Mergulhar. Estava de férias com a família em Guerrero, no México. O dia estava escaldante. Tirou os calções de banho da cadeira, vestiu-os e saltou para a piscina. Em vez de um alívio fresco, sentiu uma dor escaldante subindo pela parte posterior da sua coxa. Arrancando os calções, saltou nu para fora da piscina, com a perna a arder.
Atrás de si, uma criatura pequena, feia e amarela nadava na água. Recolheu-a num tupperware e foi rapidamente transportado até às instalações locais da Cruz Vermelha, onde os médicos identificaram o seu agressor: um escorpião da espécie Centruroides sculpturatus, uma das mais venenosas da América do Norte. A dor agonizante de uma picada é geralmente seguida de aparentes choques eléctricos que percorrem o corpo. Por vezes, as vítimas morrem.
Felizmente para Michael (que me pediu para não mencionar o seu nome completo), este escorpião é comum naquela zona e havia um antídoto disponível. Levou uma injecção e, cerca de trinta horas depois, a dor desapareceu.
Ninguém poderia ter previsto o que aconteceu a seguir. Nos oito anos anteriores, Michael padecera de espondilite anquilosante, uma doença crónica auto-imune do esqueleto que é uma espécie de artrite da coluna. Nos casos piores, a coluna pode fundir-se, deixando o paciente imobilizado e em agonia para sempre. “As costas doíam-me todas as manhãs e durante as crises agudas a dor era tão horrível que nem conseguia andar”, conta.
Porém, dias depois da picada do escorpião, a dor desapareceu, e agora, dois anos depois, ele permanece quase sem dores e sem a maioria da medicação. Sendo ele próprio médico, Michael mostra-se cauteloso e não sobrevaloriza o papel desempenhado pela peçonha do escorpião na sua recuperação. Apesar disso, afirma: “Se as dores aparecessem de novo, eu deixaria que aquele escorpião voltasse a picar-me.”
A peçonha é a substância que escorre dos dentes e ferrões de criaturas. É a assassina mais eficiente da natureza. Foi requintadamente aperfeiçoada para imobilizar um corpo de imediato.
Este líquido complexo está repleto de proteínas e péptidos tóxicos, cadeias curtas de aminoácidos, ou “miniproteínas”. Estas moléculas podem ter diferentes alvos e efeitos, trabalhando de forma sinérgica. Algumas atingem o sistema nervoso, paralisando-o através do bloqueio da transmissão de mensagens entre os nervos e os músculos. Outras destroem moléculas para que as células e os tecidos colapsem. A peçonha pode matar coagulando o sangue e provocando paragem cardíaca, ou impedindo-o de coagular e desencadeando uma hemorragia mortal.
Todas as peçonhas têm multitarefas. A diferença entre a peçonha e o veneno é que a peçonha é inoculada ou introduzida nas vítimas através de órgãos especializados para o efeito, ao passo que o veneno é ingerido. Dezenas ou centenas de toxinas podem ser transmitidas numa só mordedura, algumas com funções redundantes e outras com funções bastante singulares. No processo evolutivo, a aquisição de armas de defesa e de ataque por presas e predadores é constantemente ajustada. As combinações drasticamente potentes podem dar resultado: imagine que administra veneno a um adversário, esfaqueando-o em seguida e acabando por dar-lhe um tiro na cabeça. Isto é a peçonha em acção.
O especialista Zoltan Takacs agarra uma Laticauda colubrina nas águas das Fiji. A mordedura desta serpente causa paralisia nas suas presas, as enguias, impedindo-as de fugir.
Por ironia, as propriedades que tornam a peçonha mortal são as mesmas que a tornam tão preciosa para a medicina. Várias toxinas de peçonha atacam precisamente as mesmas moléculas que devem ser controladas para tratar as doenças. A peçonha actua rapidamente. Os seus componentes activos visam moléculas específicas, encaixando-se nelas como chaves em fechaduras. A maioria dos fármacos funciona da mesma forma, encaixando-se e controlando fechaduras moleculares para anular efeitos prejudiciais. Os melhores fármacos existentes para as doenças cardíacas e a diabetes foram obtidos a partir de peçonha. Novos tratamentos para doenças auto-imunes, cancro e doenças dolorosas poderão estar disponíveis daqui a uma década.
“Não nos referimos apenas a algumas novidades, mas a classes inteiras de fármacos”, afirma Zoltan Takacs, herpetologista especialista em toxinologia e explorador emergente da National Geographic Society. Até à data, menos de mil toxinas foram analisadas de forma pormenorizada tendo em vista o seu valor medicinal e apenas uma dezena de fármacos importantes foi até agora comercializada. “É possível que existam mais de vinte milhões de toxinas de peçonha à espera de análise”, diz Zoltan. “É colossal. A peçonha abriu novas avenidas na farmacologia.”
As toxinas derivadas de peçonhas e venenos esclarecem-nos igualmente sobre o modo de funcionamento das proteínas que controlam muitas funções celulares essenciais ao organismo.
“Procuramos novos compostos que aliviem o sofrimento humano”, disse Angel Yanagihara, da Universidade do Hawai. “Porém, enquanto o fazemos, podemos descobrir o inesperado.” Movida em parte pelo desejo de vingança contra uma alforreca da espécie Carybdea alata que a mordeu há 15 anos, Angel descobriu um potencial agente regenerador de lesões nos túbulos que contêm a peçonha da alforreca. “Não tinha relação com a peçonha”, disse. “Ao tornar-me íntima de um animal nocivo, obtive conhecimentos que ultrapassaram as minhas expectativas.”
Mais de cem mil animais evoluíram para produzir peçonha: serpentes, escorpiões, aranhas, alguns lagartos, abelhas, criaturas marinhas como polvos, peixes e búzios do género Conus. O ornitorrinco macho armazena peçonha no interior de espigões nos tornozelos e é um dos poucos mamíferos peçonhentos. A peçonha e os seus componentes emergiram de forma independente. A composição da peçonha de uma espécie de serpente varia em função da geografia, da idade dos animais ou até mesmo do seu regime alimentar.
Embora a evolução esteja a afinar estes compostos há mais de cem milhões de anos, a arquitectura molecular da peçonha é muito mais antiga. A natureza reconverte a finalidade de moléculas essenciais oriundas de todo o organismo para serem úteis aos animais em funções de predação ou protecção. “Faz sentido que a natureza aproveite as estruturas previamente existentes”, afirma Zoltan. “Para fabricar uma toxina que ataque o sistema nervoso, é mais eficiente agarrar num modelo-padrão do cérebro que já funcione naquele sistema, fazer-lhe pequenas alterações e transformá-lo numa toxina.”
Como é óbvio, nem toda a peçonha mata. Mas a peçonha serve sobretudo para garantir, ou pelo menos para imobilizar, a refeição seguinte de um animal. Os seres humanos são frequentemente vítimas acidentais. A Organização Mundial da Saúde estima que todos os anos cerca de cinco milhões de mordeduras matem cem mil pessoas, embora o número real seja presumivelmente muito mais elevado.
Conhecida por cuspir a sua peçonha, esta serpente é criada em abrigos subterrâneos em Le Mat Village, em Hanói. As cobras são vendidas para consumo alimentar no Vietname, tal como noutros países do Sudeste Asiático.
Zoltan takacs, de 44 anos, nascido na Hungria, abandonou recentemente a Universidade de Chicago para se tornar empresário no ramo das toxinas. Quando não está a trabalhar no laboratório, pode ser encontrado a lutar com víboras-de-aríete no Sudão do Sul, a recolher amostras de serpentes no Vietname ou a extrair peçonha de víboras no Congo. O seu objectivo é recolher matrizes para “bibliotecas de toxinas” que acabarão por incluir toxinas provenientes da peçonha de todos os animais à face da Terra.
A sua demanda também o leva até ao mar. Vista ao longe, Mabualau, a minúscula ilha de coral revestida de árvores, cerca de 13 quilómetros a leste da ilha principal do arquipélago das Fiji, Viti Levu, parece um paraíso tropical. Antes de ancorarmos a nossa embarcação, Zoltan salta borda fora e encaminha-se para a costa.
Serpentes marinhas de riscas azuis e brancas e escamas lisas prosperam neste local, ziguezagueando junto ao fundo arenoso. Estas serpentes andam por terra e no mar e necessitam de ar para respirar, trepando às margens da ilha, de coral duro e arenito. Enrolam-se sob as conchas e a folhagem para digerir as suas refeições e mudam de pele em cada três meses.
Estas serpentes alimentam-se quase exclusivamente de enguias e a sua peçonha neurotóxica evoluiu em conformidade. As enguias são grandes e fortes, possuem dentes afiados e é difícil fazê-las sair das suas tocas. “A serpente precisa de uma peçonha rápida e potente, dirigida às partes vitais do organismo, para conseguir a sua refeição correndo poucos riscos de se ferir a si mesma”, explica Zoltan. Há uma eternidade que a peçonha da serpente e as defesas da enguia travam uma batalha pela supremacia evolutiva.
Os recifes albergam também anémonas peçonhentas, polvos-de-anéis-azuis e uma variedade de peixes cuspidores de toxinas, acerca dos quais pouco se sabe. E búzios do género Conus. Belas como jóias, cada uma das mais de seiscentas espécies desenvolve uma mistura singular e mortífera, algumas suficientemente fortes para matar um ser humano com uma única dose.
Depois de um mergulho a baixa profundidade, Zoltan passeia junto à água segurando um tesouro: uma serpente debate-se na mão e um búzio do tamanho de um punho está fechado na outra. “É o melhor que o mar tem para oferecer”, diz, sorrindo. “Tenho centenas de toxinas nas minhas mãos.”
Zoltan monta um laboratório de campo no barco com os componentes essenciais: contentores com tampa, tubos cheios de conservantes, seringas e agulhas, um alicate para cortar amostras de tecido, uma máquina fotográfica para documentar os padrões de cada animal e uma luva grande e negra. As serpentes marinhas são bastante passivas e, por isso, as probabilidades de ser mordido são quase nulas. Mas Zoltan é alérgico à peçonha e, além dos habituais efeitos paralisantes, esta pode causar-lhe um choque anafiláctico. Também é alérgico ao antiofídico, por isso é extraordinário que tenha sobrevivido a seis mordeduras de serpente.
Nos recifes do oceano Pacífico, a peçonha da espinha dorsal do peixe-pedra pode não o matar, mas as dores serão tão fortes que dará por si a implorar que lhe cortem
o membro afectado.
Ajudo-o, segurando a serpente pela cauda, de barriga para cima. Zoltan agarra na extremidade onde se encontra a cabeça, estica a serpente em todo o seu comprimento e desliza um dedo sobre o seu corpo, procurando sentir o coração. Quando o localiza, pulsando contra a pele a cerca de um terço do percurso, insere cuidadosamente uma agulha e recolhe sangue. Também corta um fragmento de tecido da cauda e tira algumas fotografias antes de colocar a serpente novamente dentro de água, observando-a enquanto ela se afasta a nadar para longe.
Zoltan processa várias serpentes durante os dias que passamos na água. E sempre que encontramos pescadores, ele dirige-se-lhes para perguntar se viram alguma serpente, na esperança de tomar conhecimento de outras espécies existentes na zona. “Se vir uma com riscas amarelas e pretas, pode dizer-me?”, pergunta.
No laboratório, ele procura variações na composição de toxinas entre diferentes espécies, dentro da mesma espécie e, até, na mesma população. A sua investigação centra-se igualmente nos elementos que tornam os animais resistentes à sua própria peçonha, informação que poderá ajudar a produzir melhores fármacos terapêuticos derivados de peçonha.
Fiquei admirada por Zoltan não extrair peçonha da serpente marinha, mas ele explicou que o seu trabalho se baseia no DNA. A peçonha propriamente dita pode fornecer informações importantes, mas quando temos tecidos, “podemos extrair o modelo de todo o animal, incluindo da maioria das suas toxinas”, diz. Cada toxina é expressa por meio de um gene e os genes podem ser copiados e manipulados. “Podemos criar quantidades enormes de uma vez e depois darmo-nos ao luxo de modificarmos as toxinas de qualquer maneira que queiramos e analisá-las rapidamente para identificar a versão com efeitos mais prometedores.”
Na Universidade de Chicago, Zoltan foi o co-inventor do Designer Toxins, um sistema que permite descobrir variantes dos originais da natureza, criando toxinas recombinantes para posterior comparação do seu valor terapêutico.
O Designer Toxins reuniu milhões de anos de sabedoria evolutiva preservada nas peçonhas. Isto possibilita a criação de muitas variantes (mais de um milhão até à data), tornando potencialmente mais eficientes as tentativas de fabrico de fármacos. “Estamos a explorar a biodiversidade molecular na natureza”, afirma Zoltan.
As curas baseadas em peçonhas não são novidade. Por exemplo, textos em sânscrito do século II d.C. referem-nas. Aproximadamente no ano 67 a.C., Mitrídates VI, rei do Ponto, um inimigo de Roma estudioso de toxicologia, foi supostamente salvo duas vezes no campo de batalha por xamãs que lhe aplicaram peçonha de Vipera ursinii nos ferimentos. Aliás, a peçonha cristalizada destas serpentes é actualmente exportada como medicamento pelo Azerbaijão. A peçonha de cobra, utilizada durante séculos pelas medicinas tradicionais chinesa e indiana, foi introduzida no Ocidente na década de 1830 como remédio homeopático para as dores. “Materia Medica”, da autoria de John Henry Clarke, publicado na viragem para o século XX, refere que a peçonha proporciona alívio para várias maleitas, incluindo as causadas por peçonha. “Como cura, devemos sempre tentar utilizar a mesma droga que produziu os sintomas”, escreveu. Mas caminhando sobre uma linha tão fina, é provável que os médicos do passado apressassem as mortes dos seus pacientes tão frequentemente como prolongavam as suas vidas.
Este restaurante em Le Mat Village vende infusões de serpente, ovos de serpente e lagartos. Os aldeãos dizem que beber estes preparados alivia as dores, mantém os órgãos saudáveis e aumenta a virilidade.
A ciência da transformação de peçonhas em curas popularizou-se na década de 1960, quando o médico inglês Hugh Alistair Reid sugeriu que a peçonha da víbora malaia poderia ser utilizada contra a trombose venosa profunda. Ele descobrira que uma das toxinas da víbora, uma proteína denominada ancrodo, elimina uma proteína fibrosa do sangue, impedindo a coagulação.
O Arvin, um fármaco anticoagulante elaborado a partir da peçonha de víbora malaia, chegou às clínicas europeias em 1968. Entretanto, o medicamento já foi substituído por outros anticoagulantes à base de peçonha de víbora.
Na década de 1970, a peçonha de jararaca conduziu ao desenvolvimento de uma classe de fármacos denominada inibidores da Enzima Conversora da Angiotensina (ECA), actualmente utilizada contra a hipertensão. Os investigadores começaram por questionar a razão que levava os trabalhadores das plantações de bananas do Brasil a desmaiarem devido a quebras de tensão depois de serem mordidos por estas serpentes. De seguida, isolaram o princípio activo da peçonha que baixava a tensão arterial. Contudo, as empresas farmacêuticas precisavam de ser convencidas de que algo proveniente de dentes de serpente era capaz de salvar vidas humanas. E não se pode simplesmente pôr peçonha num comprimido e dá-lo aos pacientes, pelo que o componente útil da peçonha teve de ser modificado ao nível molecular, recalibrado e ajustado para sobreviver aos efeitos corrosivos do sistema digestivo humano. Por fim, uma versão sintética acabou por chegar à fase dos testes em humanos e, em 1975, o primeiro fármaco oral contra a hipertensão, o captopril, foi aprovado para consumo. A classe de fármacos inibidores de ECA, da qual o captopril foi pioneiro, trata dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo e produz volumes de negócios de vários milhares de milhões de euros.
Os dotes moleculares dos animais tóxicos dão-nos esperança na luta contra várias doenças debilitantes. Os doentes cardíacos têm uma dívida de gratidão para com a mamba-verde, uma serpente arborícola mortífera africana cuja peçonha enfraquece os nervos e a circulação sanguínea da vítima. Investigadores da Clínica Mayo fundiram um péptido essencial da peçonha com um péptido produzido pelas células que revestem internamente os vasos sanguíneos para criar a cenderitida, uma substância já sujeita a ensaios clínicos. A sua finalidade é não só descer a tensão arterial e reduzir a fibrose (o crescimento excessivo de tecido conjuntivo) num coração fraco como proteger os rins da sobrecarga de sal e água. A mamba-negra, sua parente próxima, uma serpente cuja boca parece um caixão e cuja peçonha pode rapidamente pôr-nos dentro de um, contém uma toxina com potencial para produzir um novo analgésico.
Os monstros-de-gila, lagartos de pele grumosa que vivem nos desertos do Sudoeste dos EUA, podem ingerir apenas três grandes refeições por ano, mas o seu índice glicémico permanece estável. Em 1992, o endocrinologista John Eng identificou um componente da peçonha do monstro-de-gila que controla o índice glicémico e até reduz o apetite. A exenatida, um fármaco derivado da peçonha da sua saliva, funciona como hormona natural, estimulando as células para lidarem com uma sobrecarga de açúcares mas permanecerem inactivas quando os níveis de açúcar estiverem normais. Assim, ajuda os diabéticos a produzir insulina e a perder peso.
O fármaco actual para as vítimas de AVC isquémicos só funciona se for administrado até três horas depois. Um fármaco baseado numa toxina anticoagulante da saliva do morcego-vampiro encontra-se em fase de ensaio clínico e permitirá prolongar o intervalo até nove horas.
Lembremos o encontro de Michael com aquele escorpião no México. Naquela que poderá ser a sua primeira descoberta com a Designer Toxins, Zoltan está a investigar uma toxina sintetizada a partir da peçonha de três espécies de escorpião diferentes que bloqueia de forma selectiva as células T imunitárias, envolvidas em numerosas doenças auto-imunes. Várias empresas farmacêuticas seguem no seu encalço.
Descobriu-se que uma neurotoxina extraída do escorpião Leiurus quinquestriatus se liga à superfície de células tumorais do cérebro. A principal razão que explica a recidiva dos tumores é o facto de os cirurgiões não conseguirem distinguir fiavelmente as células boas das más nos limites dos tumores. A imagiologia de ressonância magnética não detecta massas com menos do que mil milhões de células. Isto significa que os cirurgiões têm de identificar as fronteiras entre os tumores e o tecido saudável “meramente através de indícios visuais e de textura”, diz James Olson, do Centro de Pesquisa Oncológica Fred Hutchinson. “É uma ciência imperfeita. As células de glioma entretecem-se no tecido normal e por vezes algumas ficam para trás.”
Os médicos especializados no tratamento de gliomas, a forma mais comum de cancro no cérebro, criaram uma “lanterna molecular”, marcando a clorotoxina com um corante. No primeiro ensaio, a “tinta para tumor”, como James Olson chama ao marcador derivado do escorpião, “iluminou lindamente o cancro. Ficámos radiantes por percebermos o seu enorme potencial.”
A tinta revela massas com apenas 200 células tumorais. “Isto permitirá aos cirurgiões remover uma percentagem maior de cancro, talvez até 100%.” Os testes à toxina colorida em humanos terão início este ano e talvez a tinta possa ser utilizada para cancros na próstata, colo-rectal, pulmões, mama, pâncreas e pele, bem como glioma, salvando ou prolongando milhões de vidas.
As toxinas de escorpião representam um arsenal químico versátil. Uma pode ser inimiga do cancro, outra servir de base para fármacos para doenças cardíacas, analgésicos, anticonvulsivos e antimaláricos. Existe até um possível pesticida.
O búzio conus não tem um aspecto ameaçador, mas existe um monstro escondido atrás da sua beleza. Estes búzios não têm mandíbulas nem garras. “Têm apenas um apêndice minúsculo para capturar as suas presas”, diz Baldomero Olivera, da Universidade de Utah. “E compensam com o facto de possuírem cinquenta ou mais componentes peçonhentos que actuam a diferentes níveis.” A espécie Conus purpurascens é uma das preferidas de Baldomero. Utiliza a probóscide para atordoar um peixe, imobilizando-o num ápice. Isso dá tempo às outras toxinas da peçonha para destruir a actividade muscular.
Para Baldomero Olivera, ser picado por um búzio “é como ser mordido por uma cobra e comer fugu (peixe-balão) em simultâneo”. Os búzios deste género “são como pequenas empresas farmacêuticas que conceberam os seus compostos de modo a corresponderem às necessidades”, diz. As conotoxinas da peçonha do búzio interrompem os processos das células nervosas, uma forma eficaz de disfarçar a dor em pessoas com cancro em fases avançadas. Péptidos da peçonha do búzio (as conantoquinas) estão a ser testados contra os ataques epilépticos. As conotoxinas e as conantoquinas podem funcionar como protecção contra as doenças de Alzheimer e de Parkinson, a depressão e até o vício em nicotina. Até à data, apenas cinco compostos chegaram à fase de ensaio clínico com seres humanos e um analgésico semelhante à morfina, a ziconotida, mostrou êxito. A ziconotida é quimicamente idêntica ao componente fabricado pelo búzio.
Outra criatura marinha, a anémona Stichodactyla helianthus, possui tentáculos tóxicos que atordoam a presa antes de recolherem a vítima para o interior da boca. No entanto, as células urticantes da anémona, chamadas nematocistos, ejectam uma peçonha que contém péptidos úteis para o tratamento de doenças auto-imunes dos humanos. Na década de 1990, a equipa de George Chandy revelou que um dos péptidos bloqueia a actividade de uma proteína causadora de inflamação. Os investigadores reconfiguraram o péptido num composto a que chamaram ShK-186 e agora a Kineta, uma empresa de biotecnologia, está a utilizá-lo para fabricar um medicamento para doenças auto-imunes. Segundo Shawn Iadonato, o director científico da Kineta, a vantagem é a ligação específica a células doen-
tes. “O fármaco é especializado para actuação nas células que desempenham um papel nestas doenças. Outros medicamentos são problemáticos por terem efeitos secundários e deixarem os pacientes vulneráveis a infecções e cancros.”
A Stichodactyla helianthus promete no tratamento de doenças como a esclerose múltipla, a artrite reumatóide, a psoríase e o lúpus. “Permitirá aos pacientes desfrutarem uma vida mais normal”, diz Shawn Iadonato. “Mas demora muito tempo, mesmo quando temos uma descoberta inovadora. É preciso desenrolar muito e voltar de novo a enrolar para acertar em cheio.”
Os progressos da biologia molecular continuam a proporcionar melhores formas de compreender as peçonhas e os seus alvos. As opções mais tecnológicas da actualidade, como a Designer Toxins, facilitam a modelação de chaves medicinais para fechaduras moleculares específicas. Isto significa que, dentro em breve, um pulverizador para estancar hemorragias derivado da peçonha da Pseudonaja textilis poderá salvar vidas em locais de acidente e um péptido das mambas poderá tratar a insuficiência cardíaca.
Zoltan Takacs nunca se cansa de dizer que o potencial médico da peçonha é “assombroso”. Mas corremos o risco de perder as fontes desse potencial antes de conseguirmos identificar as toxinas que têm para nos oferecer. As serpentes estão em declínio, bem como muitos outros animais. Os oceanos também estão sob pressão; a sua química mutável poderá eliminar fontes promissoras de peçonha, desde búzios a polvos.
“Enquanto conservamos a biodiversidade em todo o mundo, deveríamos apreciar melhor a biodiversidade molecular”, diz Zoltan. Isso colocaria as moléculas das poções mais mortíferas da natureza no topo da lista das decisões prioritárias de conservação. E salvaria vidas.