Há um ano, rios de lava cobriram a paisagem de La Palma, destruindo tudo no seu caminho. Um ano depois, uma estrada aberta sobre as escoadas lávicas traz de volta a actividade à ilha.
Regresso a La Palma um ano depois e surpreende-me a quietude de uma paisagem que durante três meses foi dinâmica.
O silêncio de uma paisagem que dormiu 85 noites sob o rugido de um dragão. A erupção vulcânica que manteve a ilha sob controlo durante três meses e que ainda é tão evidente que, à altura de El Paso, qualquer nuvem que coroe a dorsal de Cumbre Vieja é percebida como uma imagem resgatada de um pesadelo. Para quem conhecia o território anterior, a mudança dos perfis orográficos é óbvia. Para os vizinhos que regressaram às suas casas e as encontraram de pé, rodeadas por lava escura solidificada em formações impossíveis, o impacte é ainda maior. As antigas estradas desaparecem repentinamente sob um muro de pedra, como caminhos secretos que conduzem agora a um mundo inquietante e subterrâneo.
Neste último ano, a ilha cresceu – emocional e fisicamente. Em largura, porque os dois deltas lávicos, gerados quando as escoadas entraram em contacto com o mar, aumentaram a superfície da ilha em 48 hectares, acrescentando 14 novas praias. E para cima, porque o cone vulcânico principal provocou uma elevação do terreno de quase 200 metros. Os mais de duzentos milhões de metros cúbicos de cinzas, piroclastos e lava expelidos pelo vulcão configuram, do ponto de vista do drone, um triângulo denso e negro com mais de 1.200 hectares. No interior, enterrados para sempre, encontram-se 12 núcleos urbanos da zona oeste da Ilha Bonita. Alcalá, El Pastelero, Los Campitos, Las Vinagreras, Todoque, La Laguna, El Campillo, La Costa, Los Guirres, Cabrejas, El Charcón e Las Ollas são já lugares inexistentes que ainda figuram nos mapas.
Apenas três dias depois de ser declarado o fim da actividade eruptiva, em 27 de Dezembro de 2021, as máquinas entraram como um exército exausto e sobrevivente no antigo cruzamento de La Laguna. O objectivo era recuperar o mais rapidamente possível os mais de 78 quilómetros de estradas soterradas pela lava. Embora o Google Maps assegurasse em Setembro que já actualizara as imagens da ilha, estas ainda são uma armadilha cartográfica, com áreas falsamente ligadas e nomes de lugares que já não existem. Muitos habitantes preferem-nas assim. Não querem render-se à evidência dessa perturbadora mudança na paisagem: são as cicatrizes deixadas pelo vulcão.
Uma delas é muito recente. Em Agosto passado, como que antecipando o aniversário, foi inaugurado o segmento de estrada entre Las Norias e Laguna, uma via com cerca de quatro metros de largura e 3,6 de comprimento que atravessa a escoada lávica e liga as extremidades norte e sul do vale de Aridane. Durante 76 dias, quase tantos quantos durou a erupção, as escoadas de lava foram tomadas de assalto por um exército de escavadoras, camiões e martelos hidráulicos que reabriram a comunicação no vale. A temperatura do solo desencorajou o asfaltamento e, para a sua construção, foram utilizados os ingredientes mais próximos: as cinzas expelidas pelo vulcão, cal hidráulica e a salmoura produzida pelas unidades de dessalinização de Tazacorte. A argamassa romana é uma técnica tão antiga como sustentável.
A nova estrada em que circulo é uma autêntica lição de geologia, com diferentes tipos de lava, dos quais sobressaem esqueletos de construções, máquinas e quintas soterradas. A circulação está sujeita a regras: como nos filmes apocalípticos, deve circular-se durante o dia e não se pode sair do carro ou parar. À falta de iluminação nocturna e barreiras, as autoridades locais fecham a estrada às 22 horas. A temperatura do solo oscila entre 40 e 60°C e, nas escoadas lávicas das proximidades, registam-se valores que ultrapassam 300ºC. Sob uma superfície aparentemente estática, no interior dos tubos lávicos, ainda flui lava incandescente.
Octavio Fernández, vice-presidente da Federação de Espeleologia das Canárias, colabora com o Instituto Geológico e Mineiro (IGME) na realização de um primeiro mapa destes “tubos de fogo”, como são denominados na ilha, que fornecerá informações valiosas sobre a sua formação. “Vimo-los a nascer diante dos nossos olhos”, diz com entusiasmo. Alguns podem ter alcançado profundidades de 70 metros e extensões de três ou quatro quilómetros – talvez o dobro se os tubos sobrepostos se tiverem ligado entre si. A exploração deste labirinto que percorre o interior do vulcão é uma tarefa árdua e de longo prazo. Neste momento, as temperaturas interiores não permitem aos espeleólogos explorar para lá dos jameos, uma espécie de aberturas nas escoadas lávicas provocadas pelo colapso do tecto de um tubo lávico, que dão acesso a estas formações. Num futuro próximo, talvez seja possível espreitar para o interior.
Um ano após a erupção, a ilha continua a trabalhar na reconstrução. O projecto da estrada da costa pretende voltar a ligar Tazacorte e Puerto Naos, que era o principal centro turístico da ilha, uma obra que exige expropriações e procedimentos administrativos que, por vezes, colidem com os interesses dos habitantes. Além disso, em redor de Puerto Naos e La Bombilla, ainda existe uma zona de exclusão. Embora estas duas localidades costeiras não tenham sido atingidas pela lava, estão desertas há um ano e hoje são povoações-fantasma por onde deambulam investigadores e forças de segurança equipados com máscaras e medidores de gases. Desde Novembro de 2021, quando foi detectada uma concentração invulgar de dióxido de carbono, as medições sucedem-se com resultados desanimadores. “As concentrações de CO2 acima de 14% são potencialmente letais. Em Puerto Naos, foram feitas medições que registam 30% ao ar livre e até 55% em ambientes fechados”, explica Stavros Melet Lidis, vulcanólogo do Instituto Geológico Nacional (IGN). O perigo, invisível e impalpável, alimentou teorias da conspiração e muito descontentamento, pois mais de 1.500 pessoas vivem numa dolorosa incerteza: não perderam as suas casas, mas não sabem quando poderão regressar ao lar.
Não são os únicos. Outras duzentas pessoas que perderam as casas ainda não foram realojadas. No total, representam 2% da população de La Palma, um quarto dos sete mil evacuados. Até agora, foram entregues 139 casas. A bolha especulativa resultante do decreto de emergência do governo das Canárias, que permite construir em terrenos rústicos e que multiplicou por cinco o preço dos terrenos, também não ajuda.
A erupção também pôs em xeque os dois grandes motores económicos de La Palma: as bananas e o turismo. As escoadas soterraram 20% dos solos produtivos, eliminando 217 hectares de plantações de banana e afectando outros trezentos que não podem ser irrigados ou estão isolados.
O sector, que segundo dados da Associação das Organizações de Produtores de Banana das Ilhas Canárias (Asprocan) em 2021 empregava 11 mil pessoas numa ilha de 85 mil habitantes e contribuía com 135 milhões de euros por ano em exportações (32% das vendas de banana de todo o arquipélago), viu as receitas diminuírem em 53 milhões de quilogramas, menos um quarto do que nos anos anteriores.
As explorações afectadas pelas cinzas podem voltar a ser produtivas. Nas plantações cobertas de lava, a recuperação também é possível, mas é preciso preparar o terreno, lavrá-lo, nivelá-lo, fazer socalcos e incorporar uma camada de solo agrícola. O processo completo de surriba demorará quatro a cinco anos, explica Domingo Martín Ortega, presidente da Asprocan, custará 100 milhões de euros e exigirá uma solução jurídica para o ordenamento e concentração de parcelas, num território com interesses conflituantes, classificado como Paisagem Protegida.
E o turismo? Depois de os governos central e regional destinarem uma verba de 5.600 milhões de euros para a promoção de La Palma, chegou à ilha um tipo de turismo solidário e vulcânico. Caminhantes estrangeiros procuram os miradouros de Tajuya ou Tacande, de onde os noticiários transmitiam as imagens da erupção, e as rotas que permitem observar a nova cratera. No Verão deste ano, registaram-se ocupações de até 91% na ilha, embora a oferta de alojamento tivesse perdido um terço, pois desapareceram as quatro mil camas de hotel de Puerto Naos, bloqueadas pelas emissões de gases. Outro milhar de camas foi destruído pelo vulcão ou utilizado para realojar os afectados.
As feridas são visíveis na paisagem e nos habitantes, mas cicatrizam. Num arquipélago vulcânico activo, é preciso aprender a viver com a eventualidade de uma erupção. Talvez as cidades afectadas precisem de olhar para Chã das Caldeiras, a pequena povoação da ilha do Fogo, em Cabo Verde, devastada pela erupção de 2018 e cuja reconstrução foi projectada pela entidade canária Gesplan. As chaves são a utilização de materiais naturais que possam reintegrar-se na paisagem e vias de evacuação que preservem as vidas humanas. Porque estas são as únicas cicatrizes que um território vulcânico não deve permitir.