Tipicamente, as vacinas ajudam a proteger-nos de doenças. Mas as vacinas contra o cancro são diferentes. São potenciais terapias para tratar pessoas que já têm cancro. Estes tratamentos estão a ser desenvolvidos há anos e os fracassos têm sido frequentes, mas começam agora a mostrar-se promissores.
Na última década, inovações tecnológicas como o sequenciamento do genoma permitiram aos cientistas examinar mais de perto as células tumorais e as suas anomalias genéticas. Isto está a ajudá-los a apontar as vacinas para alvos muito mais específicos. Entretanto, estamos a aprender muito mais sobre o sistema imunitário e a forma como este reconhece e destrói o tumor de um paciente, refere o imunologista celular Stephen Schoenberger do Instituto de Imunologia La Jolla, na Califórnia.
A investigação de vacinas contra o cancro ainda está na fase inicial, diz Nina Bhardwaj, especialista em hematologia e oncologia médica da Faculdade de Medicina Icahn, Mount Sinai, em Nova Iorque. No entanto, os resultados iniciais de ensaios clínicos que testaram dezenas de vacinas contra uma variedade de cancros parecem encorajadores, afirma.
O objectivo é criar vacinas que destruam as células cancerígenas, mas alguns cientistas estão também a testar vacinas que possam, um dia, impedir que um indivíduo de alto risco desenvolva cancro.
O que são as vacinas contra o cancro?
O objectivo de todas as vacinas, seja contra o cancro ou contra a COVID-19, é “educar” o sistema imunitário e dar-lhe uma antevisão de um alvo que precisa de ser identificado e destruído para manter o organismo seguro. A vacina contra a COVID-19 mostra ao sistema imunitário qual o aspecto do vírus SARS-CoV-2 de modo que, quando ocorrer uma infecção, as células imunitárias possam localizar rapidamente o vírus e matá-lo. Do mesmo modo, uma vacina contra o cancro “ensina” às células imunitárias qual o “aspecto” de uma célula tumoral, permitindo-lhes procurar e destruir estas células cancerígenas.
A capacidade de uma vacina contra o cancro ensinar o sistema imunitário é o que a distingue de outras imunoterapias que recorrem a agentes terapêuticos, como proteínas citocinas e anticorpos, e incluem estratégias como modificar geneticamente as células imunitárias de um paciente para combater o cancro.
Os especialistas dizem que as vacinas contra o cancro podem potencialmente destruir células cancerígenas que poderão ter sobrevivido a outros tratamentos, impedir o crescimento ou alastramento do tumor ou impedir que o cancro regresse.
Algumas vacinas terapêuticas contra o cancro baseiam-se na remoção de células imunitárias chamadas células dendríticas. Estas células são recolhidas de uma amostra de sangue do paciente e expostas, em laboratório, às principais proteínas extraídas das células cancerígenas do indivíduo. Uma vez ensinadas, estas células são devolvidas ao paciente, com a expectativa de estimularem e treinarem outras células imunitárias, como as células T, para detectarem e destruírem o cancro.
As células T são capazes de fazer um dos truques mais fantásticos da biologia, diz o oncologista médico Christopher Klebanoff, do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova Iorque. Contêm um receptor capaz de reconhecer e fixar-se em proteínas presentes na superfície de células tumorais – tal como uma chave corresponde a uma fechadura. Uma vez fixadas, as células T usam força mecânica para abrir um buraco na célula tumoral e destruí-la, explica.
No entanto, “as vacinas não têm sido muito boas a gerar a quantidade e qualidade de células T necessárias para eliminar tumores de grandes dimensões”, diz Bhardwaj. O ideal é vacinar quando o tumor é pequeno.
Para aumentar o poder da vacina, os investigadores costumam combiná-la com fármacos que melhoram a resposta imunitária deste anti-tumoral.
Os fabricantes de vacinas recorrem cada vez mais à tecnologia mRNA — igualmente utilizada para criar vacinas contra a COVID-19 — para ensinar as cédulas dendríticas do organismo de um paciente a produzir as proteínas ou peptídeos tumorais específicos que geram uma resposta imunitária.
As vacinas são preventivas, pois ensinam o organismo a matar vírus que causam cancro, como a hepatite B e o papilomavírus humano, evitando assim uma infecção que poderia, de outra forma, degenerar num tumor.
Como criam os cientistas as vacinas?
Todas as vacinas que tratam o cancro baseiam-se em proteínas denominadas antígenos tumorais – uma molécula que desencadeia uma resposta imunitária quando existe em maior quantidade à superfície de células cancerígenas, comparado com células saudáveis, ou quando assume uma forma anómala ou que sofreu uma mutação. Quando as células T “vêem” estes antígenos, reconhecem as células como cancerígenas e matam-nas.
Os biólogos especialistas em cancro identificam estes antígenos tumorais com uma sofisticada tecnologia de sequenciamento que detecta diferenças específicas entre o DNA e o RNA de uma célula saudável e de uma célula cancerígena. O truque é perceber quais as mutações que geram uma resposta das células T e que podem ser um bom alvo para uma vacina, diz Schoenberger.
O seu grupo de investigação selecciona antígenos com base na resposta de um paciente ao cancro. Ao estudar as células T nas suas amostras de sangue, “estamos a ver aquilo que o próprio sistema imunitário do paciente seleccionou entre as mutações expressas no tumor”, diz Schoenberger. Ele identifica os antígenos que são exclusivos das células tumorais de um indivíduo e usa uma combinação de antígenos tumorais de diferentes pacientes para criar vacinas. Outros investigadores procuram antígenos que sejam partilhados entre indivíduos com determinado tipo de cancro ou por diferentes tipos de cancro.
As vacinas concebidas para atacar moléculas que são produzidas em excesso por células cancerígenas – mas que estão igualmente presentes, em quantidades mais pequenas, em células saudáveis – tendem a ter limitações e podem não desencadear uma resposta imunitária eficaz. “Tem sido um enorme obstáculo”, diz a imunologista especializada em cancro Lisa Butterfield, da Universidade da Califórnia, em San Francisco. Existe também o perigo de induzir auto-imunidade e de o sistema imunitário acabar por atacar células saudáveis, causando distúrbios difíceis de tratar. Outros esforços estão agora concentrados em encontrar moléculas-alvo denominadas neoantígenos, que são específicas dos tumores.
Existem vacinas aprovadas para tratar o cancro e como funcionam?
Em 2010, a U.S. Food and Drug Administration aprovou a primeira vacina terapêutica contra o cancro, chamada Sipuleucel-T, para tratar cancro da próstata avançado. O seu alvo é um antígeno chamado fosfatase ácida prostática, que se encontra em células normais da próstata, mas existe em maior número nas células cancerígenas. Ensaios clínicos demonstraram que os pacientes vacinados com Sipuleucel-T viveram aproximadamente mais quatro meses, embora os seus tumores tenham permanecido do mesmo tamanho.
Outras vacinas que foram aprovadas contra vírus como a hepatite B e o papilomavírus humano são também consideradas vacinas contra o cancro, pois previnem infecções virais que poderiam, um dia, causar cancro no fígado, no colo do útero, na cabeça e no pescoço.
Estas vacinas preventivas funcionam gerando anticorpos contra o vírus e tanto quanto sabemos, não geram uma resposta muito eficaz das células T, diz Klebanoff. “É por isso que não podem ser usadas como terapia contra o cancro.”
Que vacinas contra o cancro estão em desenvolvimento?
Os cientistas estão a testar dezenas de vacinas contra o cancro, frequentemente em conjunto com outras imunoterapias. Têm como alvo diferentes tipos de cancro, incluindo da pele, mama, bexiga, próstata e pâncreas.
Recentemente, a fabricante de vacinas Moderna anunciou que a sua candidata a vacina mRNA contra melanomas de estádio 3 ou 4 demonstrou uma redução de 44% do risco de recorrência de cancro da pele, ou morte, em pacientes que receberam a vacina e um fármaco da Merck denominado Keytruda, que aumenta a resposta imunitária contra as células cancerígenas, comparados com aqueles que tomaram apenas o Keytruda. As vacinas de mRNA personalizadas da Moderna treinam o sistema imunitário para produzir células T conta 34 antígenos específicos do cancro. Embora os resultados deste ensaio clínico de fase 2 ainda estejam a ser revistos por pares, a empresa, juntamente com a Merk está a planear um ensaio de fase 3 mais abrangente para testar a segurança e eficácia da vacina em 2023.
Olivera Finn, imunologista especializado em cancro, da Universidade de Pittsburgh, está a testar uma vacina preventiva que pode ser administrada numa fase pré-cancerígena, quando um indivíduo desenvolve massas benignas denominadas pólipos – que não são perigosas, mas podem tornar-se malignas – no cólon. A vacina ataca uma forma anómala de uma proteína chamada MUC1 produzida por algumas células de pólipos não-malignos do cólon. A vacina causou uma redução de 38% na recorrência nos três anos após ter sido administrada a quase 50 indivíduos com pólipos em estado avançado. “Se não desenvolver um novo pólipo, não terá risco acrescido de cancro do cólon”, diz Finn.
Um importante passo seguinte para os cientistas é descobrir por que algumas pessoas reagem melhor às vacinas do que outras e durante quanto tempo estarão protegidas. Até lá, a esperança é que mais candidatos à vacina avancem para os ensaios clínicos aleatórios de fase 3, para que a sua segurança e eficácia seja avaliada num número maior de pacientes.
Que desafios prevêem os cientistas?
Apesar do entusiasmo renovado no desenvolvimento e testagem de vacinas contra o cancro, tendo em conta os avanços da tecnologia, alguns cientistas, como Klebanoff, permanecem cépticos. Ele interroga-se se as vacinas alguma vez serão suficientemente potentes para encolher os tumores de forma clinicamente significativa e se alternativas como modificar as células T de um paciente – denominada terapia de células CAR-T — para conseguirem reconhecer melhor as células tumorais poderão ser uma estratégia mais eficaz. O seu grupo de investigação usa esta última abordagem. Contudo, ele está ansioso por conhecer os dados dos ensaios clínicos das vacinas em curso.
Como as vacinas terapêuticas são frequentemente testadas em pacientes com cancros avançados, cujos tumores foram removidos cirurgicamente e foram submetidos a quimioterapia ou radiação, os seus sistemas imunitários estão muito em baixo, diz Schoenberger. É provável que as vacinas não tenham um desempenho tão bom neste estádio mais avançado da doença. É preciso descobrir os pacientes e as condições clínicas específicas em que as vacinas contra o cancro são mais eficazes, afirma.
As vacinas contra o cancro ainda estão nas fases iniciais de testagem e aperfeiçoamento, adverte Butterfield. Há muito trabalho a fazer, tanto na frente preventiva como na frente das vacinas terapêuticas.