Após incontáveis curvas que negoceiam a acidentada orografia, o Douro surge em todo o seu esplendor. A superfície espelhada refulge com os raios do sol de final do Verão.
A terra dos socalcos tem um tom ocre-pálido, atestando que a chuva não se sente há muito nestas paragens. A temperatura mantém-se alta, muito alta, e as únicas pingas que se conhecem aqui são as do suor que rolam da fronte de dezenas de trabalhadores da vindima.
O Alto Douro é uma das zonas mais quentes e secas do país. Classificada como Património Mundial pela UNESCO em 2001, tem vindo a sentir, de forma por vezes aguda, o efeito das alterações climáticas. Verões precoces, longos e quentes, menor precipitação e uma percepção generalizada de que a vinha tem uma dificuldade crescente para se adaptar ao novo normal climático fizeram soar os alarmes. A tórrida semana de Julho passado, a mais quente de sempre no mês de Julho, com temperaturas generalizadas a rondar 45ºC, foi o mais recente episódio de uma narrativa de contínuo aquecimento, que dificilmente se inverterá nos tempos mais próximos.
Como a vinha no Douro (em especial, o vinho do Porto) representa o mais importante sector de actividade económica na região (em 2021, correspondeu a uma produção de 124 milhões de litros e vendas superiores a 600 milhões de euros), a resposta não se fez esperar.
No Pinhão, o coração da zona nobre para a produção de vinho do Porto, a Quinta do Bomfim surge à beira-rio, rodeada de centenas de socalcos geométricos. Ali está instalada a equipa de investigação e desenvolvimento da Symington Family Estates, família histórica no Douro, de origem britânica, actual segunda maior produtora de vinho do Porto e uma das mais activas entidades de investigação sobre a vinha na região. Enérgico, Fernando Alves, o responsável pela estrutura de I&D da empresa, percorre bardo após bardo, sob um profundo céu azul, analisando as uvas coloridas e tomando notas.
Na vinha da coleção de castas da Quinta do Ataíde, com a humidade da noite ainda presente, Fernando Alves usa uma câmara de Scholander para medir o potencial aproximado de água nos tecidos vegetais.
A vindima é a conclusão de um ano de trabalho, que se prolonga durante cerca de um mês, no final do Verão, dados os diferentes estados de maturação das uvas ao longo do vale. Apesar da ciência e conhecimento desenvolvidos ao longo de gerações e centenas de anos, há uma componente de intuição na tomada de decisões que contribui para a magia da criação dos melhores vinhos do Porto. A alma deste néctar está no coração e na mente destes artífices. Numa das curtas pausas, o semblante de Fernando ensombra-se: “As alterações climáticas estão a acontecer, é inquestionável”, alerta. “O aquecimento global é mais notório, mas os fenómenos meteorológicos extremos, como a precipitação extrema na forma de granizo ou o vento, terão tendência a aumentar, em frequência e intensidade, podendo destruir em minutos anos de trabalho.”
O transporte de vinho do Porto fazia-se em barcos rabelos, no século XIX. Estas embarcações movidas pela corrente conduziam o vinho do Alto Douro às caves de Gaia. Subiam depois o rio numa jornada épica, à vela, mas também à força de braços e de juntas de bois nas margens (quando o vento faltava). Fotografia: Symington Family Estates
A produção vitivinícola é, em Portugal, um sector económico que sustenta milhares de famílias e empresas. O país afirma-se como um produtor de qualidade, mas a falta de escala e de imagem no exterior deixa-o aquém de Itália, França ou Espanha. Por outro lado, têm vindo a surgir novos produtores de vinho, como os Estados Unidos, a Argentina ou a Austrália. Mas o Douro é um caso especial. É a maior mancha de vinha de encosta do mundo, correspondendo a 53% da área total. E este dado torna particularmente desafiante a mecanização do trabalho (em particular, a vindima), dado o relevo acidentado das encostas e a forma como estas foram domadas pelo homem, com socalcos que permitiram a plantação de videiras em locais aparentemente impossíveis.
Actualmente, a vindima continua a ser feita manualmente, por rogas (grupos de trabalhadores rurais), com pequenos tractores que percorrem os bardos e recolhem as caixas carregadas de uvas. Noutras regiões, muitas produções já se fazem com recurso a maquinaria, similar à usada nas produções intensivas de olival. Um grande tractor passa por cima da linha de videiras, abraçando-as e, através de um engenhoso dispositivo de varas vibratórias, faz cair os bagos de uva em recipientes rotatórios que são esvaziados num reservatório na parte posterior do tractor.
Em encostas com pendentes tão acentuadas como as do Douro, não só é difícil a máquina progredir em cima das videiras, num patamar estreito, como não se consegue dar a volta no final de cada linha. A solução passou por adaptar e desenvolver uma máquina de vindimar (com lagartas) a estas condições e prever o desenho de futuras plantações de vinha tendo esta necessidade em conta. A chegada deste tipo de maquinaria ao Douro é só uma questão de tempo, pois já foram testados com sucesso vários protótipos na última década. Requerem apenas 1,8 a 2 metros, funcionando em terraços, patamares e curvas a uma velocidade de 2km/h. Isto traduz-se na colheita de mais de dez toneladas de uvas por dia, o equivalente ao labor de uma dúzia de trabalhadores experientes.
Apesar de a indústria valorizar a vindima manual, a rapidez e a flexibilidade da vindima mecânica são um grande trunfo, permitindo vindimar no momento certo e fazer chegar as uvas prontamente à adega, preservando assim toda a frescura. Na verdade, a chegada do automatismo ao Douro não se deve apenas a motivos técnicos – há um lado social oculto, que se prende com a desertificação do interior do país. É cada vez mais difícil contratar mão-de-obra sazonal para a vindima. “Não há gente para trabalhar”, ouve-se o lamento recorrente em toda a região. Por isso, hoje, uma boa parte dos que vêm são imigrantes, recrutados por empresas de trabalho temporário.
Um lagar robótico na Quinta dos Malvedos marca uma viragem importante na mecanização da produção vinícola na região, substituindo a lenta pisa tradicional, hoje quase uma relíquia do passado, embora ainda preservada por alguns.
Também nos lagares os processos evoluem e a tradição dá lugar à inovação. As estruturas mecanizadas têm vindo a substituir a pisa tradicional ao longo do rio. A tradição dos icónicos grupos de homens de calças arregaçadas e pernas molhadas pelo sumo das uvas em grandes lagares de granito tende a desaparecer. Charles Symington, o enólogo principal da casa, vigia o funcionamento das grandes máquinas de aspecto futurista, na Quinta dos Malvedos. Os olhos azuis escrutinam com atenção a massa vermelho-escura dos bagos pisados, cuja textura avalia com os dedos. E explica o cenário: “Estes lagares são de aço inoxidável, asséptico, e dispõem de “pés” de silicone, móveis, que pisam de forma uniforme as uvas, simulando na perfeição a acção e temperatura da pisa a pé humana”, explica. “Hoje, não temos dúvidas de que a qualidade da pisa mecânica produz vinhos tão bons ou até melhores do que a tradicional.” A patente desta invenção da Symington é aberta, o que permitiu aos diferentes produtores abraçar a inovação sem restrições.
Dadas as evidências crescentes de que a mudança no clima veio para ficar, como se pode minimizar o impacte numa região tão dependente económica e socialmente da vinha? Em busca de respostas, Fernando Alves costuma despertar quando a noite ainda vai a meio. Esta madrugada é só mais um dia normal no “escritório”.
Num Land Cruiser que já fez muitas vindimas, avança aos solavancos em caminhos de terra batida. Pára de vez em quando e corta a folha de uma videira. De lanterna frontal, avalia o estado vegetativo da vinha através da análise do potencial hídrico da sua seiva, com recurso a um aparelho de aspecto complexo, uma câmara de Scholander. Bem no coração do vale da Vilariça, na Quinta do Ataíde, o dia começa finalmente a despontar, tímido, rosado, com uma brisa ainda fresca. Esta é uma vinha especial, pois a uma vasta colecção de castas foi plantada em 2014 com o objectivo de conhecer e avaliar o comportamento de dezenas de variedades diferentes, a uma escala pouco usual: são 53 castas, cada uma com 200 pés.
A família Symington é uma das mais antigas no negócio no Douro e, presentemente, a segunda maior produtora de vinho do Porto. Da esquerda para a direita e de cima para baixo, Dominic, Rupert, Charles, John (actual director-geral) e Paul.
Inclui as principais do Douro, outras menos conhecidas, de várias regiões do país e também algumas internacionais, tanto brancas como tintas. A esta colecção juntou-se uma segunda, no Pinhão, que replica 29 castas da colecção da Quinta do Ataíde, agora complementada por uma terceira, na cota de 600m, apenas dedicada a castas brancas.
O projecto visa conhecer a fundo cada casta, o seu comportamento, fases de desenvolvimento, fenologia e como se comportam em função do clima. Os resultados já começaram a surgir e foram apresentados recentemente em Bordéus, num congresso internacional: a fase do “pintor”, período em que os bagos ganham cor, está com uma amplitude de 25 dias, um indicador positivo, pois significa que existem castas com ciclos longos, que se adaptam melhor a condições meteorológicas imprevisíveis. Toda essa informação é valiosa, porque nas palavras do investigador, “o que não é bom agora poderá vir a ser no futuro”.
O esforço para compreender o clima do Douro vem de longe e vai mais longe. Há uma nova plataforma com mapas de satélite para serviços de apoio à tomada de decisão, aliado a sensores no terreno. O projecto VITIGEOSS oferece soluções para uma maior sustentabilidade da vinha a longo prazo. O principal objectivo é aproveitar o potencial das iniciativas europeias de observação da Terra a partir do espaço para implantar uma solução de informação comercial inovadora que optimize o cultivo sustentável da videira por meio de sistemas de suporte à decisão em fenologia, irrigação, fertilização, doenças e gestão de negócios e sustentabilidade. Naturalmente, a monitorização do clima é uma maratona, na medida em que uma série climática deve ter pelo menos 30 anos, mas esta já começou na região, de forma estruturada desde o início do século XXI. Há neste momento 16 pontos de recolha de dados climáticos no Douro e, nas suas 1.400 parcelas de terreno, a Symington conta já com um largo histórico de 12 anos de comportamento da vinha. A receita para a adaptação passa por procurar o melhor terroir, com informação de Sistemas de Informação Geográfica, avaliar cada casta, em termos qualitativos e produtivos, e ver onde e em que condições se dá melhor, para delinear então a zonagem vitícola. Conhecendo o clima e o terroir, escolhe-se a casta que melhor se lhes adapta.
Outro projecto que está quase a dar frutos práticos é o do robot VineScout. Resultante de um consórcio que envolve as universidades de Valência e La Rioja, além da própria Symington, este pequeno dispositivo autónomo, sem condutor, com aspecto de um tractor de pequenas dimensões, percorre as vinhas e reúne em tempo real informação preciosa para a tomada de decisão dos técnicos e enólogos. Os dados, recolhidos de dia ou de noite, com diversos sensores, fornecem informação sobre a reflectância das folhas, a humidade, a temperatura ambiente e a temperatura da folha. Estes elementos são fundamentais para o acompanhamento e gestão eficaz do ciclo vegetativo, em concreto durante a fase da maturação das uvas.
O protótipo do VineScout, na sua última versão, mede um conjunto de parâmetros na vinha em tempo real, que permitirão minimizar os efeitos das alterações climáticas. Fornece informação sobre o estado da vinha e a qualidade das uvas.
A avaliação minuciosa do estado hídrico da vinha permite aos técnicos decidirem intervenções e avaliarem a qualidade das diferentes uvas dentro da mesma parcela. Após os ensaios com três protótipos, o dispositivo está agora pronto para ser produzido em série. Este robot tem previsto um custo relativamente baixo (de 15 a 20 mil euros), com a vantagem de ser modular, com sensores já disponíveis no mercado, intermutáveis e actualizáveis ao longo do tempo.
Ao fim de vários dias no Douro, atravesso-o num pequeno barco de madeira, da Senhora da Ribeira para a Quinta do Vesúvio, em tempos propriedade da famosa “Ferreirinha”, que revolucionou a produção de vinho do Porto no século XIX. Num daqueles raros dias sem vento e em que a superfície do rio se torna um imenso espelho, assisto ao ajuntamento da roga junto dos enormes lagares. A pisa tradicional, a pé, começou. Primeiro de forma ordeira e ritmada, no “corte”, depois ao som de música e gargalhada. É uma viagem a um tempo que se esgota à medida que o mercúrio sobe nos termómetros. A mudança está no horizonte e nos próximos anos saberemos se o Douro se soube adaptar.