Medicina tradicional chinesa

Ervanários da farmácia tradicional Tongrentang, em Chengdu, aviam prescrições de ervas, dividindo as misturas em doses únicas que são dobradas em envelopes de papel. Em casa, os pacientes preparam uma infusão e bebem-na.

Seguro na minha mão um coração quente e pulsante. Com o tamanho de uma bola de ténis, é um globo luminoso de tecido escarlate, cor-de-rosa e branco. 

Consigo sentir as cavidades em contracção e ouço o som dos fluidos que ainda são bombeados. É escorregadio e emite um odor ligeiramente pungente. 

O órgão está vivo, quase oito horas depois de eu ter visto Paul Iaizzo removê-lo de um porco sedado num laboratório instalado numa cave. O órgão foi ligado a tubos simulando artérias e veias e foi--lhe devolvido o batimento com um choque eléctrico. Embora se encontre fora do corpo do porco, o coração mexe-se e contorce-se sozinho, movido por uma força primordial, invisível e inexplicável. Mais do que grotesco, acho-o hipnótico e belo.

O coração do porco ainda bate, em parte porque Paul, professor de cirurgia da Universidade do Minnesota, o tratou com um banho de químicos simulando as componentes químicas da bílis de urso. Trata-se da aplicação científica de uma crença que os curadores chineses põem em prática pelo menos desde o século VIII: a bílis de urso pode fazer bem ao corpo humano.

Os itens não estão à escala. Fotografados na Faculdade de Medicina Tradicional Oriental do Imperador, Santa Monica, Califórnia, e Repositório Nacional de Propriedade de Vida Selvagem, Commerce City, Colorado; Fontes: Robert Newman, Faculdade de Medicina Tradicional Oriental do Imperador; Amy Matecki, Centro Internacional de Medicina Integrada

Na actualidade, ainda existe um mercado robusto de bílis de urso. Na Ásia, criam-se ursos simplesmente para extrair deles a bílis. São mantidos vivos em pequenas jaulas, com cateteres inseridos para drenar os seus fluidos. Os grupos de defesa do bem-estar animal denunciam a prática por ser incontestavelmente desumana. E, contudo, enquanto seguro o coração de porco pulsante e ouço Paul Iaizzo descrever a forma como os químicos que impedem os órgãos de um urso de atrofiar durante a hibernação também podem sustentar órgãos humanos, não consigo deixar de pensar se a bílis de urso poderia ter salvado o coração do meu pai ou se um dia poderá salvar-me a mim ou aos meus filhos.

Poucos temas desencadeiam discussões mais acesas nos círculos de saúde do que a medicina tradicional chinesa. A questão torna-se ainda mais complexa devido ao trabalho de investigadores como Paul Iaizzo e muitos outros que procuram curas tradicionais através da ciência mais avançada e descobrem algumas surpresas interessantes. É a China, com uma das mais antigas acumulações continuadas de observações médicas documentadas, que oferece os maiores tesouros à análise científica.

O registo chinês remonta ao terceiro século antes de Cristo, quando os curadores começaram a analisar o organismo, interpretando as suas funções e descrevendo reacções a vários tratamentos, incluindo poções à base de ervas, massagem e acupunctura. Durante mais de 2.200 anos, gerações sucessivas de académicos deram o seu contributo a esse conhecimento e apuraram-no. O resultado é um cânone de literatura que aborda todo o tipo de problemas de saúde, incluindo constipações, doenças venéreas, paralisia e epilepsia. Este conhecimento encontra-se compilado em livros e manuscritos com títulos tão enigmáticos como “O Clássico do Pulso” (século III), “Prescrições Que Valem Mil Moedas de Ouro” (século VII) e “Segredos Essenciais de Fora da Metrópole” (século VIII).


Medicina tradicional chinesa

Esta versão de 1620 de “O Clássico de Medicina Interna do Imperador Amarelo”, compilado pela primeira vez há 2.100 anos, inclui um mapa de linhas qi e pontos de acupunctura. A acupunctura continua a ser debatida entre os médicos ocidentais, embora muitos concordem que ela é eficaz no tratamento de alguns sintomas. (Fotografado na Biblioteca Nacional de Medicina dos EUA)

A medicina tradicional manteve-se como a principal forma de cuidados de saúde da China até ao início do século XX, quando o último imperador Qing foi derrubado por Sun Yat-sen, médico formado no Ocidente que promoveu a medicina baseada na ciência. Actualmente, os médicos chineses são formados e obtêm as suas licenças segundo as mais avançadas práticas médicas. No entanto, a medicina tradicional chinesa continua a ser uma parte muito activa do sistema estatal de cuidados de saúde. A maioria dos hospitais chineses tem uma enfermaria dedicada a curas ancestrais. Invocando o potencial da medicina tradicional para reduzir custos e apresentar tratamentos inovadores, o presidente Xi Jinping integrou-a na política de saúde nacional. Classificou o século XXI como a nova idade de ouro da medicina tradicional.

Sob o ponto de vista da investigação, poderá perfeitamente ser uma idade de ouro. Cientistas de universidades de renome estão a examinar os alicerces científicos de alguns tratamentos tradicionais para doenças como o cancro, o diabetes e a doença de Parkinson.

A aliança do moderno com o tradicional está também a generalizar-se entre os consumidores de cuidados de saúde. Quando não encontram alívio para as suas maleitas na medicina ocidental, muitos viram-se para tratamentos tradicionais, com destaque para a acupunctura e para o uso de ventosas, uma terapia muscular que envolve sucção e tem o beneplácito de muitos atletas profissionais. A Internet estimulou o crescimento dos remédios à base de ervas, frequentemente mais baratos do que os fármacos de prescrição médica. Um paciente pode informar-se sobre um remédio tradicional na Internet, encomendar as ervas na Amazon e ver vídeos no YouTube sobre a maneira de fazer o preparado em casa.

Também encontrará médicos que condenam a medicina tradicional chinesa como pseudociência e charlatanice, salientando alguma das suas afirmações mais bizarras, como a prática antiga de prescrever bombinhas de fogo-de-artifício para afastar demónios, ou conceitos misteriosos, como uma nebulosa força vital chamada qi (um termo que se traduz por “o vapor que se ergue do arroz”). Outros manifestar-se-ão contra o uso de partes de animais ou alertarão contra os potenciais perigos das fórmulas à base de ervas.

“Raramente se encontra alguém que encare o assunto com objectividade”, diz o historiador da medicina Paul Unschuld. Autoridade em história da medicina chinesa e crítico frequente da maneira como ela é interpretada, Paul reuniu e traduziu centenas de textos médicos antigos e está a trabalhar com uma empresa sino-germânica para estudá-la em busca de ideias para tratar várias doenças, incluindo a epilepsia. “As pessoas costumam ver apenas aquilo que querem e não conseguem examinar na totalidade os seus méritos e falhas”, diz. 

Esbarrei pela primeira vez neste ninho de vespas quando escrevi uma reportagem sobre a caça furtiva de rinocerontes para utilização medicinal dos seus chifres. Segundo fórmulas chinesas antigas, o chifre de rinoceronte pode ser usado para tratar febre e dores de cabeça. No Vietname, encontrei doentes que o utilizavam para tratar ressacas e os efeitos colaterais da quimioterapia. Vários estudos científicos determinaram que o chifre de rinoceronte, que é composto por queratina (a mesma substância das unhas humanas), induz pouco ou nenhum efeito farmacológico discernível quando ingerido. No entanto, alguns doentes que consomem chifre de rinoceronte podem sentir alívio devido ao efeito placebo. Após a publicação desse texto, recebi cartas de leitores condenando furiosamente a medicina chinesa por ser “ignorante” “cruel” e semelhante a “bruxaria”.

Essas críticas não são totalmente desprovidas de fundamentação. As vendas de chifre de rinoceronte na Ásia são um dos principais factores responsáveis pela aniquilação das populações de rinocerontes. Além dos ursos, muitos outros animais são caçados ou criados para consumo de partes do seu corpo.

Em contrapartida, a medicina moderna também tem as suas práticas polémicas. A eficácia de muitos fármacos antidepressivos populares permanece em aberto, com alguns estudos a demonstrarem que são pouco mais eficazes do que placebo. No entanto, estes fármacos são amplamente comercializados e prescritos pelos médicos, gerando milhares de milhões de euros de receitas. Quando comparada com outros exemplos, a indignação ocidental relativamente à medicina tradicional chinesa pode ser mais hipócrita do que… hipocrática.

É nesta matéria que a banha da cobra nos pode dar alguns esclarecimentos. Há muito associada com aldrabice, a banha da cobra refere-se na verdade a uma pomada tradicional chinesa feita com base na gordura da serpente marinha Erabu (Laticauda semifasciata). Os historiadores acreditam que estas pomadas foram introduzidas nos EUA no século XIX por imigrantes chineses que trabalhavam na construção ferroviária e as aplicavam ao tratamento de dores musculares e articulares. A substância adquiriu a sua reputação duvidosa quando vendedores americanos começaram a vender óleo mineral como se fosse banha da cobra chinesa.

Aqui está, porém, o busílis: vários estudos demonstraram que a gordura da serpente-marinha Erabu, ingrediente da composição de alguns remédios tradicionais chineses, contém níveis de ácidos gordos ómega 3 mais elevados do que o salmão. Os ácidos ómega 3 são conhecidos por reduzir a inflamação e o colesterol mau, melhorar a cognição e ajudar a aliviar a depressão. Actualmente, são utilizados em vários produtos do ramo dermatológico. Na década de 2000, cientistas japoneses deram gordura de Erabu a ratos e observaram que a sua capacidade para nadar e descobrir o caminho em labirintos melhorou.


Medicina tradicional chinesa

A equipa de Yung-Chi Cheng em Yale cultivou este fungo no laboratório. Descobriu-se que a espécie encolhe tumores colorrectais em animais. “Os chineses usam ervas há séculos”, diz o investigador. O desafio que se apresenta aos cientistas é descobrir quais as fórmulas que funcionam e porquê.”

“Não deitem fora a água do banho com o bebé”, disse, rindo-se, Yung-Chi Cheng, professor de farmacologia da Faculdade de Medicina de Yale. “As pessoas esquecem-se de que um dos fármacos mais antigos, mais eficazes e cientificamente comprovados veio da medicina tradicional: a aspirina.” Os antigos egípcios usavam folhas de murta para tratar dores e maleitas e Hipócrates, o médico grego do século IV a. C. considerado o pai da medicina ocidental, prescrevia um extracto de casca de salgueiro para as febres. No entanto, só na década de 1800 é que os cientistas europeus descobriram que o ingrediente activo em ambos é o ácido salicílico, sintetizando-o. Actualmente, a aspirina custa poucos cêntimos por dose e é possivelmente o fármaco com melhor relação qualidade-preço do mundo.

“Tudo começou quando as pessoas observaram que a casca de salgueiro era eficaz e começaram a usá-la para tratar a doença”, diz Yung-Chi. “Neste caso, foi a ciência que seguiu a medicina e não o contrário.”

Dificilmente podemos considerar a aspirina como o único caso de um fármaco moderno escondido no meio dos tratamentos tradicionais. Em 1972, ano em que Yung-Chi terminou o seu doutoramento em farmacologia na Universidade de Brown, uma química da República Popular da China chamada Tu Youyou anunciou a descoberta de uma substância antimalárica baseada numa erva medicinal chinesa mencionada numa fórmula do século IV. 

Durante a guerra do Vietname, Tu fora recrutada como colaboradora de um projecto militar secreto para ajudar os soldados do Vietname do Norte a combater a malária. A doença era responsável por cerca de metade das suas mortes. Os investigadores de saúde ocidental também estão a tentar resolver este problema, examinando mais de duzentos mil compostos. Tu interrogou-se se poderia haver uma resposta nos textos médicos clássicos chineses. Testou várias plantas relacionadas com a febre e descobriu um remédio baseado numa planta com uma flor amarela chamada artemísia (Artemisia annua). O fármaco resultante da sua investigação chama-se artemisinina e é-lhe atribuído o salvamento de milhões de vidas. Em 2015, Tu Youyou ganhou o Prémio Nobel da Medicina.

O meu nariz está prestes a enlouquecer ao seguir Yung-Chi Cheng numa visita ao seu laboratório labiríntico em Yale, onde uma equipa analisa as características de uma variedade de ervas para investigar o seu valor medicinal. Sinto odores a pimenta preta, alecrim, cânfora, gengibre, malagueta, canela e outros cheiros que não consigo identificar. Sinto picadas no fundo da garganta. Tenho a sensação de que vou espirrar. Sinto vontade de comer comida tailandesa.

Sobre a secretária, Yung-Chi tem um boneco criado à sua própria imagem. Foi-lhe oferecido pela sua equipa e capta a sua atitude reservada, linha de cabelo a recuar e lóbulos das orelhas grandes que, segundo a tradição chinesa, significam longevidade. Num primeiro contacto, Yung-Chi pode parecer o estereótipo do defensor da medicina tradicional chinesa. Embora viva nos Estados Unidos há cinco décadas, desde que emigrou de Taiwan, ainda se exprime num inglês com sotaque perceptível e, aos 74 anos, faz parte de uma geração de chineses que sente uma ligação profunda a muitas das antigas tradições. “A verdade é que não sei muito sobre medicina chinesa”, confessa. 

Yung-Chi concentrou seriamente a sua investigação no domínio da ciência, desenvolvendo fármacos antivirais para doenças crónicas, como a hepatite B. No entanto, também se interrogou se haveria outras curas, com base em ervas como a artemísia, à espera de serem redescobertas. Agora encontrou uma que poderá ser inovadora no tratamento do cancro. Abre um frasco e entrega-me uma pitada de um pó, uma mistura de quatro ervas a que chama PHY906. 

“Prove”, pede. Ponho um pouco na língua.
É amarga, com um ligeiro sabor a alcaçuz.

Na década de 1990, Yung-Chi Cheng reparou que muitos doentes com cancro interrompiam a quimioterapia devido aos efeitos secundários como diarreia e náuseas graves. Os doentes que completavam a quimioterapia tendiam a viver mais tempo. Yung-Chi ponderou se, controlando a tolerância aos efeitos secundários, não poderia aumentar a esperança de vida. Sabia aliás que a medicina chinesa tinha muitos tratamentos fitoterápicos para a diarreia e as náuseas.

A sua colega Shwu-Huey Liu, especialista em química farmacêutica e fluente em mandarim clássico, pesquisou a grande colecção de textos médicos chineses antigos da biblioteca de Yale. Num livro intitulado “Tratado sobre os Danos do Frio”, impresso em papel de bambu ligeiramente amachucado, ela encontrou uma receita com 1.800 anos para uma mistura da planta huang qin, de raiz de alcaçuz, de peónia e de tâmara chinesa, descrita como tratamento para a “diarreia, dores abdominais e calor escaldante no ânus”.

A equipa começou a experimentar misturas diferentes da fórmula. Nos últimos 20 anos, passaram dos testes com ratinhos para os testes em doentes em tratamento oncológico, supervisionados pelo Instituto Nacional do Cancro dos EUA. Como Yung-Chi esperara, quase todos os doentes tratados com a fórmula fitoterápica experimentaram alívio das náuseas e outras maleitas gastrointestinais, mas também lhes aconteceu outra coisa: os tumores encolheram mais depressa do que os de pacientes que não ingeriram a fórmula.

“Não estava à espera disso”, diz o investigador. “A pergunta agora é: porquê?”

A Johnson & Johnson e a Bristol-Myers Squibb, ambas grandes produtoras de fármacos para tratamento oncológico, também gostariam de saber a resposta. Numa conferência farmacêutica realizada em Filadélfia, ouvi o filho de Yung-Chi Cheng, Peikwen, explicar a representantes destas e de outras grandes empresas farmacêuticas aquilo que se sabe sobre o funcionamento da PHY906. Licenciado pela Universidade de Stanford e com um mestrado, Peikwen, de 43 anos, associou-se ao pai e fundou uma empresa para comercializar a PHY906 e desenvolver outras fitoterapias. Veste um elegante fato cinzento-escuro e a sua fluência em mandarim, terminologia médica e gíria de Silicon Valley capacitam-no para criar uma ponte entre a medicina oriental e a ocidental como representante persuasivo. 

Depois de analisarem tumores em ratinhos tratados com a fórmula, os investigadores repararam num aumento significativo dos macrófagos devoradores de tumores, as células dos glóbulos brancos que engolem as células cancerígenas. A forma como as ervas interagem parece ser o segredo.
“É ali que está o segredo”, diz Peikwen. “A PHY906 é um cocktail de químicos à semelhança dos cocktails de fármacos que se revelaram eficazes no tratamento da Sida. Estamos apenas a desvendar a fórmula original e a reconstituí-la, criando uma terapia moderna e de base científica.

Até à data, a PHY906 foi utilizada em oito testes com seres humanos, juntamente com diferentes tratamentos de quimioterapia e radioterapia para tratar cancros colorrectais, hepáticos e pancreáticos, diz Peikwen a um auditório. “Temos esperanças de que a PHY906 se torne o primeiro fármaco multiervas aprovado pela FDA.” Pouco depois, vários representantes da indústria farmacêutica quiseram falar com ele em privado.

Peikwen e eu aventuramo-nos ao interior da China num moderno comboio-bala. A viagem é muito suave, como se flutuássemos sobre os carris. Entretanto, a China antiga passa por nós a correr, uma manta de retalhos interminável sob o céu cinzento do Inverno. Peikwen aceitou deixar-me visitar a fonte das suas ervas, desde que eu não mencionasse os nomes completos dos agricultores, nem as suas localizações, considerados informação confidencial por si e pelo pai, bem como da empresa associada, uma farmacêutica de Taiwan chamada Sun Ten. 


Posso dizer que esta região da China é plana como o tampo de uma mesa, com campos organizados em socalcos até perder de vista. No entanto, no meio do trigo, arroz e colza, há lotes com ervas tratados por milhares de agricultores. À medida que o apetite global por remédios à base de ervas aumentou, os agricultores chineses dedicaram quantidades crescentes de solo a centenas de espécies de plantas medicinais. Em 2017, a indústria das ervas medicinais gerou receitas no valor de cerca de 22 mil milhões de euros.

A produção de ervas com qualidade medicinal é extraordinariamente difícil. A potência química de cada erva pode variar bastante, dependendo de múltiplos factores, desde os minerais presentes no solo à altitude a que é cultivada, ao momento e ao modo como é colhida. E depois existe toda a questão das subespécies que podem parecer iguais, mas têm composições químicas ligeiramente diferentes.

Se fizer perguntas a um fumador de canabis sobre a potência de diferentes variedades de marijuana, ele fará uma palestra. Ou se as fizer a um cultivador de café, ouvirá que os grãos de Arábica cultivados em certa região da Etiópia podem ter seis vezes mais cafeína do que os cultivados noutra zona do país. E dependendo da maneira como forem moídos e de como for preparada a infusão, os mesmos grãos podem fornecer diferentes quantidades de cafeína.

É em parte devido a estas complicações que a Autoridade do Medicamento norte-americana só aprovou dois fármacos à base de ervas: um tratamento para verrugas genitais à base de extracto de chá verde e um remédio para a diarreia feito a partir da seiva do dragoeiro da América do Sul. Ambos os fármacos contêm uma única erva, mas a PHY906 é composta por quatro, o que significa que há mais variáveis a controlar para fabricar um produto uniforme. “Esta complexidade é parte da razão pela qual não há fármacos à base de múltiplas ervas aprovados pela FDA”, diz Peikwen. 

Quando finalmente chegamos a um dos campos que forneceu as ervas para a PHY906, Chen, o agricultor, usa botas enlameadas e boné. Pega no iPhone e pede a Siri que traduza o nome chinês da sua cultura para inglês. “Peónia”, responde o aparelho.

Enquanto caminhamos entre os seus campos de peónias e da planta huang qin, o nosso interlocutor explica os seus protocolos de rotação de culturas, análise do solo e da água, plantio e colheita. Conta que, antes de expedir as ervas, técnicos da Sun Ten realizam vários testes para reconfirmar a espécie e procuram microorganismos, toxinas e metais pesados, entre outros testes de qualidade.

“Já ouviu falar em ‘directo da horta para a mesa’?”, pergunta Peikwen. “A nossa ideia é ‘directo da horta para a mesa-de-cabeceira’. As empresas que fabricam remédios fitoterápicos não obtêm as ervas em explorações como esta. Compram-nas em Bozhou.”

Para quem comprar ervas chinesas na Amazon, há boas probabilidades de passar pela cidade oriental de Bozhou, centro do universo da medicina chinesa. Todos os dias, dez mil comerciantes vendem milhares de produtos diferentes a trinta mil compradores de todo o Sudeste Asiático, numa estrutura colossal. 

Na manhã em que visito Bozhou, o mercado já parece uma colmeia, zunindo com o ruído do comércio. Percorro em ziguezague inúmeros corredores e salas a abarrotar de barris, sacas, paletes e carrinhos de mão repletos de produtos derivados daquilo que parecem ser quase todas as plantas, minerais e criaturas do planeta, incluindo itens exóticos como pénis de veado, placentas humanas, ossos de búfalo-de-água e cavalos-marinhos desidratados. Uma secção do tamanho de uma mercearia é dedicada àquela que é considerada a cura para todos os males: a raiz de ginseng. Vermelha e branca. Silvestre e cultivada. Com preços entre um punhado de euros e vários milhares.

Viajei até aqui para conhecer a origem da maioria dos fármacos à base de ervas chinesas comercializados no mundo. Aparentemente, é possível encontrar qualquer ingrediente neste lugar, mas não há informação sobre o local (nem sobre o método) de cultivo. É verdade que encontro com facilidade os quatro ingredientes da PHY906, mas todos são vendidos por intermediários que pouco sabem sobre as origens das ervas.

Antes de sair do mercado, há um ingrediente que me chama a atenção. Numa secção junto do veludo de galhada de veado, reparo numa estante de vidro com uma fila de garrafas contendo um líquido amarelado. Pergunto ao vendedor o que é e ele pede ao vizinho que traduza. “Vem do urso”, diz o homem. “Muito bom.”

Paul Iaizzo adora ursos. Enquanto director do Laboratório Visible Heart da Universidade do Minnesota, Paul interessa-se pela fisiologia singular do animal e associou-se ao Departamento de Recursos Naturais para estudar a sua hibernação. Enumera uma série de mistérios relacionados com os ursos, que chegam a passar seis meses completamente inactivos, sem sofrerem efeitos nocivos. A sua respiração abranda até apenas duas inspirações por minuto. A temperatura baixa 10%, o que provocaria hipotermia num ser humano. Perdem regularmente mais de metade da gordura corporal sem perderem músculo. Os seus corações podem pausar durante 20 segundos, mas o sangue nunca coagula. Os seres humanos arriscam-se a formar coágulos mortais se o coração pausar durante apenas alguns segundos. No entanto, se um predador se aproximar, o urso pode acordar para defender o seu covil. “E o seu coração não sofre quaisquer danos”, diz Paul Iaizzo.

A mais antiga referência à bílis de urso na literatura chinesa surge num tratado com 40 volumes do século VIII chamado “Os Segredos Médicos de Um Funcionário”, que prescreve bílis de urso contra os problemas do fígado, febres, hemorróidas e outras maleitas. Em 1902, um cientista sueco isolou uma das substâncias químicas da bílis, mais tarde designada por ursodiol e é hoje utilizada em fármacos contra doenças hepáticas e pedras na vesícula. 

No entanto, Paul Iaizzo e outros investigadores acreditam que há mais segredos por desvendar na bílis de urso, que é produzida no fígado, armazenada na vesícula e segregada sob a forma de hormonas na corrente sanguínea. Imaginam terapias, incluindo tratamentos para distrofia muscular e para pacientes acamados que podem perder metade da massa muscular em três semanas.

O investigador identificou três classes de componentes da bílis que talvez desencadeiem a hibernação – ácidos gordos, ácidos biliares e opióides delta. Durante o procedimento no porco, Paul injectou uma mistura sintética destes componentes na membrana protectora em redor do coração para revestir o órgão uma hora antes de o remover.

Durante centenas de experiências, ele viu corações de porco durarem o dobro do tempo que costumam durar fora do corpo. Há muitas aplicações possíveis para seres humanos. Particularmente notável é o facto de os corações dos dadores poderem ser mantidos viáveis durante mais tempo e poderem ser reiniciados mais depressa. Actualmente, um coração tem de ser transplantado num máximo de seis horas. 

“Se pudéssemos preservar um coração durante 24 horas, poderíamos transportá-lo para qualquer parte do mundo”, diz Paul Iaizzo. “E isso poderia aumentar consideravelmente o número de órgãos disponíveis. O cenário mudaria por completo.” 

Pergunto-lhe se a prática chinesa de ingerir bílis de urso poderá mesmo beneficiar de alguma forma a saúde. “Pode”, responde, salientando que as substâncias químicas entrariam na corrente sanguínea e deslocar-se-iam pelo coração e outros órgãos. Paul não aprova a criação de ursos para colheita da sua bílis, sublinhando que os químicos podem ser sintetizados, mas a ciência é a ciência. E embora os antigos chineses não percebessem como a bílis de urso ajudava os seres humanos, constataram que ajudava.

Enquanto seguro o coração do porco, consigo sentir o ritmo a abrandar. Por fim, pára. O porco morreu há horas e agora o seu coração também.
A cor parece desvanecer-se, tal como um peixe perde o brilho nas mãos de um pescador. Pergunto a mim mesmo se aquilo que desapareceu é o que os antigos chineses chamavam qi.

Recordo aquele momento em que, no hospital, segurava a mão do meu pai e senti a sua pulsação parar. Subitamente, tomo consciência do meu próprio coração, contraindo-se e mexendo-se na caixa torácica e penso nos outros mistérios sobre este órgão.