que o protege e o ajuda a ligar-se a uma célula. Um vírus só consegue copiar-se a si mesmo depois de entrar numa célula e controlar a maquinaria de impressão tridimensional que transforma a informação genética em proteínas.

Se a célula hospedeira não tiver sorte, serão fabricadas muitas novas partículas virais, que irrompem, deixando a célula destruída. Esse tipo de danos (como os provocados pelo SARS-CoV-2 nas células epiteliais das vias respiratórias humanas) é parte da forma como um vírus se torna patogénico.

No entanto, se a célula hospedeira tiver sorte, talvez o vírus se limite a instalar-se neste confortável posto avançado, ficando dormente ou integrando o seu pequeno genoma no genoma do hospedeiro. Aguardará calmamente. Esta segunda possibilidade tem muitas implicações para a mistura de genomas, para a evolução, até para a nossa noção de identidade enquanto seres humanos.


Num popular livro publicado em 1983, o biólogo britânico Peter Medawar e a sua mulher, Jean, asseveravam: “Não conhecemos nenhum vírus que faça bem. Alguém disse em tempos, e muito bem, que um vírus é ‘uma má notícia embrulhada em proteína’”. Estavam errados.

contar vírus

Como contar os vírus. Para contarmos os vírus existentes no Habitat de Recifes Tropicais e Jardim de Corais Moles do Aquário do Pacífico, pedimos ajuda a Alexandra Rae Santora, uma doutoranda que trabalha com Jed Fuhrman, docente da Universidade do Sul da Califórnia. Alexandra introduziu a amostra num filtro de 0,02 micrómetros que capta bactérias e vírus, utilizando um corante que se fixa no DNA para os tornar visíveis sob um microscópio de epifluorescência. Os organismos maiores são bactérias e os pontos são vírus. Com uma grelha de contagem, a cientista determinou o número de vírus no campo visual. Tendo em conta a dimensão do filtro e volume de água, foi-lhe possível calcular a população por litro. Fotografia: Alexandra Rae Santora

Muitos outros cientistas dessa época também erraram, mas esse ponto de vista continua a ser aceite, e compreensivelmente, por qualquer pessoa cujo conhecimento dos vírus seja limitado a notícias tão más como a gripe e a COVID-19. Hoje em dia, porém, sabemos que alguns vírus fazem bem. Aquilo que está embrulhado na proteína é uma remessa genética que poderá originar bons ou maus resultados.

De onde vieram os primeiros vírus? Esta pergunta obriga-nos a olhar de relance para o passado, fixando-nos há quase quatro mil milhões de anos, num tempo em que a vida na Terra estava a emergir de um caldo rudimentar de moléculas longas, compostos orgânicos mais simples e energia.

Digamos que algumas das moléculas longas (provavelmente RNA) começaram a replicar-se. A selecção natural darwiniana deve ter começado aqui, quando estas moléculas (os primeiros genomas) se reproduziram, entraram em mutação e evoluíram. Em busca de vantagem competitiva, algumas podem ter encontrado ou criado protecção no interior de membranas e paredes, dando assim origem às primeiras células.

Essas células multiplicaram-se por fissão, dividindo-se em duas. Dividiram-se também num sentido mais abrangente, divergindo entre si de maneira a transformarem-se em Bacteria e Archaea, dois dos três domínios da vida celular. O terceiro, Eukarya, surgiu algum tempo mais tarde. Inclui-nos a nós e a todas as outras criaturas (animais, plantas, fungos e alguns micróbios) constituídos por células com anatomia interna complexa. Estes são os três grandes ramos da árvore da vida, tal como se apresenta actualmente.

vírus

Esta fatia da reconstituição do SARS-CoV-2 a partir de tomografia crio-electrónica mostra que os espigões formam ângulos estranhos. Estes espigões têm três articulações (anca, joelho e tornozelo) que lhes permitem mudar de posição, talvez para aumentar a probabilidade de se fixarem numa célula. Por cortesia de Beata Turoňová e Martin Beck, Laboratório Europeu de Biologia Molecular

Onde encaixam, então, os vírus nesta narrativa? Serão um quarto grande ramo? Ou uma espécie de visco, um parasita vindo de outro sítio? A maioria das versões da árvore omitem os vírus por completo.

Segundo uma escola de pensamento, os vírus não deveriam estar incluídos na árvore da vida porque não estão vivos. É um argumento persistente, dependendo daquilo que consideramos “estar vivo”. Para mim, o mais intrigante é incluir os vírus na grande tenda a que chamamos Vida e depois interrogarmo-nos sobre como lá entraram.


Há três grandes hipóteses explicativas das origens evolutivas dos vírus, conhecidas pelos cientistas como "Virus-first" (vírus antes das células), Escape e Redução. Segundo a hipótese do "Virus-first", os vírus surgiram antes das células, compondo-se de alguma forma a partir desse caldo primordial. Segundo a hipótese do Escape, houve genes, ou pedaços de genomas, que escaparam das células, ficaram encapsulados em cápsides de proteína e fugiram ao controlo, descobrindo um novo nicho enquanto parasitas.

Segundo a hipótese da redução, os vírus surgiram quando algumas células diminuíram de tamanho devido à pressão competitiva (uma vez que é mais fácil replicar-se quando se é mais pequeno e simples), perdendo genes até ficarem reduzidos a um minimalismo tal que só conseguiam sobreviver parasitando células.

Existe uma quarta variante, conhecida como hipótese quimérica, inspirada noutra categoria de elementos genéticos: os transposões (por vezes designados por genes saltadores). A geneticista Barbara McClintock deduziu a sua existência em 1948 e essa descoberta valeu-lhe a atribuição de um Prémio Nobel. Estes elementos oportunistas alcançam o seu sucesso darwiniano saltando, simplesmente, de uma parte de uma genoma para outra, em casos raros de uma célula para outra e até de uma espécie para outra, utilizando recursos celulares para se copiarem sucessivamente. A autocópia protege-os da extinção acidental. Acumulam-se de forma invulgar. Constituem cerca de metade do genoma humano. De acordo com esta teoria, os primeiros vírus poderão ter surgido de tais elementos, pedindo emprestadas proteínas celulares para revestirem a sua nudez com cápsides protectores, uma estratégia mais complexa.

Todas estas hipóteses têm mérito. Em 2003, novas provas fizeram as opiniões dos especialistas tender para a redução: os vírus gigantes.

Vírus gigante foi descoberto no interior de amebas, que são eucariotas unicelulares. Estas amebas foram recolhidas em água captada numa torre de arrefecimento em Bradford, em Inglaterra. No interior, havia uma bolha misteriosa. Era suficientemente grande para ser observada com um microscópio óptico (supostamente, os vírus são demasiado pequenos para tal, sendo visíveis apenas através de um microscópio electrónico), e parecia uma bactéria. Os cientistas tentaram detectar genes bacterianos neles contidos, mas não encontraram nenhum.

Por fim, uma equipa de investigadores da cidade francesa de Marselha, convidou o vírus a infectar outras amebas, sequenciou o seu genoma, reconheceu-o e chamou-lhe Mimivirus, porque imitava as bactérias, pelo menos em tamanho. Em termos de diâmetro, era enorme, maior do que a mais pequena das bactérias. O seu genoma 1,2 milhões de letras de comprimento, comparado por exemplo, com as 13 mil do vírus da gripe ou as 194 mil da varíola. À semelhança do RNA, o DNA é uma molécula longa, constituída por quatro bases moleculares diferentes, que os cientistas abreviam usando as primeiras letras. Tratava-se de um vírus “impossível”: de natureza viral, mas demasiado grande em termos de escala, como uma borboleta amazónica recém-descoberta, com um metro de envergadura de asas.

Jean-Michel Claverie era então um membro sénior dessa equipa marselhesa. A descoberta do Mimivirus “causou muitos problemas”, contou-me. A sequenciação revelou quatro genes bastante inesperados – genes para codificar enzimas que se presumia serem unicamente celulares e nunca dantes vistos num vírus. Estas enzimas, explicou Jean-Michel, encontram-se entre os componentes que traduzem o código genético de modo a formarem proteínas a partir de aminoácidos.

“Por isso, surgiu a pergunta: ‘Para que precisa um vírus daquelas enzimas sofisticadas, normalmente activas em células, se tem a célula ao seu dispor?’”

De facto, qual é a necessidade? A inferência lógica é que o Mimivirus as conserva porque a sua linhagem teve origem na redução do genoma de uma célula.

Mimivirus não era fruto do acaso. Vírus gigantes semelhantes não tardaram a ser detectados no mar dos Sargaços e o nome inicial tornou-se um género, Mimivirus, incluindo agora vários gigantes.

Depois, a equipa de Marselha descobriu outros dois gigantes (mais uma vez, parasitas de amebas): um colhido em sedimentos marinhos de baixa profundidade, ao largo da costa do Chile, o outro numa lagoa na Austrália. Com o dobro do tamanho do Mimivirus, ainda mais anómalos, foram atribuídos a um género diferente, ao qual Jean-Michel Claverie e os seus colegas chamaram Pandoravirus, numa evocação da caixa de Pandora mitológica, como explicaram em 2013, devido “às surpresas que esperavam encontrar a partir do seu estudo aprofundado”.

vírus SARS-CoV-2

Um modelo molecular com resolução atómica mostra as proteínas que compõem o espigão, com cadeias idênticas mostradas a vermelho, laranja e amarelo, as quais, por sua vez, estão protegidas por cadeias de glicanos (moléculas semelhantes a açúcar tingidas de azul) que escondem o espigão dos anticorpos humanos que poderiam destruí-lo. A compreensão da estrutura do espigão é fundamental para a eficácia das vacinas. Mateusz Sikora, Instituto Max Planck de Biofísica

O co-autor sénior do ensaio foi Chantal Abergel, virologista e bióloga estrutural (bem como esposa de Jean-Michel). Referindo-se ao Pandoravirus, Chantal disse-me, com uma gargalhada cansada: “Traziam grandes desafios. Eram os meus bebés.” Explicou-me como fora difícil dizer o que eram aquelas criaturas – tão diferentes das células, tão diferentes dos vírus clássicos, contendo tantos genes em nada parecidos com qualquer coisa antes vista. “Tudo aquilo torna-os fascinantes, mas também misteriosos.” Durante algum tempo, chamou-lhes NLF: new life-form [novas formas de vida]. Contudo, ao observar que não se replicavam por fissão, Chantal e os colegas aperceberam-se de que eram vírus. Os maiores e mais desconcertantes encontrados até à data. Estas descobertas sugeriram ao grupo de Marselha uma variante ousada da hipótese da redução. Talvez os vírus tivessem origem na redução de células ancestrais, mas células de um tipo que já não existe na Terra. Este tipo de “protocélula” ancestral talvez fosse diferente do antepassado universal comum a todas as células actualmente conhecidas e tivesse competido com ele. Talvez estas protocélulas saíssem derrotadas dessa competição e fossem excluídas de todos os nichos disponíveis para as formas de vida independentes. Poderão ter sobrevivido como parasitas noutras células, reduzindo os seus genomas e transformando-se naquilo a que chamamos vírus. Desse reino celular desaparecido, talvez restem apenas os vírus, como as cabeças de pedra gigantes da ilha da Páscoa.

A descoberta dos vírus gigantes serviu de inspiração a outros cientistas, em especial Patrick Forterre, do Instituto Pasteur em Paris, que formularam novas ideias sobre o que são os vírus e quais os papéis cons-trutivos que representaram e continuam a representar na evolução e funções da vida celular.

Patrick argumentou que as definições anteriores de “vírus” eram inadequadas porque os cientistas confundiam as partículas virais (pedaços de genoma envoltos em cápsides, devidamente conhecidos como viriões) com a totalidade de um vírus. No seu entender, isso estava tão errado como confundir uma semente com uma planta ou um esporo com um cogumelo. O virião é apenas o mecanismo de dispersão, afirmou. A totalidade do vírus também inclui a sua presença numa célula, assim que assume o controlo da maquinaria celular para replicar mais viriões: mais sementes suas. Ver as duas fases juntas é ver que a célula se tornou efectivamente parte da história da vida do vírus.

Patrick Forterre reforçou essa ideia inventando um novo nome para a entidade conjunta: virocélula. Esta ideia também resolvia o enigma do vivo-ou-não-vivo. Segundo o investigador, um vírus está vivo quando é uma virocélula, apesar de os seus viriões serem inanimados.

“A ideia subjacente ao conceito da virocélula era sobretudo centrar-me nesta fase intracelular”, disse-me numa videochamada a partir de Paris. Trata-se da fase delicada em que a célula infectada, tal como um zombie, obedece às instruções do vírus, lendo o genoma viral e replicando-o, mas nem sempre sem falhas, tropeções e erros. Durante esse processo, “novos genes podem surgir de um genoma viral. E eu considero isto muito importante”, acrescentou Patrick.

Os vírus trazem inovação, mas as células reagem com as suas próprias inovações defensivas, como a parede celular ou o núcleo, numa corrida rumo a maior complexidade. Muitos cientistas presumiram que os vírus alcançaram as suas principais alterações evolutivas através do paradigma do “vírus carteirista”, roubando DNA a um e outro organismo infectado para, em seguida, usarem as peças roubadas no genoma viral. Patrick Forterre argumenta que o roubo pode, com mais frequência, acontecer ao contrário e serem as células que roubam genes aos vírus.

Uma visão ainda mais arrebatadora, partilhada por Patrick, Jean-Michel e outros cientistas da área, incluindo Gustavo Caetano-Anollés da Universidade de Illinois, defende que os vírus são a mais importante fonte de diversidade genética. Segundo esta linha de raciocínio, os vírus enriqueceram as opções evolutivas das criaturas celulares ao longo dos últimos milhares de milhões de anos, depositando novo material genético nos seus genomas. Este processo bizarro é uma versão de um fenómeno conhecido como transferência horizontal de genes: genes fluindo lateralmente e atravessando fronteiras entre diferentes linhagens. A transferência vertical de genes é a forma hereditária mais comum: dos progenitores para os seus descendentes.

O fluxo de genes virais para os genomas celulares tem sido “impressionante”, argumentaram Patrick Forterre e um co-autor num artigo recente. Essa cicunstância pode ajudar a explicar algumas grandes transições evolutivas, como a origem do DNA, a origem do núcleo celular nas criaturas complexas, a origem das paredes celulares e possivelmente a divergência daqueles três grandes ramos da árvore da vida.

Antes da pandemia, as discussões interessantes com cientistas, por vezes, realizavam-se em contactos directos, face a face. Há três anos, voei de Montana nos Estados Unidos para Paris porque queria conversar com um homem sobre um vírus e um gene. Esse homem era Thierry Heidmann e o gene chamava-se sincitina-2. Thierry e o seu grupo descobriram-no, examinando o genoma humano em busca de pedaços de DNA que parecessem o tipo de gene que um vírus usaria para produzir o seu envelope. Encontraram cerca de vinte.

“Dois deles, pelo menos, revelaram-se muito importantes”, disse-me. Eram importantes porque tinham capacidade para desempenhar funções essenciais à gravidez humana. Eram o sincitina-1, descoberto por outros cientistas, e o sincitina-2, descoberto pelo grupo de Thierry Heidmann. A forma como estes genes virais se tornaram parte do genoma humano e os fins para os quais se adaptaram são pormenores de uma história impressionante que começa com o conceito dos retrovírus endógenos humanos.

Um retrovírus é um vírus com um genoma de RNA que funciona numa direcção oposta à habitual (daí o retro). Em vez de utilizarem DNA para fabricar RNA, que por sua vez actua como mensageiro enviado à impressora 3D para fabricar proteínas, estes vírus utilizam o seu RNA para fazer DNA e depois integram-no no genoma da célula infectada. O VIH, por exemplo, é um retrovírus que infecta as células imunitárias humanas, inserindo o seu genoma no genoma da célula, onde permanece latente. Em determinado momento, o DNA viral é activado, tornando-se um modelo para a produção de muitos mais viriões de VIH, que matam a célula à medida que dela irrompem. Eis a grande reviravolta: alguns retrovírus infectam as células reprodutoras (as células que produzem os óvulos ou o esperma) e, ao fazê-lo, inserem o seu DNA no genoma hereditário do hospedeiro. Estas secções inseridas são retrovírus “endógenos” (interiorizados) e, quando incorporadas em genomas humanos, são conhecidas como retrovírus endógenos humanos (HERV). Se não se lembrarem de mais nada deste artigo, talvez seja bom os leitores recordarem o seguinte: 8% do genoma humano é constituído por este DNA viral, incorporado na nossa linhagem por meio de retrovírus, ao longo da evolução. Cada um de nós é 1/12 HERV. O gene sincitina-2 é um dos mais importantes dessas secções.

Estive quatro horas no gabinete de Thierry Heidmann enquanto ele me explicava a origem e as funções deste gene específico, com o computador ao lado para me mostrar tabelas e gráficos. A essência é quase simples. Um gene que originalmente ajudou um vírus a fundir-se com células hospedeiras conseguiu entrar no genoma de animais ancestrais. Depois, foi reformulado para gerar uma proteína semelhante, que ajuda a fundir as células de modo a criar uma estrutura especial em redor daquilo que viria a ser a placenta, criando assim uma nova possibilidade para alguns animais: a gravidez interna. Essa inovação foi muito importante para a história evolutiva, permitindo que as fêmeas transportassem os seus descendentes de um lado para o outro dentro do corpo, em vez de os abandonarem, vulneráveis, num local, como os ovos deixados num ninho.

O primeiro gene deste tipo com origem num retrovírus endógeno acabou por ser substituído por outros, semelhantes, mas mais adequados ao desempenho da função. Ao longo do tempo, a configuração deste novo modo de reprodução melhorou e a placenta evoluiu. Entre estes genes virais adquiridos, encontra-se a sincitina-2, uma de duas sincitinas presentes nos seres humanos que ajuda a fundir células para formar uma camada placentária adjacente ao útero. Essa estrutura singular, funcionando como mediadora entre progenitora e feto, permite a entrada de nutrientes e oxigénio, a saída de resíduos e dióxido de carbono, e, provavelmente, protege o feto de ser atacado pelo sistema imunitário da progenitora. É quase um milagre de eficiência de design, no qual a evolução moldou um componente viral, transformando-o num componente humano.

Fiz uma pausa para almoçar e depois prosseguimos a conversa durante mais duas horas. Por fim, com o cérebro a zumbir e o bloco de notas cheio, perguntei-lhe: o que diz tudo isto sobre o modo como a evolução funciona? Ele riu-se com gosto e eu ri-me também, maravilhado e cansado. “Os nossos genes não são apenas os nossos genes”, resumiu. “Os nossos genes também são genes retrovirais.”

O contributo desses retrovírus, que nos deram a sincitina-2, é apenas um exemplo, entre outros, de padrões grandiosos. Outro é o gene ARC, que se exprime como resposta à actividade neuronal em mamíferos e moscas. É muito parecido com um gene retroviral com código para um cápside proteico. Investigações recentes de várias equipas, incluindo uma liderada por Jason Shepherd, da Universidade de Utah, sugere que o ARC desempenha um papel essencial no armazenamento de informação dentro das redes neurais. Dito de outra maneira: na memória. O ARC parece fazê-lo empacotando informação derivada da experiência (incorporada como RNA) nas pequenas bolsas proteicas que a transportam de um neurónio para outro.

Na Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford, Joanna Wysocka, juntamente com um grupo de colegas, descobriu provas da presença de fragmentos virais produzidos por outro retrovírus endógeno, conhecido como HERV-K, em embriões humanos na fase mais incipiente, que poderão desempenhar um papel positivo na protecção do embrião contra infecções virais, contribuir para o controlo do desenvolvimento fetal – ou ambos. Além disso, o grupo centrou o seu estudo num transposão específico que parece ter-se introduzido no genoma humano como uma espécie de secção de prólogo ao HERV-K e depois descoberto formas de se copiar e saltar para outras partes do genoma, encontrando-se actualmente presente em 697 cópias dispersas. Estas cópias parecem contribuir para a activação de quase 300 genes humanos.

“Para mim, aquilo que é verdadeiramente incrível é que os HERV constituem cerca de 8% do genoma humano”, disse Joanna. Há uma parte do nosso ser que, no essêncial, é “o cemitério de antigas infecções retrovirais”. É ainda mais assombroso ver como, nas palavras da minha interlocutora, “a nossa história de infecções retrovirais passadas continua a moldar a nossa evolução enquanto espécie”.

Se 8% do meu (e do seu) genoma é DNA retroviral e metade deste é composto por transposões, então talvez a própria noção de individualidade humana (muito menos de supremacia humana) seja menos sólida do que costumamos pensar.

A desvantagem óbvia desta agilidade evolutiva é que, por vezes, os vírus podem mudar de hospedeiro, saltando de uma espécie para outra, tornando-se patógenos bem-sucedidos nesse novo e estranho hospedeiro. Chama-se a isso zoonose e é assim que surge a maior parte das novas doenças humanas infecciosas, através de vírus adquiridos de um hospedeiro animal não-humano.

No hospedeiro original (cientificamente conhecido como hospedeiro reservatório), um vírus poderia ter-se comportado sossegadamente, mantendo-se pouco abundante e com pouco impacte, durante milhares de anos. Poderia ter atingido um conforto evolutivo no hospedeiro reservatório, aceitando a sua segurança em troca de não causar problemas. Num novo hospedeiro, porém, como um humano, o acordo prévio não é obrigatoriamente respeitado. O vírus pode irromper abundantemente, provocando desconforto ou sofrimento na vítima. Se, além de replicar-se, o vírus conseguir propagar-se, de ser humano para ser humano, contagiando algumas dezenas de outros indivíduos, teremos um surto. Se contagiar uma comunidade ou um país, teremos uma epidemia. Se der a volta ao mundo, teremos uma pandemia. E assim voltamos ao SARS-CoV-2.

Alguns tipos de vírus têm mais probabilidade de causar pandemias do que outros. Perto do topo da lista dos candidatos mais preocupantes encontram-se os coronavírus, devido à natureza dos seus genomas, à sua capacidade para evoluir e ao seu historial de causar doenças humanas graves, como a SARS (síndrome respiratória aguda grave) em 2002-2003 e a MERS (síndrome respiratória do Médio Oriente) em 2012 e 2015.

Por isso, quando a frase “novo coronavírus” começou a ser usada para descrever o agente que estava a causar trilhos de doença em Wuhan, na China, aquelas duas palavras foram suficientes para que os cientistas de todo o mundo estremecessem.

Os coronavírus pertencem a uma categoria tristemente célebre de vírus, os vírus de RNA de cadeia simples, que incluem as gripes, o Ébola, a raiva, o sarampo, o Nipah, os hantavírus e os retrovírus. A sua má reputação deve-se, em parte, ao facto de um genoma de RNA de cadeia simples ser propenso a mutações frequentes à medida que o vírus se replica e de essas mutações gerarem uma enorme variedade genética aleatória com a qual a selecção natural pode trabalhar.

No entanto, os coronavírus evoluem com relativa lentidão, para vírus de RNA. Têm genomas relativamente longos (o genoma do SARS-CoV-2 tem cerca de 30 mil letras), mas os seus genomas mudam menos velozmente do que outros, por possuírem uma enzima de verificação que corrige as mutações. No entanto, conseguem fazer um truque chamado recombinação, através do qual duas estirpes de coronavírus, infectando a mesma célula, trocam entre si secções dos seus genomas, dando origem a uma terceira estirpe híbrida de coronavírus. Pode ter sido isso que deu origem ao novo coronavírus: o SARS-CoV-2.

O vírus ancestral residiria provavelmente num morcego, possivelmente um morcego-de-ferradura, pertencente a um género de pequenas criaturas insectívoras com focinhos em forma de ferradura que costumam ser portadores de coronavírus. Se tiver ocorrido recombinação, acrescentando alguns novos e fundamentais elementos de um coronavírus diferente, isto poderá ter ocorrido num morcego ou noutro animal. Os pangolins foram uma das espécies sugeridas, mas há mais candidatas. Os cientistas estão a explorar estas e outras possibilidades, sequenciando e comparando genomas dos vírus encontrados em vários potenciais hospedeiros. Até à data, tudo o que sabemos é que o SARS-CoV-2, tal como hoje existe nos seres humanos, é um vírus subtil capaz de continuar a evoluir.

Por conseguinte, os vírus dão e os vírus tiram. Talvez sejam difíceis de enquadrar na árvore da vida porque, afinal de contas, a história da vida não tem a forma de uma árvore. A analogia arbórea é apenas a nossa forma tradicional de ilustrar a evolução, tornada canónica por Charles Darwin. Mas Darwin, por genial que fosse, não sabia nada sobre transferência horizontal de genes. Na verdade, não sabia nada sobre genes. Não sabia nada sobre vírus. Tudo é muito complicado, percebemos agora. Até os vírus, que parecem tão simples à primeira vista, são muito complicados. Se, por um lado, os seres humanos conseguem perceber os vírus em toda a sua complexidade, tendo uma visão mais clara do emaranhado de ligações existentes no mundo natural, por outro, quando reflectem sobre os seus próprios conteúdos virais perdem parte do seu distanciamento sublime. Deixo então aos leitores a tarefa de decidir se isso são vantagens ou desvantagens.