Cassini, revelou aspectos desconhecidos do Sistema Solar

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Eva van den Berg
Eva van den Berg

Jornalista especializada em Ciência e Natureza

Depois de 13 anos a revelar aspectos desconhecidos do Sistema Solar, no passado dia 15 de Setembro a sonda espacial Cassini pulverizou-se como previsto ao entrar na atmosfera de Saturno, um acontecimento transmitido em directo para o planeta Terra.

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Após 20 anos a viajar pelo espaço e 15 a observar de perto o sistema de Saturno, no passado dia 15 de Setembro, a sonda Cassini realizou a sua derradeira manobra, uma morte programada à qual se deu o nome de “Grand Finale”. Os seus criadores encaminharam-na para o planeta dos anéis, como reflecte a ilustração, levando-a a desintegrar-se na atmosfera.

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As imagens de Saturno obtidas pela missão espacial Cassini-Huygens revelaram segredos das numerosas luas que orbitam o planeta e um sistema de mais de trinta anéis de dimensão cerca de duzentas vezes superior à do próprio planeta. Entre os grupos de anéis, existem franjas vazias onde também orbitam pequenos satélites.

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Io orbitando por cima do tecto nebuloso de Júpiter. Este é um dos quatro satélites descobertos por Galileu na órbita do maior planeta do sistema solar. Nesta imagem, captada pela Cassini, Io, do tamanho da Lua terrestre, parece minúscula comparada com o gigantesco planeta gasoso.

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Cassini sobrevoa o hemisfério norte de Saturno em 15 de Setembro de 2017, no decurso daquela que seria a sua última viagem. A ilustração representa a sonda a posicionar-se para penetrar na atmosfera do planeta dos anéis e desaparecer para sempre.

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Reconstituição artística do astrofísico e ilustrador britânico Mark Garlick, na qual se vê a sonda Huygens depois de esta pousar em Titã no dia 14 de Janeiro de 2005. Projectada para pousar sobre a superfície desconhecida (sólida ou líquida) da maior lua de Saturno, a Huygens enviou à Cassini, durante 72 minutos, dados captados pelos seis instrumentos científicos que transportava a bordo.

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A imagem (colorida com cores falsas) de Encélado, captada pela sonda Cassini a 112.100 quilómetros de distância, representa a azul as placas tectónicas das planuras do hemisfério sul. O sexto maior satélite de Saturno, descoberto por William Herschel em 1789, é composto por gelo, silicatos e ferro.

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Uma imagem da superfície de Titã, numa projecção de Mercator, captada pela sonda Huygens em 14 de Janeiro de 2005.

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Junto destas linhas, o vórtice de uma tempestade com 2.000 quilómetros de extensão localizada no pólo norte de Saturno. A nuvens movem-se a cerca de 150 metros por segundo.

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A lua Mimas, com os anéis de Saturno como pano de fundo.

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Os lagos de hidrocarbonetos localizados pela Cassini nas regiões polares de Titã. Estas enormes jazidas de etano e metano parecem evaporar-se durante o Verão deste satélite.

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O olho da tempestade saturnal foi captado a 419.000 quilómetros de distância, através de filtros especiais sensíveis aos comprimentos de onda próximos da luz infravermelha. Em média, as tempestades de Saturno são vinte vezes mais potentes do que as da Terra.

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Em Encélado, a Cassini registou a existência de géiseres, com a emanação de jorros de vapor de água e gelo, representados nesta reconstituição artística. Ao fundo, o planeta Saturno testemunha as vicissitudes de um dos satélites do Sistema Solar mais propícios a albergar formas de vida primígena.

 Depois de 13 anos a revelar aspectos desconhecidos do Sistema Solar, no passado dia 15 de Setembro a sonda espacial Cassini pulverizou-se como previsto ao entrar na atmosfera de Saturno, um acontecimento transmitido em directo para o planeta Terra.

Foi o desfecho de um longo sonho e o resultado de estreita colaboração científica internacional que viu nessa missão a oportunidade de esclarecer alguns enigmas que a sonda anterior, a Voyager I, antecipara. Graças à Voyager I, previra-se que a atmosfera da lua principal de Saturno, Titã, talvez contivesse moléculas orgânicas complexas. Seria parecida com uma das primeiras fases da Terra?

Havia grande curiosidade e impunha-se um regresso a Saturno para novas averiguações. O grande volume de dados obtidos e descobertas realizadas, além dos conhecimentos tecnológicos alcançados, tornaram a missão Cassini-Huygens um êxito absoluto e unânime. O empreendimento só foi possível com a colaboração entre três agências espaciais – a norte-americana, NASA, a europeia, ESA, e a italiana, ASI – e provou uma tese que já há muito era intuída pela comunidade que se dedica à exploração espacial: no horizonte, perfilam-se alterações que modificarão a nossa perspectiva do universo. Talvez mesmo no nosso tempo de vida.

“Voltaremos a Saturno!”, exclamava o director do programa Cassini da NASA, Earl Maize, pouco depois de assistir à forma como a sonda se desintegrava ao atravessar a atmosfera deste planeta, na sede do Laboratório de Propulsão a Jacto da NASA, na Califórnia. Após 20 anos de viagem e exploração, a única sonda que até hoje descreveu a órbita do “planeta dos anéis” foi sacrificada pelos seus criadores, muitos dos quais, um segundo mais tarde, já pensavam em repetir a missão. Deve ter sido difícil pôr fim àquele que, durante muitos anos, foi o leit motiv das suas vidas.

Embora operacional, a Cassini dispunha de pouco propulsante, razão pela qual se tomou a decisão de destruí-la de forma controlada, de modo a evitar riscos imprevisíveis, como uma colisão acidental contra alguma lua de Saturno que nela deixasse rastos de contaminação humana. Seria inaceitável que a sonda que tão grande contributo dera para aprofundar o conhecimento do Sistema Solar deixasse marcas terrestres com consequências desconhecidas. 

Nesse dia 15 de Setembro, a astrofísica Linda Spilker afirmou que se sentia “como se tivesse perdido um amigo”. Nesse dia, às 7h57 de Washington (12h57 em Portugal continental), a NASA estabeleceu pela última vez ligação com a protagonista desta façanha e, na sua última transmissão, a Cassini enviou o último fluxo de dados durante quase uma hora, ao mesmo tempo que penetrava, a mais de 120 mil quilómetros por hora, na atmosfera de Saturno, onde entrou em incandescência e se fragmentou até desaparecer. A notícia da sua morte demorou 83 minutos a chegar à Terra, situada a cerca de 1.400 milhões de quilómetros de distância.

A extinção da Cassini era o epílogo épico de uma história iniciada mais de 30 anos antes. A inspiração veio da sonda Voyager I da NASA, colocada em órbita em 1977 para delimitar os confins do Sistema Solar. Na sua odisseia, obteve dados sobre Saturno e navegou a menos de 6.500 quilómetros da sua lua principal, Titã, a partir da qual vislumbrou nuvens semelhantes aos cirros terrestres, numa atmosfera densa que não permitia observar a sua superfície.

Entretanto, a Europa ainda não pusera em marcha uma missão interplanetária. A primeira aconteceria em 1985, quando a sonda Giotto foi enviada para estudar o cometa Halley. Saturno e as suas luas continuavam a ser um objectivo inatingível.

As primeiras tentativas formais para transformar esse sonho em realidade começaram a ser feitas em 1980, quando o cientista francês Daniel Gautier apresentou à agência espacial do seu país, o Centro Nacional de Estudos Espaciais (CNES, a sigla em francês), a ideia de uma sonda capaz de infiltrar-se na atmosfera de Titã. A ideia foi posta de lado por razões económicas. No entanto, dois anos mais tarde, a Agência Espacial Europeia (ESA) lançava à comunidade científica europeia o seguinte desafio: que missões espaciais deveriam ser prioritárias?

A pergunta foi de imediato respondida pelo astrónomo chinês Wing-Huen Ip, investigador do Instituto Max Planck de Aeronáutica da Alemanha, hoje conhecido como Instituto Max Planck para a Investigação do Sistema Solar, que tinha em mente projectar uma sonda para orbitar Saturno.


 

Certa noite o professor Ip decidiu telefonar a Gautier para propor-lhe a união de esforços. “Até já tenho um nome para a missão”, avançou o asiático. “Vai chamar-se Cassini.” O nome era uma homenagem ao astrónomo, matemático e engenheiro nascido em Itália e francês de adopção, Giovanni Cassini, outrora director do Observatório de Paris entre 1671 e 1712, o ano da sua morte. Cassini descobrira quatro satélites de Saturno (Jápeto, Dione, Reia e Tétis) e a divisão dos seus anéis. Ip considerou que a França, país essencial na política da ESA, se sentiria agradada com a escolha e Gautier rapidamente anuiu. 

A semente estava plantada: em 1982, a ESA recebeu a proposta, intitulada “Saturn Orbiter/Titan Probe Mission”. Vinha redigida por três autores: Ip, Gautier e Michel Combes, do Observatório de Paris-Meudon. Mais 27 cientistas validavam o documento, sublinhando o aspecto essencial: a missão exigia cooperação entre a ESA e a NASA.

Uma vez superado um número infinito de obstáculos e burocracias, as duas agências apresentaram em conjunto a missão, numa reunião realizada em Bruges em 1988. Depois de competir na cidade belga com mais quatro propostas, foi escolhida a proposta combinada das sondas Cassini e Huygens (que homenageava o astrónomo holandês Christiaan Huygens), permitindo realizar duas missões pelo preço de uma e abrangendo um leque científico quase insuperável: conhecimento da física e origens das atmosferas de Saturno e Titã, exobiologia, estrutura dos anéis, estudo dos satélites de gelo e meio interplanetário.

A ESA encarregar-se-ia de construir a sonda Huygens, à NASA caberia a Cassini e à Agência Espacial Italiana (ASI) a gigantesca antena de alto rendimento da sonda. Faltava transpor uma última montanha: o Congresso dos Estados Unidos teria de aprovar o orçamento proposto, indispensável para a conclusão da missão. Em 1989, já estava previsto o lançamento da sonda Galileu, da NASA, com destino a Júpiter, e o envio de outra a Saturno representaria um desafio: seriam explorados os dois maiores e mais maciços planetas do Sistema Solar. Por fim, o orçamento foi aprovado. O custo final cifrava-se em 3.260 milhões de dólares, 2.600 dos quais avançados pela NASA, 500 pela ESA e 160 custeados pela ASI.

Criava-se assim um portentoso desafio técnico-científico, de custo colossal, cujo resultado seria imprevisível. Como em todas as épocas, os detractores do programa espacial não se coibiram de lamentar tamanho investimento numa causa científica. Em diversas ocasiões, a missão esteve à beira da anulação. Para cúmulo, em 1986, a explosão do vaivém Challenger, com sete tripulantes a bordo, perante o olhar atónito do mundo, despertou toda a comunidade para os riscos e colocou novo entrave: pensara-se que a Cassini-Huygens seria lançada a partir desse vaivém. A missão foi redesenhada e concebida de forma que a sonda fosse lançada de um foguetão da Força Aérea, o Titã-4B, agravando ainda mais o custo operativo.

Além disso, elevou-se um coro de protestos públicos a partir do momento em que se soube que a fonte de alimentação da Cassini seria composta por 32 quilogramas de plutónio-238, generalizando-se o medo de que um hipotético acidente pudesse projectar radioactividade sobre a atmosfera terrestre. Sucederam igualmente avarias mecânicas de última hora e imprevistos meteorológicos que, por várias vezes, adiaram o lançamento. Apesar de tudo, no dia 15 de Outubro de 1997, a Cassini e a Huygens (acoplada à primeira) partiram de Cabo Canaveral rumo a Saturno, a bordo do foguetão Titã, com precisão absoluta e total pontualidade. Começava uma apaixonante viagem de sete anos e 3.500 milhões de quilómetros até Saturno, seguida de 13 anos de pura exploração espacial.

Com 5.712 quilogramas de peso e 7 por 4 metros de envergadura, a sonda orbital Cassini é, depois da russa Phobos, o segundo engenho mais pesado alguma vez enviado para o espaço. Para obter a impulsão necessária para alcançar Saturno, tornava-se necessária a ajuda de uma imprescindível assistente de voo: a gravidade de outros corpos celestes. Trata-se da chamada assistência gravitacional, que consiste em aproveitar a força gravitacional de um planeta, ou de um satélite, para redireccionar a trajectória de uma sonda, a qual, deste modo, é “empurrada” até ao seu destino final, com um gasto mínimo de propulsante. Esse plano de navegação requer que os planetas implicados estejam alinhados de determinada maneira – a janela de lançamento que condiciona a data de lançamento em órbita da nave. Com base nesse pressuposto, a sonda sobrevoou duas vezes Vénus, uma vez a Terra e outra Júpiter, o que lhe permitiu propulsionar-se até à órbita de Saturno, na qual penetrou no dia 30 de Junho de 2004.

Quase seis meses depois, precisamente no Dia de Natal, a sonda Huygens, de 2,7 metros de diâmetro e 318 quilogramas de peso, equipada com os seus instrumentos científicos, desligava-se da sonda principal e empreendia a sua jornada rumo a Titã, onde pousou em 14 de Janeiro
de 2005 sobre uma superfície completamente desconhecida. 

Quatro Luas Saturninas

Titã, é a maior lua de Saturno. 

Jápeto, a terceira de maior dimensão depois de Reia, formada por gelo e rocha. 

Hiperião, de forma muito irregular, rotação caótica e aspecto esponjoso. 

Pan, o satélite mais interno dos que orbitam o planeta dos anéis e com um enigmático aspecto de noz cósmica.