A criação de universidades nalgumas regiões do interior estancou a hemorragia demográfica de décadas e ambiciona tornar-se a alavanca determinante para mudar um estigma geográfico e cultural

demasiadopesado para o país. Pelos dados do “Science Citation Index”, que analisa a origem dos artigos em todas as revistas científicas, a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) duplicou os trabalhos publicados e viu quintuplicado o número de citações em relação a 2004.

Entre 2006 e 2008, as publicações de investigadores da universidade passaram de 153 para 310 artigos. Em termos proporcionais, tomando em conta o número de investigadores e alunos, foi a maior evolução entre todas as universidades portuguesas. Este forte impulso concedido à produção científica valida o esforço da instituição para se adaptar às mudanças que o ensino superior a nível europeu exige: mais do que nunca, as universidades têm de dar resposta a um mercado de trabalho em metamorfose e à revolução tecnológica. O caso transmontano sugere uma mudança já em curso, mas será que para lá do Marão só estudam os que de lá são... ou já não será bem assim?


 

Para encontrar respostas, é importante começar pela arqueologia da instituição. A sua génese remonta a 1973, ano da criação do Instituto Politécnico de Vila Real, então muito ligado ao desenvolvimento agrário da região. Seis anos depois, converteu-se em Instituto Universitário de Trás-os-Montes e Alto Douro, e finalmente, em 1986, fruto do trabalho desenvolvido no ensino e investigação científica, o governo aprovou a sua transformação em universidade.

Para o vice-reitor Eduardo Rosa, o período entre 2000 e 2002 foi um momento de viragem crucial, pois correspondeu à implementação de uma via mais ligada à investigação. Os objectivos definidos para a reestruturação de 2007 funcionaram igualmente como catalisadores da excelência pretendida: aumentar as parcerias nacionais e internacionais para fomentar a massa crítica, captar mais bolseiros de investigação e pós-graduados para reforçar a produção científica, tornar mais coerentes os diferentes centros de investigação, promovendo as indispensáveis sinergias e limitando o número de grupos dentro de cada centro.

Caminhos ciência

Durante uma intervenção cirúrgica, no hospital veterinário da UTAD, os efeitos anestésicos num cão são avaliados em tempo real. Estes modernos métodos de apoio são também cruciais para o tratamento de animais selvagens, que depois recuperam num Centro Hospitalar específico, resguardado na extremidade do campus.

Aos olhos de quem vem de fora, uma incursão no campus da UTAD revela-se surpreendente, desde logo pela sua dimensão e paisagem. São cerca de 80 hectares, distribuídos por três quintas na margem esquerda do rio Corgo, que exibem mais de mil espécies botânicas, naquela que é considerada uma das colecções vivas mais importantes de Portugal.

É aliás entre bétulas, carvalhos, vinhas e árvores de fruto que se situam os edifícios onde funcionam os diferentes centros de investigação, todos ligados por uma ampla rede viária e pelo serviço de transportes públicos da cidade. Em boa verdade, existe aqui uma cidade dentro de outra – uma teia complexa que abrange unidades de investigação e ensino, serviços, estruturas especializadas e outras entidades. Num instante, podemos passar das instalações desportivas onde treinam atletas de alta competição aos paladares de um restaurante de design contemporâneo; dos espaços amplos da biblioteca central a um hospital veterinário onde se monitorizam efeitos anestésicos em tempo real.

Para os cerca de 6.500 alunos e 1000 trabalhadores docentes que aqui têm parte das suas vidas, este deve ser o contexto perfeito para trabalhar. Em certos dias do ano, parece que estamos no Norte da Europa, principalmente quando o Outono veste de dourado a invulgar diversidade de folhosas ou quando a neve começa a cobrir os cumes do Marão e do Alvão, que dão profundidade majestosa ao cenário.

No entanto, esta imagem rapidamente se desvanece, pois o campus está umbilicalmente ligado à região onde se insere: a ligação à paisagem transmontana e duriense, através das culturas tradicionais do azeite e do vinho, está bem patente em vários projectos, incluindo alguns protagonizados por investigadores estrangeiros que a universidade soube atrair.

Richard Bennett veio do Reino Unido para integrar o Centro de Investigação e Tecnologias Agro-Ambientais e Biológicas (CITAB) e actualmente conduz estudos sobre o aproveitamento de co-produtos agro-alimentares. Em Trás-os-Montes há diversas indústrias cujos resíduos são passíveis de reutilização, quer através da integração no ciclo produtivo da própria empresa que os gera, quer na sua comercialização para outro tipo de indústrias. Este processo, com óbvios benefícios ambientais e potenciais vantagens económicas, tem, no entanto, de respeitar apertados critérios em relação ao custo, à lógica de utilização e à segurança sanitária, dependendo dos casos; por outras palavras, tem de ser exequível. Mas tudo começa com a identificação da aplicação prática para um co-produto: “A recolha da azeitona por vibração produz muitas folhas que podem ser aproveitadas porque são ricas em antioxidantes e fibras, o que as torna potencialmente úteis para alimentação animal”, diz. “Só a Cooperativa de Olivicultores de Valpaços produz aproximadamente duas mil toneladas de folhas por colheita.”

O investigador prossegue com um rol de exemplos baseados nas culturas da região: os pés de cogumelos, rejeitados no processo produtivo, mas ricos em fibras; as cascas de castanha, noz e avelã, ricas em vitamina E; o mosto resultante da produção vinícola como excelente fonte de antioxidantes, corantes naturais e antimicrobianos. Tudo isto é normalmente considerado resíduo e, no entanto, trata-se de matéria-prima para as indústrias cosmética, farmacêutica, alimentar – humana e animal – e até de curtumes.

A pouca distância dos laboratórios onde Richard Bennett trabalha, situa-se o Centro de Genética e Biotecnologia. A equipa onde a investigadora Paula Lopes se integra desenvolveu um processo capaz de extrair DNA do azeite e do vinho, com vista à identificação inequívoca das variedades presentes. Dito desta forma, a “Traçabilidade em Alimentos” parece estar muito distante do cidadão comum, mas se tivermos em conta que a certificação de azeites DOP (Denominação de Origem Protegida) procura garantir ao consumidor a quantidade e qualidade de certas variedades no produto final, e que estes azeites são potenciais alvos de fraude pelo seu valor de mercado, então a investigação passa a ser muito palpável. Com o vinho, a motivação é semelhante, uma vez que a qualidade e o valor que lhe estão associados dependem das castas utilizadas e permitidas pela respectiva região demarcada. “A certificação de produtos é cada vez mais importante no seio da União Europeia, por isso este é um trabalho de investigação que envolve entidades de vários países”, conclui Paula Lopes.

Do vinho para o desporto. A área do Desporto, Saúde  e Desenvolvimento Humano contribuiu decisivamente para o inquérito promovido pelo Observatório Nacional para a Actividade Física, recolhendo informação nos distritos de Vila Real, Bragança e Guarda, e viu projectos pioneiros serem financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. O trabalho é quase sempre feito nos dois sentidos: tanto podemos ver aqui atletas em treino e avaliação exaustivos, como há projectos a decorrer em regime de consultoria externa, como acontece com os acordos de colaboração que a UTAD mantém com clubes desportivos de âmbito local e nacional.

Também noutras áreas, por vezes é a sociedade que vem à procura de respostas na universidade. Recentemente, uma em- presa de plantas ornamentais sediada no Sul do país veio a Vila Real lançar o desafio para a criação de um método fiável e não destrutivo para a datação de árvores seculares e milenares – no caso concreto, oliveiras. José Lousada, investigador do CITAB e docente do Departamento de Ciências Florestais e Arquitectura Paisagista, abraçou a ideia e o método inovador que desenvolveu acabou por ser patenteado. Actualmente, é a UTAD que emite os certificados que atestam a idade das árvores vendidas pela empre- sa, recebendo por isso as contrapartidas acordadas em protocolo. Durante décadas, o interior do país parecia condenado ao imaginário colectivo de um sítio para onde ninguém vai e de onde todos querem sair. Em Trás-os-Montes, procura-se agora fechar um ciclo e a universidade assume-se cada vez mais como impulsionadora da mudança. As mais-valias económicas e sociais estão à vista... Só é preciso agarrá-las.