Num projecto incubado na Universidade de Coimbra, exploram-se as propriedades medicinas de várias plantas, juntando ciência e empreendedorismo.

Célia Cabral olha para um amontoado de folhagem fumegante no chão do laboratório, resultado de longas horas de trabalho. Ali acumulam-se dezenas de quilogramas de folha de eucalipto.

Para um mero observador, é simplesmente biomassa florestal e já foi até necessário explicar às funcionárias de limpeza para que serve tão insólito material. Mas aqui, porém, as folhas são a moeda corrente de um lucrativo e promissor mercado. Após dias de destilação, 100kg gerarão, na melhor das hipóteses, um litro de óleo, cujo valor de mercado pode atingir 1.500 euros. O óleo é a alma do negócio. E nos laboratórios da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra, perante a parafernália de equipamentos necessários, vem-nos à mente a expressão “alquimia”, à qual que os investigadores reagem com o sobrolho franzido. Embora para um leigo o cenário não difira muito do imaginário esotérico, o processo é totalmente científico e o ouro toma agora a forma de óleos essenciais.

aromaterapia

Dezenas de quilogramas de folha de eucalipto são preparados para destilação por arrastamento de vapor. Antes, porém, passarão por um destroçador, a fim de facilitar a libertação de essências durante o processo que durará varias horas.

 

Utilizados em aromaterapia, os óleos fazem uso das propriedades medicinais de diversas plantas que nos são familiares. Quantos não se recordam de chás, xaropes e demais receitas caseiras com produtos naturais? Ou do intenso cheiro do Vick VapoRub, solução universal para tosses e constipações? Hoje, a ciência traz uma nova luz a estes produtos, explorando e alargando o seu espectro e deixando para trás a imagem de cura milagrosa de eficácia duvidosa.

Contribuindo para os primeiros passos da aromaterapia em Portugal, a Jardins de Vapor, uma spin-off da Universidade de Coimbra, dedica-se à produção de óleos essenciais a partir de plantas cultivadas exclusivamente no nosso país e em regime de agricultura biológica, facto fundamental para assegurar a sua qualidade e eficácia. Os investigadores Célia Cabral, Gustavo Costa e Tânia Santos juntaram conhecimentos na área da Botânica, Farmácia e Biotecnologia para transpor o fosso entre a realidade laboratorial e industrial e preenchendo um vazio no panorama nacional, onde praticamente não existe produção destas essências. A empresa saltou recentemente do berço académico, estabelecendo-se em meados do ano passado na Figueira da Foz. Ali, sob um inusitadamente soalheiro dia de Inverno, a porta abre–se para mostrar o pulsar do coração desta empresa: um destilador industrial, objecto único em Portugal, cuja história algo insólita nos contam: “Foi projectado e construído pelo professor António Proença da Cunha no final da década de 1980, mas era tão sobredimensionado que, pelo tamanho e falta de uso, acabou arrumado a um canto nas caves da Faculdade de Farmácia. Aqui, faz todo o sentido!”. O dispositivo, com capacidade para 20 ou 40 litros (correspondente a cerca de 10 a 20kg de plantas), permite produzir grandes quantidades de óleos, mas obriga também à existência de matéria-prima abundante para ser produtivo. Esse é, aliás, um dos aspectos com que os investigadores se têm debatido: sendo um mercado novo, a busca de fornecedores fiáveis e consistentes é uma das principais prioridades, sobretudo porque cada encomenda mínima é de 50kg e a produção tem de ser certificada como biológica. Entre várias hipóteses, encontraram dois parceiros regulares: um em Santarém e outro, a norte, em Castro Daire.

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A botânica Célia Cabral manuseia, na Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra, um balão repleto de ervas aromáticas cujas propriedades poderão apresentar viabilidade industrial.

Na serra de Montemuro, a Ervital produz mais de duas centenas de plantas aromáticas  diferentes, destacando-se destas a erva-príncipe, muito popular no uso de infusões, ou o tomilho bela-luz, espécie endémica de Portugal, utilizado como substituto do sal em culinária. Encaixada entre massivos blocos graníticos, a localização é improvável para uma produção agrícola, devido ao clima agreste, solos pobres e algum stress hídrico. Com o minifúndio a imperar, verifica-se no entanto um fenómeno interessante: em quantidade, a produção não pode competir com a dos terrenos mais próximos do mar, mas a concentração e qualidade dos óleos é superior. O facto de não haver fontes de poluição e de a biodiversidade circundante ser elevada completa um conjunto de condições peculiares mas funcionais.

Sob os primeiros raios de luz, numa atmosfera húmida, Joaquim Morgado, engenheiro agrícola, explica, enquanto retira energeticamente as coberturas térmicas que protegem da geada a plantação de erva-príncipe: “Ao contrário de outras culturas, mais viradas para a quantidade, nas aromáticas a produção biológica até apresenta vantagens, porque o que interessa é o resultado final – no caso dos óleos essenciais, o rácio entre matéria-prima e óleo produzido. Nalgumas espécies, chega-se a conseguir uma concentração final de 4,7% da matéria seca, muito superior à obtida a mais baixa altitude”. A escassez de água acaba por ser benéfica, porque água em excesso dilui os componentes activos na planta.

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Alecrim em hidro-destilação, o método utilizado em ambiente laboratorial para quantidades até 1.000gr. 

Após várias visitas às serranias nortenhas, os investigadores trouxeram na bagagem amostras de vinte espécies com interesse potencial para a produção de óleos essenciais, realizando posteriormente testes para avaliar as suas características e viabilidade económica em grande escala. Destas, seleccionaram cinco, que passaram à fase de produção: alfazema, alecrim, erva-príncipe, eucalipto e hortelã-pimenta.

Dependendo da planta, a matéria-prima é a flor ou a folha, e a produtividade varia, chegando a uma relação de 125:1 – um rácio tão baixo justifica o elevado preço, mas é no entanto compensado pelo facto de serem suficientes apenas algumas gotas para que ocorra o efeito terapêutico. O processo de destilação utiliza vapor, criado sob pressão, e que, ao passar pela planta labiada, arrasta os componente voláteis nas suas estruturas externas, dando-se de seguida a condensação. Por ser menos denso do que a água, o óleo flutua, é separado e embalado.

Para que servem, afinal, tão exóticos óleos? A resposta começa a ser dada à entrada da sala de massagens terapêuticas de um dos mais exclusivos condomínios de Coimbra, contíguo à mítica Quinta das Lágrimas, onde aconteceram em tempos os amores proibidos de Pedro e Inês. Ao espreitar pela porta entreaberta, a iluminação ambiente, sofisticada, mescla-se com a música zen e relaxantes aromas. Debruçada sobre a marquesa, uma massagista faz deslizar as mãos pelas costas reluzentes de um paciente cuja expressão calma e subtilmente sorridente atesta a sua eficácia. Utilizados tanto em massagem ocidental como em shiatsu, os princípios activos destes extractos induzem relaxamento, permitem rápida recuperação muscular e proporcionam bem-estar.

Em busca de outros usos, basta atravessar a futurista ponte pedonal sobre o Mondego, entrando no emaranhado de ruelas da Baixa em busca de ervanárias e lojas de produtos naturais. Uma análise às prateleiras revela que muitos suplementos alimentares e produtos afins contêm nos ingredientes derivados de óleos essenciais. A facilidade de aplicação e os reduzidos efeitos secundários permitem, por exemplo, que uma ou duas gotas de óleo de menta aplicadas nas têmporas eclipsem as indesejadas dores de cabeça. Indirectamente, são introduzidos em detergentes, produtos de limpeza, cosmética e industria alimentar – azeite e vinagre são exemplos, pelas características organoléticas. Mas para além do cheio e sabor, são anti-oxidantes, tornando-se por isso bons conservantes naturais.

Ao contrário de outros países, em que a categoria profissional de aromaterapeuta está regulamentada, em Portugal existe ainda um vazio legal. A multitude de terapias alternativas não ajuda, sentindo-se algum cepticismo na opinião pública, perante algo que não conhece bem e que pensa carecer de validação científica. Procurando responder a esse facto, foi criada este ano a Associação Portuguesa de Aromaterapia. A sua presidente, Raquel Costa, afirma: “A aromaterapia medicinal conta com um vasto leque de aplicações, nomeadamente no tratamento de reumatismo, problemas hepáticos e digestivos, além de fortalecer o sistema imunitário e ser eficaz no controlo do sono e da dor. Pode ser inclusivamente útil como terapia complementar em doentes oncológicos.”

Um dos aspectos a limar é a melhoria do controlo da produção e da certificação. Como qualquer produto medicinal, os óleos essenciais têm qualidades importantes, mas que indevidamente produzidos ou utilizados podem tornar-se tóxicos. Portugal está no entanto no bom caminho, reconhecido como produtor de excelência de algumas plantas, em especial o alecrim cineol e o eucalipto, sendo os óleos nacionais utilizados pelos principais laboratórios mundiais.

Prova de uma nova indústria que se agita, o aroma penetrante do óleo recém-extraído paira na sede da Jardins de Vapor. À beira do estuário do Mondego, a azáfama que rodeia a equipa é grande: envoltos numa espessa nuvem de fumo, respirando o ar abafado, Tânia recolhe as últimas gotas, Gustavo despeja o destilador e Célia discute parcerias de negócio com um bem-humorado basco que acaba de chegar. Dono de uma figura tão exótica quanto o seu nome, Jesus Zunzunegui planeia utilizar estes óleos essenciais nos produtos alimentares e cosméticos que cria, baseados no sal e azeite portugueses.

O final do dia chega entretanto, e com ele mais um carregamento de óleos essenciais aguarda expedição. Dezenas de diminutos frascos com laivos dourados, alinhados criteriosamente, são testemunho de que a investigação científica não se cinge mais às paredes das universidades, trazendo novas soluções para problemas antigos.