Cinco dias após o parto prematuro da sua bebé no mês passado, num hospital municipal, Talita Alves Araújo Lourenço sentou-se numa cadeira enquanto uma enfermeira a ajudava a tirar o seu leite para um frasco de vidro.
Talita, de 20 anos, dera à luz às 32 semanas. Sabia que poderia ter um parto prematuro porque fora diagnosticada com pré-eclâmpsia. Nos primeiros tempos, a bebé só conseguia beber o leite através de um tubo, mas, mesmo depois de ganhar a força e a coordenação necessárias para mamar, Talita produzia demasiado leite. A enfermeira estava a ajudá-la a esvaziar a mama para ela ficar mais confortável e doar o leite em excesso.
“Saber que o meu leite pode salvar alguém é muito importante para mim”, diz Talita.
Embora a actual escassez de leite infantil, que começou em Fevereiro de 2022, tenha afectado famílias com bebés que não conseguiam encontrar leite nas lojas, também serviu para renovar o interesse na doação de leite materno a bancos de leite, que o fornecem a hospitais com recém-nascidos vulneráveis.
O Brasil é considerado o maior exemplo do mundo em matéria de bancos de leite devido a um programa iniciado na década de 1980 que alia a promoção e a formação em aleitamento materno à doação. Actualmente, o país gere 228 dos aproximadamente 750 bancos de leite humano do mundo. Em comparação, os EUA. têm 28 bancos, que são membros da Associação de Bancos de Leite Humano da América do Norte.
Criar uma relação pelo aleitamento
Já faltavam poucos dias para a filha de Talita ganhar peso suficiente para ter alta do Hospital Municipal Lourenço Jorge – Maternidade Leila Diniz, mas enquanto isso não acontecia, Talita fazia viagens de ida e volta desde sua casa, a 30 minutos de distância, para passar tempo com a filha e amamentá-la. O hospital tem uma sala do Método Canguru, na qual as mães estabelecem uma ligação pele-com-pele, colocando o bebé na posição vertical encostando-o ao peito e amamentando-o. As mães têm acesso a uma cama, refeições e lavandaria. Há um número limitado de vagas para pernoitas no hospital.
Uma jovem mãe com o seu bebé ao colo no hospital do Instituto Fernandes Figueira hospital, no Rio de Janeiro. O rapaz, nascido com baixo peso, é alimentado com o leite da sua mãe e outros leites do Banco de Leite Humano do hospital. Fotografia de Marta Nascimento, Rea, Redux.
Em hospitais de todo o mundo, é cada vez mais comum promover-se o aleitamento materno assim que um bebé nasce, mas é muito mais difícil fazê-lo quando os bebés têm problemas de saúde. Muitos sofrem atrasos na introdução do leite materno e as mães não são ensinadas a manter a produção de leite – algo que se evidencia problemático em países onde a qualidade da água torna arriscada a limpeza dos biberões e o leite infantil é demasiado caro para muitas pessoas.
Na sala do Método Canguru, muitas mães que têm mais leite do que necessitam para os seus bebés têm a possibilidade de doá-lo. Mesmo depois de terem alta do hospital, o processo de doação de leite materno é facilitado porque os centros de lactação do hospital enviam colaboradores até casa das doadoras, entregando-lhes frascos de vidro esterilizados e recolhendo-os quando estão cheios. Em seguida, o leite pasteurizado é testado e etiquetado com base em critérios como o valor calórico e a acidez.
O leite de uma mãe é atribuído a um bebé em função das suas necessidades. Os funcionários do hospital escolhem o melhor candidato: por exemplo, se um bebé precisar de ganhar peso, pode receber um leite mais calórico; outro bebé, com níveis baixos de cálcio no sangue, pode beneficiar de um leite com baixa acidez.
“A principal diferença deste modelo, comparado com os de outros países, é o facto de ser apoiado pelo governo e de haver apoio ao aleitamento materno paralelamente ao banco de leite”, diz Danielle Aparecida da Silva, directora técnica da Rede Nacional Brasileira de Bancos de Leite Humano.
Como começou o programa de bancos de leite Brasil
No final da década de 1970, o Brasil tinha um sistema muito semelhante ao dos EUA, no qual o apoio ao aleitamento materno nos hospitais era desenvolvido separadamente da recolha de leite. Nessa altura, João Aprígio Guerra de Almeida era um jovem investigador de biomedicina em busca de métodos de recolher e preservar leite materno. Foi ele que descobriu que os processos utilizados pelos três bancos de leite do país tinham graves problemas de controlo de qualidade.
Uma enfermeira ajuda uma mulher a tirar o seu leite para um frasco, que será posteriormente usado pelo Banco de Leite Humano do hospital do Instituto Fernandes Figueira, no Rio de Janeiro, para alimentar bebés necessitados. O programa de bancos de leite materno do Brasil conquistou reconhecimento internacional. Fotografia de Marta Nascimento, Rea, Redux.
Naquela época, havia um grande esforço no sentido de aumentar o aleitamento materno e Almeida não tardou a ser incumbido de desenvolver o programa de bancos de leite do país. Em 1986, criou um novo modelo. Primeiro, era importante que o leite fosse fornecido apenas através de doação, para que as lactantes não fossem encorajadas a negligenciar os seus próprios bebés. E, para assegurar um fornecimento regular, fazia todo o sentido associar a promoção do aleitamento materno à colecta do leite.
Além disso, Almeida descobriu que o maior custo da gestão e um banco de leite, cerca de 85 por cento, era a compra de produtos de vidro de qualidade médica para armazenar o leite. Passou então a reutilizar recipientes alimentares, como frascos de maionese ou de café, que eram igualmente seguros e podiam ser doados. Em vez de máquinas de pasteurização fabricadas no estrangeiro, começou a utilizar equipamento laboratorial de testes alimentares, que eram mais baratos e podiam igualmente determinar o valor nutricional do leite.
Ao longo do tempo, abriu um número crescente de bancos de leite que adoptaram este novo sistema, e foram anunciados na rádio e na televisão. Antes das salas de amamentação nos locais de trabalho se tornarem mais comuns, os centros instalados em hospitais tornaram-se sítios onde as pessoas podiam armazenar o seu leite para uso posterior depois de o retirarem com uma bomba. Também existiam centros de colecta onde as pessoas podiam entregar o seu leite materno.
Em algumas cidades não havia veículos do Estado suficientes para ir a casa de todas as doadoras, por isso os centros trabalhavam com os bombeiros, que recebiam formação sobre armazenamento seguro do leite. Funcionários do serviço postal foram recrutados para promover o aleitamento materno. Sabiam quem estava à espera de bebé nas suas rotas de distribuição e quem beneficiaria de alguma informação sobre o apoio à lactação.
Entre 1990 e 2015 a taxa de mortalidade infantil do Brasil, de crianças abaixo dos 5 anos, desceu 73 por cento de acordo com o fundo para as crianças das Nações Unidas, ou UNICEF, em parte devido a este programa, mas também a outros esforços para aumentar a imunização e o apoio financeiro a famílias com baixos rendimentos. Embora tenha sido
Frascos de café em vidro reciclado contêm leite materno, congelado e pasteurizado, recolhido de doadoras para ajudar alimentar recém-nascidos vulneráveis. Iniciado na década de 1980, o programa de bancos de leite do Brasil é actualmente um modelo para outros países. Fotografia de Marta Nascimento, Rea/Redux.
renovada, a rede brasileira de bancos de leite humano continua a servir apenas cerca de 60 por cento dos bebés prematuros e com baixo peso à nascença, segundo a Fiocruz, a maior fundação de investigação de ciência biológica do país.
“Se existisse uma bússola ética dos bancos de leite, a seta apontaria para o Brasil”, diz Summer Kelly, presidente da associação de bancos de leite humano da América do norte. “O seu foco incansável no apoio e na protecção da mãe lactante inspira e motiva outros bancos de leite pelo mundo fora”.
Servindo de modelo para outros países
À medida que os bancos de leite brasileiros conquistavam reconhecimento internacional, outros países trabalharam com o Brasil para implementar programas semelhantes. Hoje em dia, a maioria dos países da América do Sul, bem como Cuba, a República Dominicana, Cabo Verde, Moçambique e Angola, criaram bancos de leite seguindo o mesmo modelo.
A PATH, uma organização mundial de saúde, também trabalhou com países como a Índia, a África do Sul, o Vietname e o Quénia para implementar programas de aleitamento materno baseados no programa do Brasil. No Quénia, por exemplo, o primeiro banco de leite humano da África oriental foi instituído como um modelo abrangente e associado ao aleitamento materno, adaptando a abordagem brasileira ao contexto local.
Um funcionário clínico coloca um frasco de vidro cheio de leite materno dentro de um contentor refrigerado, no qual será transportado até ao hospital do Instituto Fernandes Figueira, no Rio de Janeiro. Embora a actual escassez de leite infantil, que começou em Fevereiro de 2022, tenha afectado famílias com bebés que não conseguiam encontrar leite nas lojas, também renovou o interesse na doação do leite materno a bancos de leite que o fornecem a hospitais para alimentar recém-nascidos vulneráveis. Fotografia de Pilar Olivares, Reuters/Redux.
“Quando trabalhamos num país, é esse o modelo que queremos criar com a ajuda dos governos”, diz Kiersten Israel-Ballard, Líder de Equipa do programa Materno-Recém-Nascido, Saúde Infantil e Nutrição da PATH’. “Se a prioridade for o leite doado, mas não estivermos a ajudar a mãe, então não é sustentável. A prioridade deve ser dar apoio ao aleitamento como solução de longo prazo.”
Para Ana Clara Benevenuto Mattos de Andrade, a doação de leite tornou-se algo parecido com uma tradição familiar. Há mais de 20 anos, o seu irmão recém-nascido foi hospitalizado e a sua mãe doou o leite enquanto um centro de lactação a ensinava a alimentá-lo. Quando Andrade descobriu que tinha leite em excesso, após o nascimento do seu próprio filho, decidiu também doá-lo. Há quatro meses que envia biberões para o banco de leite do Núcleo Perinatal do Hospital Universitário Pedro Ernesto Rio de Janeiro todas as semanas.
“Infelizmente, quando os bebés são hospitalizados há mães que não têm dinheiro para ir até ao hospital todos os dias para os alimentar. Esta é a realidade de muitas famílias no Brasil” diz Andrade. “Senti a necessidade de ajudar essas mães e bebés.”
Esta reportagem foi parcialmente financiada pelo Howard G. Buffett Fund for Women Journalists da International Women’s Media Foundation.