Dividindo-se entre Évora e o Vaticano, uma equipa de cientistas portugueses aposta que sim.
Nas traseiras da Sé de Évora, calcorreando apertadas escadarias, num emaranhado arquitectónico talvez destinado a desorientar os mais incautos, chega-se a uma enorme e imponente porta que barra o caminho. Sigilosamente, Zélia Parreira, a directora da Biblioteca Pública de Évora, introduz o código de segurança, fazendo soltar cliques metálicos de rodas dentadas. Num ápice, abre-se a reserva de uma das mais impressionantes bibliotecas portuguesas...
No interior, qualquer alfarrabista julgar-se-ia no céu! À medida que o olhar se habitua à penumbra, prateleiras infindáveis de livros antigos desvendam-se, alinhadas no chão até ao tecto. Nas lombadas, gastas pelos anos, adivinham-se histórias e registos de vidas passadas. A história materializa-se nestes tomos de dimensões e cores variadas. Naquela manhã húmida de Primavera, porém. A atenção concentra-se num livro especial: um evangeliário, um dos mais ricos exemplares da colecção e cuja origem remonta à França do século XII ou XIII. A exuberância e qualidade das iluminuras nele constantes destacam-no. Livros deste género eram, à época, muito valiosos e raros – privilégio de um punhado de letrados. A relação social do indivíduo com o livro era necessariamente diferente da moderna: os seus proprietários não se limitavam a deixá-los como originalmente tinham sido concebidos. Modificavam-nos.
Bem-vindos portanto a um enigma diferente: será possível estimar a data desta produção adicional, a autoria e os métodos seguidos?
Nas páginas dos quatro evangelhos, foram descobertas novas ilustrações, acrescentadas mais tardiamente, no século XVI, com recursos a técnicas pictóricas e materiais diferentes. Só a caracterização molecular de tintas permitiu comprovar as diferentes datas de produção das iluminuras!
Bem-vindos portanto a um enigma diferente: será possível estimar a data desta produção adicional, a autoria e os métodos seguidos? Catarina Miguel, engenheira química e investigadora da Universidade de Évora, acredita que sim. Recebe da directora, de braços abertos – literalmente –, o manuscrito, porque estes livros também precisam de braços para serem manuseados e não apenas das mãos! Acabada de chegar do Vaticano, onde está a analisar um conjunto de manuscritos cistercienses dos séculos XI e XII até agora nunca estudados por nenhum outro cientista, vem analisar os exemplares portugueses, integrada num estudo comparativo entre obras contemporâneas dos dois Estados. A Igreja Católica guardou para a sua sede os exemplares mais valiosos, mas o projecto pretende avaliar o acervo português e compará-lo com a colecção de maior qualidade (a do Vaticano) e com a maior colecção de manuscritos cistercienses (a colecção de Troyes, tendo por base o estudo dos materiais e técnicas de produção a efectuar nos manuscritos da Santa Sé e de França).
Observação com um microsópio esterescópico da cercadura do fólio do rosto do "evangelho de São Mateus".
A investigadora Catarina Miguel no passadiço do gabinete de Frei Manuel do Cenáculo na Biblioteca Pública de Évora, transportando a "Harmonia dos Evangelhos".
Para conhecer o historial da biblioteca que os cientistas agora percorrem é necessário recuar até finais do século XVIII e recuperar a história de uma personagem ímpar da cidade alentejana: Frei Manuel do Cenáculo. Homem de cultura, doutorado em Teologia por Coimbra, viria a ser bispo de Beja e, em 1802, elevado a Arcebispo de Évora. Seguindo os ventos da época, tornou-se representante destacado do Iluminismo em Portugal e um ávido coleccionador de várias classes de objectos.
A ligação do Frei à Real Mesa Censória, à Companhia de Jesus e a sua afinidade com o marquês de Pombal davam-lhe acesso a muitas obras, que conseguiu desviar para a sua colecção privada. Criou até um Gabinete de Curiosidades, em que figuravam destacados elementos de “Naturalia”. Conhecido, entre as bibliotecárias, pela sua péssima caligrafia, construiu um corredor aéreo (ainda existente) entre a residência oficial do Arcebispo (actual Museu de Évora) e a então recém-criada Biblioteca, para aí poder estudar e trabalhar. O seu espólio rapidamente cresceu. Teria homens de confiança por toda a Europa, “espiões culturais” cuja função era adquirir obras em leilões e vendas particulares nas principais capitais do Velho Continente! O conjunto assumiu tais proporções que o levaram a criar a Biblioteca Pública de Évora em 1805, contando com mais de seis milhares de livros medievais.
O manuscrito, de grandes dimensões, terá sido criado pelos copistas do Mosteiro de Alcobaça, a sede da Ordem de Cister em Portugal, três séculos mais tarde.
Neste espólio, houve outro livro que captou a atenção da equipa do Laboratório HERCULES e do seu projecto de estudo material da centenária instituição: um livro de música de São Bento de Castris (o “códice 116c” do Fundo Manizola), mosteiro cisterciense feminino fundado em finais do século XIII a poucos quilómetros do centro de Évora e que, hoje, está semiabandonado. O manuscrito, de grandes dimensões, terá sido criado pelos copistas do Mosteiro de Alcobaça, a sede da Ordem de Cister em Portugal, três séculos mais tarde. De lá partiam exemplares para os diferentes mosteiros e conventos do país: destes, 13 estão identificados como pertencendo a São Bento de Castris, com diferentes tipologias, cobrindo um período entre os séculos XVI e XVIII.
O vasto complexo, até há pouco utilizado pela Casa Pia, impõe-se na planície, rodeado de prados e montado. No interior da igreja, ricamente decorada com azulejos, Catarina olha em redor, analisando a direcção da luz que penetra pelas janelas do edifício. É possível que os ilustradores arcaicos tivessem em atenção a direcção da luz que incidia nos livros, com o objectivo de realçar cores e texturas no pergaminho. O ambiente espartano, sobretudo agora que do altar só resta a estrutura de madeira, sem talha nem estatuária, parece adequado à austeridade apregoada em Cister, segundo as premissas de Bernardo de Claraval, seu refundador (e primo de Dom Afonso Henriques). Mas esta nem sempre foi seguida.
Embora as directivas impusessem o cantochão, mais sóbrio, algumas monjas desafiavam-nas, cantando em polifonia, como tem vindo a ser revelado pelos estudos levados a cabo no âmbito do Projecto ORFEUS, coordenado por Antónia Conde, professora da Universidade de Évora.
Tal levou a que fossem criadas “brigadas de costumes” na ordem, polícias internos que viajavam pelos conventos para averiguar se a regra era respeitada!
Cada códice em pergaminho podia resultar de materiais orgânicos de 50 cabras ou ovelhas, pois as folhas de pergaminho eram produzidas com estas peles!
Há muito ainda por saber sobre os grandes manuscritos medievais. O estudo do foral de Évora, por exemplo, foi fundamental para compreender como eram produzidas estas importantes obras. Até há pouco tempo era aceite que estes documentos eram primeiro escritos, depois iluminados e finalmente revistos por um responsável administrativo do Reino. Só depois seriam assinados e validados pelo rei. No entanto, nem sempre assim aconteceu. Catarina Miguel explica que, no conjunto dos forais manuelinos já estudados pelo Laboratório HERCULES, confirmou-se por exames microscópicos que Dom Manuel I terá assinado a obra sem que esta estivesse terminada, o que constitui uma quebra do protocolo. Foi Fernão de Pina que a firmou em último lugar, tendo sido obrigado a diminuir o tamanho de letra, de modo a não sobrepor a assinatura do monarca.
Cada códice em pergaminho podia resultar de materiais orgânicos de 50 cabras ou ovelhas, pois as folhas de pergaminho eram produzidas com estas peles! Os pigmentos utilizados nas iluminuras e nas letras eram escolhidos criteriosamente: em alguns casos, encontram-se materiais raros e dispendiosos, alguns dos quais tóxicos, como o laranja à base de chumbo. Quase alquimistas, os iluminadores levavam a cabo experiências com diferentes materiais. A urina humana, usada no processo de produção dos livros, era diferente em homens de diferentes idades, como veio a descobrir-se em estudos recentes, pelo que seria também utilizada de forma diversa. Um outro composto – e dos mais cobiçados, responsável por um azul intenso – era o lápis-lazúli. Cristina Dias, professora universitária de Química, comprova-o. Folheando delicadamente, quase que como numa carícia, as páginas de pele seca do grande códice, tal qual o terão feito, há centenas de anos, as freiras cistercienses, sublinha que o lazúli era um dos pigmentos mais procurados por iluminadores, pelo exotismo e brilho da cor. E que apenas alguns o conseguiam pagar. A sua cotação chegou a sobrepor-se à do ouro!
Na sala ao lado, de cabelos negros presos em rabo de cavalo, Catarina debate-se com um microscópio Raman: não é comum ter de o utilizar para analisar objectos com vários quilogramas concentrados em meio metro quadrado! Finalmente, num equilíbrio instável, o feixe vermelho do laser incide sobre as iluminuras texturadas do enorme livro. O exame justifica-se porque “cada ilustrador tem a sua marca”, diz. “Há uma ‘assinatura’ através dos materiais utilizados, das técnicas de pintura, da caligrafia e da estética seguida. Há uma simbologia nas cores escolhidas. Quero estudá-las e perceber o que têm em comum e o que as distingue das que vi na biblioteca do Vaticano. E, sempre que possível, quero identificar o autor.”
“Há uma ‘assinatura’ através dos materiais utilizados, das técnicas de pintura, da caligrafia e da estética seguida. Há uma simbologia nas cores escolhidas.
No momento seguinte, a investigadora ajusta, com as mãos nuas, o livro, motivando sobrolhos franzidos entre os guardiães destas riquezas literárias: “As luvas são mais agressivas para o pergaminho do que a nossa própria pele!”, explica. “Por isso não as usamos quando manuseamos os manuscritos. O inconveniente é que não há espaço para unhas pintadas nem cremes hidratantes nesta profissão...”, desabafa, encolhendo resignadamente os ombros.
Caminhando resolutamente e com passada ligeira, Catarina deixa o laboratório de regresso à Biblioteca de Évora, devolvendo a casa o pesado tratado medieval que acaba de analisar. No interior, Zélia aguarda-a. Desta vez, o cenário é mais parecido com os filmes experimentais de Stanley Kubrick do que com o que se esperaria de uma instituição centenária: uma estrutura maciça de aço, da década de 1960, com três pisos de altura, ergue-se depois da transposição de uma insuspeita porta de madeira trabalhada, do lado oposto ao passadiço de Cenáculo.
Uma vez mais, milhares de livros perfilam-se, ordeira e silenciosamente, desejosos de revelar as suas histórias secretas… A dúvida paira no ar: conseguirá a ciência desvendá-las?